Nunca
as férias do Dr Salles se limitam a uma simples função de diversão e prazer
físico, porque nos seus passeios colhe experiências e saberes que generosamente
partilha no seu blog, juntamente com as expressivas imagens com que acompanha
os suas descrições. Das suas férias pela Índia, pelo Sri Lanka, de que tem
feito o relato, nunca banal, ora sério e crítico, com expressivas imagens, – caso da velha indiana miseravelmente
abandonada pela família também pobre, e que o mundo farto ignora, ora de
descritivo em que não faltam reflexões graciosas e fotos acompanhantes, como o artigo
sobre o próprio Sri Lanka, que progrediu bastante, ao que parece, o texto que
transcrevo, de «MUITAS
E DESVAIRADAS GENTES» é já o nono da série:
MUITAS E DESVAIRADAS GENTES – 9
No princípio
era o Verbo...
Sim, tudo começou por não
existir e assim foi que também o Budismo começou por ser apenas uma filosofia e
hoje é uma das mais importantes religiões neste mundo dos homens.
O Senhor Buda sempre
afirmou ser um homem totalmente terreno, não divino. Como Cristo, nada
escreveu: pensou por si próprio e ensinou os contemporâneos deixando aos
discípulos a missão de escreverem os seus ensinamentos. E são estes
ensinamentos que constituem a base do budismo como filosofia e que mais tarde
se transformou em religião.
O que distingue a
filosofia budista da religião budista são a característica terrena da filosofia
e o carácter divinal da religião. Assim, pode-se ser filosoficamente budista
sem se ter a fé budista mas não se pode ser crente budista sem se abraçar a
filosofia budista. Mas é claro que, na prática, há muita fé que existe por si
própria sem a específica base filosófica. Lá, como em toda a parte, como em
todas as religiões.
Não será aqui que
abordarei o Budismo e a sua exegese mas posso sugerir que os interessados
consultem, por exemplo, https://pt.wikipedia.org/wiki/Budismo
Um dos ensinamentos
budistas que mais prezo é o da práctica da compaixão, o mesmo comportamento a
que os cristãos chamam amor: a preocupação com o próximo, o desapego do
egocentrismo.
Como assim?
Muito bem, passo a
explicar contando uma pequena história que em tempos li sobre um monge seguidor
do Dalai Lama: perguntado sobre o que é a compaixão budista, o monge pediu a
quem o escutava que imaginasse entrar numa sala e ver uma flor num vaso.
- Todos pensaremos em
primeiro lugar se gostamos ou não daquela flor, se ela é bonita, enfim, se de
algum modo nos satisfaz. Ou seja, todos teremos raciocínios ego centristas,
egoístas, no limite. Todo o nosso raciocínio habitualmente se desenvolve em torno
de nós
próprios,
dos nossos
parâmetros
e interesses. Mas se ao vermos a flor naquele vaso pensarmos que ela estaria
muito melhor se pudesse apanhar directamente a luz do Sol e o ar fresco, se
pudesse estar entre as outras da sua espécie... Então nós abdicávamos do nosso
egoísmo, do egocentrismo e focávamos o nosso raciocínio no interesse da flor.
Ou seja, interessávamo-nos pelo outro e não mais apenas por nós. Esta motivação
pelo bem alheio é a compaixão budista.
Este, pois, um código de
conduta totalmente terreno. Mas ao longo dos séculos as multidões divinizaram
Buda a quem reconhecem muitos milagres e grande intercepção com o Ser Supremo a
que nós, nas outras religiões, chamamos Deus ou Alá.
Portanto, com pontos de
pura bondade tão fundamentais em comum, muita razão teve o Arcebispo de Goa
quando se insurgiu violentamente contra o Padre que há uns quantos séculos
queria destruir o dente de Buda roubado do templo de Kangy não descansando
enquanto não assegurou a devolução da relíquia à origem
Impressionou-me o fervor
que vi nos crentes a rezarem num ofício religioso a que me deixaram assistir
próximo de Polonnaruwa e se eu tinha a mania de que o Budismo era apenas
uma filosofia, aqui fiquei sem quaisquer dúvidas de que é mesmo uma religião. E
muito importante!
Foi à porta desse templo
que pela primeira vez um homem me ofereceu uma flor. Era para eu depositar na
base da estátua de Buda dentro do templo, o que fiz. Será uma das que se vêem
na foto sobre a mesa do altar. À saída, o fulano esperava-me para eu lhe dar
uma moeda, o que também fiz.
Felizes os que têm fé.
Lisboa, 7 de Dezembro de
2015 Henrique Salles da
Fonseca
O
comentário que lhe enviei:
Mais
um texto simultaneamente sério e gracioso, que mostra a profundidade
doutrinária e a desmistificação do comportamento humano. Intimamente, reduzo o
meu saber ignorante às figuras dos ícones que são mostrados nas estatuetas do
Cristo e do Buda: Enquanto Buda olha para o seu umbigo, sinónimo de
interioridade, de ascese individual no sentido do aperfeiçoamento interior,
Cristo, de braços abertos na cruz, significa, afinal, o carácter ecuménico,
universal, da sua doutrina de acolhimento e solidariedade. É claro que tudo se
desfaz em riso com a história que o Dr. Salles conta, do homem que lhe oferece
a flor à entrada do templo e lhe pede a moeda à saída. Cristãmente, o Dr. Salles
alinha, dando a moeda.
Nenhum comentário:
Postar um comentário