MUITAS
E DESVAIRADAS GENTES – 17
«Não há
bem que não acabe nem mal que sempre dure» – assim reza o ditado. E a viagem
tinha mesmo que chegar ao fim. Eis-nos, pois, na última etapa, a de Bombaim
a que agora está na moda chamar Mumbai.
Meia
dúzia de horas, apenas, o suficiente para uma volta pela cidade. Guia turística
castelhanófona, ao que já nos vimos habituando apesar de Espanha nada ter a ver
com a Índia e nós, Portugal, sim, termos muito. Mas é claro que a culpa é das
nossas Agências de Viagens que nada fazem para dar emprego a tanta gente que na
Índia (ainda e já) fala português.
Um guia
turístico é, por definição, um Embaixador do país em que reside e que o exibe a
forasteiros. É, portanto, um agente cultural da maior importância que se deve
adaptar aos interesses dos clientes, esses tais forasteiros, turistas.
No caso
particular de Bombaim, aos turistas portugueses poderiam os guias turísticos
apresentar locais e factos históricos que tivessem algo a ver com os tantos
anos que por lá andámos mas, na realidade, passamos ao largo de toda essa
temática e só por acaso nos apontam um ou outro edifício com características
especiais a que chamam «estilo colonial» ou qualquer outra designação a atirar
para o imbecil.
Por
exemplo, a nossa guia local, que não deve sequer saber quem foi Garcia de Orta
nem Catarina de Bragança, dissertou longamente sobre os lavadores de roupa, a
«Porta do Oriente» por onde entraram e saíram os ingleses, os edifícios de
estilo gótico, as praias ao pôr-do-sol e... mais não sei pois desliguei-me da
conversa.
Mas
Bombaim deve ser uma cidade bem boa para se viver, sobretudo se se puder ter um
daqueles apartamentos miríficos numa das avenidas marginais com o Mar Arábico a
dançar ali à frente.
Contudo,
numa panorâmica geral, a Índia ainda tem os seus quês...
A fechar
esta série de crónicas, resta a certeza de que muito ficou por referir mas
também não era minha intenção escrever algum «Colóquio da Índia e do Sri
Lanka». Até porque sempre esteve longe de mim a ideia de fazer sombra ao «Colóquio dos simples e drogas e coisas medicinais da Índia».
Finalmente,
uma curiosidade: na Índia, os motoristas conduzem descalços mantendo as
chanatas ali ao lado dos pedais para a eventualidade de terem que se apear
sobre alguma cama de picos à moda dos faquires. Então, foi em Madurai, no Tamil
Nadu, que a certa altura vimos o Director do hotel vir todo engravatado e
pressuroso até ao hall receber
um importantão (parece que era o Chefe da Polícia do Estado que se fazia acompanhar
de dois polícias paralelepipédicos empunhando metralhadoras e de duas
mulheres-polícia de beleza quase deslumbrante) cujo motorista, “vestido de
ponto em branco” como soe dizer-se, se apresentava descalço no que, para todos
eles, era a coisa mais natural da vida.
Aqui
fica uma sugestão aos nossos industriais de calçado: não percam muito tempo com
os motoristas na Índia.
De
Bombaim voámos até ao Dubai e daí a Lisboa onde chegámos em condições de curar
a constipação que o ar condicionado do autocarro nos pregou na viagem entre o
Tamil Nadu e o Kerala. E os micróbios indianos devem estar cheios de piri-piri
pelo que foi difícil dar-lhes cabo.
E não
esquecer que o título desta série de crónicas é de inspiração medieval no
sentido de que então se considerava desvairado todo aquele que agia segundo
padrões diferentes dos do observador. E nesta viagem, para além de muita, vi
gentes desvairadas.
E
pronto, até à próxima que, parece, vai ser navegando pelo Amazonas...
Henrique Salles da Fonseca
Henrique Salles da Fonseca
E em agradecimento por estas crónicas ditadas pelo prazer de
viajar, colhendo e transmitindo, a referência ao adjectivo “desvairadas”,
no sentido de diversas, que respigo da Crónica de D. João I de Fernão
Lopes (Textos Literários), o primeiro na demonstração da sua probidade de
historiador, que tanto se debruçou na consulta de livros em busca da “clara
certidom da verdade”, o segundo na defesa do Mestre de Avis, quando o povo
acode aos paços para libertar o Mestre, que julgavam entregue às malhas
maquiavélicas de D. Leonor Teles:
"Ó! com quanto cuidado e deligencia vimos grandes
volumes de livros, de desvairadas liguageês e terras; e isso mesmo
pubricas escripturas de muitos cartarios e outros logares nas quaes depois de
longas vegilias e grandes trabalhos, mais certidom aver nom podemos da conteúda
em esta obra."
“Ali eram ouvidos braados de desvairadas maneiras”.
Assim deve ter sido o vasto passeio pelas desvairadas
gentes com quem se cruzou o Dr. Salles no longo passeio cansativo, mas feito
num propósito de igual cuidado e diligência de colher mais “clara certidom
da verdade”, e de a transmitir com graça e a necessária crítica, em meio de
fotos sugestivas dos espaços retratados.
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