Vontade de falar de “Manon Lescaut” do
abade Prévost, que releio - na analogia do seu enredo de abismos com os que
vivemos no nosso país - me deu a “Pluma caprichosa” de 28/11, de Clara
Ferreira Alves. Uma história de «um amor grande como um mar sem praias», retirando-lhe
o tom faceto que preside aos excessos descritivos vocabulares dos amores de
Cesário Verde com a sua “triste Helena” do poema "Setentrional”. Um amor
intenso, uma paixão absoluta, feita de todos os excessos e de todas as
renúncias ao bom senso, ao respeito por si próprio, a quaisquer perspectivas de
miséria ou fome ou frio, ou prisão, ou morte, ou rejeição social, intercalados
os momentos de penúria, de abjecção, de dor, com os momentos de total harmonia
e carinho amoroso, neste par original, bem distinto do Paulo e Virgínia
ou até mesmo de Margarida Gautier, a dama das camélias, cortesã que
igualmente morrerá, rejeitada que foi pela família do amado Armando Duval.
Bem distinto ainda do romance epistolar de Choderlos de Laclos, “Les
liaisons dangereuses”, e do seu requinte analista da libertinagem
aristocrática do século XVIII, e da sua problemática psicológica que dita os
comportamentos de perversidade ou sensuais ao longo da obra. Outras novelas se
poderiam citar, quer na literatura inglesa, quer na francesa, sem excluir o
“Werther” de Goethe, que havia na estante do meu pai e me acompanhou em leitura
de adolescência, bem como as aventuras do engenhoso fidalgo Don Quixote da
Mancha, ou mesmo o pícaro Don Pablo de Ségovie, “El Gran Tacaño" de Quevedo,
creio que prémio escolar em tradução francesa que o meu pai recebeu em Macau,
nos seus estudos liceais feitos ali, durante os anos de tropa.
«Un homme et une femme» do século
XVIII, uma bela e triste jovem de dezoito anos, amada pelo jovem de boas
famílias, des Grieux, que a salva do convento onde os pais a enviam para ser
religiosa e assim reprimir as suas tendências de libertinagem que, em jeito
fatalista, ela considerava virem a ser causa da sua infelicidade. Ambos escondem
os seus amores, em promessas de dedicação mútua e definitiva. Incapaz de
suportar a miséria, a frágil e volúvel Manon entrega-se a um senhor B que
denuncia des Grieux ao pai deste, fazendo que seja recuperado pela família da qual
só por astúcia em manifestações de mudança e esquecimento consegue livrar-se,
decidido a seguir os estudos sacerdotais. A sua fama chega aos ouvidos de Manon
que o visita no parlatório com lágrimas de humildade e beleza convincentes e justificações da sua
traição só por amor por ele, efectuada, já que o senhor B pagava bem e ambos
poderiam usufruir do sacrifício da dedicada Manon. A nova queda do futuro sacerdote é
imediata e a história prossegue, nas ambiguidades de Manon, no seu desvelo
amoroso, na indiferença pelo Mal, com o perdão de des Grieux, e o no clima
passional estigmatizante e avesso a quaisquer pruridos de bom senso, a que o
amigo de Grieux - Tiberge – vai acudindo com conselhos e auxílio financeiro,
mas o enredo evolui em divergências de felicidade e vício, favorecido este pela
intervenção de um irmão de Manon – Lambert - figura de sordidez, oportunismo e
falta de escrúpulos, ele próprio comandando as vidas dos dois jovens, nos seus
truques de sobrevivência que manipulam a irmã e o beneficiam a ele.
Um discurso de primeira pessoa, tanto
do narrador inicial, no presente, como do próprio narrador des Grieux, em retrospectiva
de desabafo agradecido, pelo auxílio financeiro pelo primeiro prestado aquando
do embarque para da América da doce Manon degredada, que des Grieux irá acompanhar,
em grande dedicação mas em penúria extrema. Um livro de aventura rocambolesca,
de prisões, degradações e truques mas de demonstração de um amor infinito, que
tudo sofre na vileza mas igualmente no admirável de uma paixão superior a todo
o preconceito. O final da história refere uma Manon bem amante, fugindo para a
selva com o seu amado por sua causa perseguido, ela cada vez mais debilitada, ele
despojando-se das suas vestes para a cobrir e agasalhar e afinal a enterrar,
deitando-se, seguidamente, semi-nu na campa que para ela cavou, na esperança de morrer também.
Des Grieux acabará por ser salvo pelo amigo de sempre, Lambert, regressando a
França, para retomar a vida.
Uma novela francesa do século XVIII
como nunca produzimos em Portugal, mais votados aos lirismos, à epopeia, à
literatura de viagens ou à prosa oratória ou historiográfica. A nossa produção
novelesca apenas se iniciaria por alturas do romantismo, com vários
participantes que também existiam na estante do meu pai, e que culminavam no
burilador de enredos “leves” – os nossos preferidos, de minha irmã e meus – Júlio
Dinis e a sua obra aprazível, de criatividade, sedução e o necessário
conhecimento humano e de costumes, com sugestões de anti-clericalismo e de contemporaneidade,
no apontamento social não zurzido a vergastadas excessivamente críticas, como o
fariam os escritores neo-realistas do século passado, de que ainda hoje
sofremos o efeito clamoroso e redundante.
Vem, pois, este assunto a propósito
do artigo da “Pluma Caprichosa” de Clara Ferreira Alves – “Meu
caro João Soares” - no qual aconselha o novo ministro da cultura a
preservar os nossos escritores mortos, em novas edições completas, e a passear
os poemas dos nossos poetas nos autocarros da nossa indolência ledora. E
recordei uma vez mais autores do século XX do meu desagrado, entre os quais
Vergílio Ferreira que, mau grado a escrita vária do seu experimentalismo
literário constante, nunca conseguiu atrair-me, no maçudo de um discurso de
análise intimista ou abstracta, em busca dos porquês e dos comos das
transcendências ocultas à percepção humana. E isso me levou a Manon Lescaut,
uma novela clara, movimentada, não pretensiosa, mas denotando argúcia na
descodificação dos caracteres, de contrastes fundos entre o muito amor e a
muita perversidade, ou antes, a incapacidade de Manon de reconhecer o erro das
suas atitudes menos convencionais, ou a singeleza com que des Grieux esquece as
convenções, totalmente dominado pela paixão avassaladora.
E, muito embora reconheça o alcance
duma tal medida de publicação das obras completas dos escritores consagrados,
julgo que esses modernos já estão suficientemente consagrados, mau grado a
multiplicidade de publicações que enchem as prateleiras das livrarias com toda
a casta de livros. Por mim, caso houvesse dinheiro para gastar nesses autores,
preferiria trazer à ribalta novamente as edições dos clássicos da Sá da Costa,
que João Gaspar Simões em boa hora se lembrou de revelar e que tanta luz vieram
trazer ao nosso espólio cultural, que, extinta a Sá da Costa, conviria repor.
Para não morrermos ainda, em regresso às origens e detectar se valeu a pena.
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