Falou-se um pouco de tudo, como pessoas aclimatadas
aos tempos, saúde de pessoas conhecidas, os netos, notícias de jornais, tudo
muito actual com o seu quê de mexerico bem intencionado, como, aliás é pertença
habitual dos mexericos, ditados pelas pessoas de boa formação moral, que somos
todos nós no mundo cristão. Falou-se do Banif em maus lençóis, mas logo a nossa
amiga embirrou com a designação, achando que os maus lençóis pertenciam antes
aos que tinham confiado ao tal Banco as suas poupanças, os donos do Banco
sempre dormindo em lençóis de cambraia, metaforicamente falando e ambas – a minha
irmã e eu – concordámos, embora sugeríssemos que a cambraia devia ser pouco
macia, mesmo a metafórica. Eu pelo menos há muito que aderi aos térmicos, pelo
menos no inverno, e não dispenso mesmo assim o saco cheio de água quente,
pensando virtuosamente, do meu “quentinho”, nos sem abrigo e sem saco. Falámos nas
figuras ridículas de Sócrates e a minha irmã informou que ultimamente se tem
debruçado sobre o Correio da Manhã que não poupa o Sócrates, mas a nossa amiga,
de olhos faiscantes de malícia e bem-estar, agora que o Costa do seu poleiro promete
obra, explicou que o cavaleiro não da triste figura mas das figuras tristes «-
Ainda vai ser presidente da república! Ainda o governo o vai indemnizar.»
Mas acho que o disse só para nos provocar, que às vezes até parece que não se
lhe dava que assim acontecesse, o que me deu raiva, tal como ao Solnado, e lembrei
mesmo as coisas perversas que a esquerda vai erguendo em cada dia sobre os anteriores
governantes, os de direito próprio, para ver se os trama e enterra de vez.
Já a minha irmã tinha falado de Macau, segundo um
artigo que lera, a propósito das muitas terras que perdêramos, Macau mais
próspero agora, e até mais amplo, a ilha conquistando terras ao mar - como
fizera a Holanda com os seus polders - para dilatar os seus espaços e construir
os seus edifícios, os seus casinos, numa era de riqueza e modernidade. Dantes,
parece que também dava dinheiro mas aos habitués do costume, que o
arrecadavam em sítios pessoais - como fazem por cá ainda hoje os donos dos
bancos, os dos lençóis de cambraia - e por isso não poderemos nunca construir
polders, o mar, pelo contrário, é que nos vai engolindo, como polders às
avessas.
Mas a minha irmã saiu-se com uma frase plena de doçura
e abismei-me com ela, que atribuí a esta quadra natalícia - embora, na questão dos pratos, cada dia
sejamos marcados com a realidade saborosa da cozinha portuguesa nas
programações televisivas: «- Somos um exemplo para o mundo. Tudo o que
tivemos entregámos em paz» - mas eu nem
tive tempo de unir as mãos em doce respeito e fervor, porque ela logo
acrescentou: «- Mas agora aquilo está péssimo, com milhões de gente pelas
ruas…»
E a nossa amiga de acrescentar: «- O Maputo está
igualzinho, se não pior que Luanda. As pessoas deixaram de conviver.» Falava
da população branca. «- Aquilo foi-se abaixo das canetas. Baixou o petróleo …
a filha do coiso não é dona de Portugal? O coiso, o Zé…» e a minha irmã a
dar-lhe troco: «-Há 40 anos no poder! Como é possível?»
Timidamente alvitrei que nisso, de longevidade
governativa, o Alberto João também quase
chegara aos calcanhares do Zé, e fizera obra, ao que parece, mas argumentaram
que, sem petróleo não poderia ter ido longe se lhe não fosse parar às mãos o
dinheiro externo que viera parar primeiro aos do continente. E a nossa amiga tristemente, voltando ao coiso:
-«Ui! minha nossa! Angola podia ser um país riquíssimo!»
O sacrossanto dinheiro! E lá voltamos ao mesmo, nesta
roda giratória, o bago, que já utilizara um tal Gonçalo da Redacção da Tarde, onde
Ega fora suster a publicação de um artigo obsceno de Palma Cavalão contra
Carlos da Maia: “Hoje é o facto
positivo, - o dinheiro, o dinheiro! o bago! a massa! A rica massinha da nossa
alma, menino! O divino dinheiro!» Ou,
como a “Boneca” do irmão da “Ofeliazinha” de Fernando Pessoa, Carlos Queirós, a
ocupar todos os interstícios das vidas modernas: «A boneca! A boneca!», o rico bago...
Teatro da boneca
A
menina tinha os cabelos louros.
A
boneca também.
A
menina tinha os olhos castanhos.
Os
da boneca eram azuis.
A
menina gostava loucamente da boneca.
A
boneca ninguém sabe se gostava da menina.
Mas
a menina morreu.
A
boneca ficou.
Agora
também já ninguém sabe se a menina gosta da boneca.
E
a boneca não cabe em nenhuma gaveta.
A
boneca abre as tampas da todas as malas.
A
boneca arromba as portas de todos os armários.
A
boneca é maior que a presença de todas as coisas.
A
boneca está em toda parte.
A
boneca enche a casa toda.
É
preciso esconder a boneca.
É
preciso que a boneca desapareça para sempre.
É
preciso matar, é preciso enterrar a boneca.
A
boneca.
A
boneca.
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Carlos Queirós
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