«Apenas
Carlos se sentou ao pé dela, D. Maria perguntou-lhe logo por esse aventureiro
do Ega. Esse aventureiro, disse Carlos, estava em Celorico compondo uma comédia
para se vingar de Lisboa, chamada o Lodaçal...
-
Entra o Cohen? perguntou ela, rindo.
-
Entramos todos, Sr.ª D. Maria. Todos nós somos lodaçal...» (Cap. X de “Os
Maias”)
Vem o texto de Eça a propósito
do artigo de João Miguel Tavares, bastante explícito na questão do
dinheiro que nos foi emprestado para revitalizar o país e pagar a dívida
pública e privada, apenas, a banca estando de boa saúde, ao que se pensava.
João Miguel Tavares prova, contudo, que assim
não foi, sucessivamente a nossa banca vai falindo, aqui, ali, acolá, os
banqueiros fraudulentos usando os dinheiros públicos não para os guardar
honestamente e os devolver quando lhes for pedido, mas em proveito próprio, não
resistindo ao poderoso atractivo do sinistro "metal" que pode melhorar
as vidas dos pobres, em súbitos paraísos de possibilidades, e as vidas dos
ricos em concretizações de ilimitado poder, esquecidos uns e outros, dos
efeitos desastrosos do toque da campainha para “matar o mandarim”, ainda
segundo a concepção de Eça de Queirós, para se enriquecer, mesmo à custa da
miséria que vai causar na família do mandarim.
Ninguém, obviamente, resiste a
“matar o Mandarim” para ficar milionário e experimentar os eflúvios do
poder e da riqueza sobre o mundo, esquecidos do conceito “pó” em que nos
tornamos segundo a Bíblia, que ainda desconhecia os componentes galácticos em
que os astrónomos recentes e os telescópios potentes nos submergem – pó, gases e estrelas à
mistura, mais o buraco negro da absorção final aterradora.
Quando Ega recolhe à quinta da
mãe, em Celorico de Basto, para se lavar dos maus sucessos da sua “estreia” em
Lisboa, que julgara conquistar com o sucesso da sua verve satírica e da sua
veia literária de contínua promessa irrealizada, já desde Coimbra, das suas “Memórias
dum Átomo” e afinal descambando no escândalo
da relação com a judia Raquel Cohen, mulher do banqueiro Cohen, não se tratava
ainda das fraudes bancárias, pão nosso de cada dia dos nossos dias. De facto, o
banqueiro Cohen, tendo descoberto o adultério da esposa na sua sordidez real, propusera
as bengaladas indignadas da purificação, mas a precaução social fizera-o
retroceder para a viagem de recreio e de esquecimento do casal apaziguado.
Quanto ao humilhado Ega, promete – promessa naturalmente não cumprida - desancar
Lisboa na comédia “O Lodaçal”, escrita à sombra das faias de Celorico. Um “Lodaçal” sobre uma Lisboa pedantemente
instalada nas suas vaidades e hipocrisias convencionais, a par da pelintrice
decadente de uma estrutura social de eterna mesquinhez cultural e física.
De facto, não se tratava ainda
deste escândalo dos nossos tempos, de desvergonha e aproveitamento fraudulento do
dinheiro alheio de que somos impunemente espoliados e que João Miguel
Tavares põe a nu no seu artigo.
As perversões de oitocentos
serviram à sátira mas não favoreceram a ética. E é provável que os nossos “banqueiros”
consigam voar para outros Celoricos, não para esconder a vergonha que lhes
falta, mas para provar ao mundo que se deve sempre matar o “mandarim”.
Vem aí um novo resgate?
Público, 24/12/2015
Durante anos, venderam-nos
que o grande problema de Portugal – e a grande razão para a intervenção da
troika – era a dimensão desmesurada da dívida pública e da dívida privada, e
não a falta de solidez do sistema bancário. A falta de solidez do sistema
bancário era o problema da Irlanda e da Espanha. A dimensão da dívida era o
problema de Portugal e da Grécia. Só que, de repente, a gente olha à volta e
percebe o quão profunda é a nossa miséria: afinal, o problema do país é
tudo. É a dívida pública. É a dívida privada. E é a falta de solidez do sistema
bancário.
João Duque escreveu há dois dias no DN que nós estamos
“a pagar pela reputação do sistema financeiro”. Mas qual reputação, por amor de
Deus? O BPN foi ao fundo e passámos um cheque de cinco mil milhões para
salvar a reputação do sistema financeiro. O BES foi ao fundo e passámos mais um
cheque de três mil milhões para salvar a reputação do sistema financeiro. O
Banif vai ao fundo e passamos outro cheque de três mil milhões para salvar a
reputação do sistema financeiro. E eu pergunto: quanto mais é preciso pagar
para salvar a reputação do sistema financeiro? Não será preferível admitir
de uma vez por todas que a reputação do sistema financeiro português está ao
nível da reputação nocturna das esquinas do Técnico e partir dessa triste, mas
muito simples, constatação para tentar encontrar uma solução definitiva para o
problema, como fizeram os irlandeses e os espanhóis?
Se bem se recordam, aquando do resgate de 2011, no
pacote dos 78 mil milhões de euros que a troika entregou a Portugal estavam
previstos 12 mil milhões para a recapitalização dos bancos nacionais. Ao mesmo
tempo que em Espanha se injectavam mais de 40 mil milhões nos bancos, com a possibilidade
de chegar aos 100 mil milhões, em Portugal só metade do pacote financeiro
disponível foi então utilizado. A banca parecia sólida, o BES dispensou
ajuda para evitar que o FMI metesse o nariz nas suas contas, o país
celebrou uma “saída limpa”, e o resultado é o que se está a ver: a troika
partiu, a linha dos 12 mil milhões foi entretanto extinta, e subitamente as
necessidades de capitalização dos bancos não param de aumentar.
Recordo que há 10 dias o economista João César das
Neves já afirmava que o buraco do Banif poderia ser demasiado grande para as
actuais capacidades do sistema financeiro português. “É possível que
tenhamos de pedir ajuda internacional”, dizia ele. Eu sei que nestas coisas
é preciso ter cuidado com os alarmismos – mas não me parece que até agora as
práticas não-alarmistas tenham sido particularmente eficazes. Aquilo que
estamos a assistir no Banif é a uma nova falha da regulação, a uma nova
ocultação da dimensão do problema e a uma nova nacionalização de dívidas
privadas, sem que, mais uma vez, haja tempo para discutir o que quer que seja.
Mas há mais. O buraco no Banif é astronómico, o
último Expresso anunciava que a Caixa reclama 400 milhões de euros, toda a
gente fala nas necessidades de capitalização do Novo Banco e de como esse
número pode ser assustador, quase ninguém fala nas necessidades de
capitalização do Montepio para que o país não morra de susto; junte-se a Caixa
ao Banif, o Banif ao Novo Banco, o Novo Banco ao Montepio, e há uma pergunta
que tem obrigatoriamente de ser feita: o país tem dinheiro para pagar tudo
isto? Ou temos um segundo resgate à vista? Não me alarmem – mas digam-me,
por favor, que eu gostava de saber.
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