O texto é uma explosão de alegria, de quem já viveu
alegrias tamanhas e tão parecidas como esta, novo 25 de Abril para uma alma vibrátil,
vê-se que justa e caridosa, que, ao que leio na internet, abriu para Karl Marx
e fez finca-pé nele - «Só quem não viveu aqueles tempos é que pode
pensar que os mais de seis anos passados entre o princípio da história e o seu
fim não fossem seis séculos em que tudo mudou e tudo estava mudado.», leio
na Internet, como frase sua. Outra frase retirada da sua biografia é que «Viria
a aderir ao PCP (m-l) em 1972, de inspiração maoísta e de cuja secção
Norte foi fundador.» Publicou livros, viveu na clandestinidade, até ao
golpe de 11 de Março de 1975. Escritor, português, não digo a idade, que vem na
internet, quer fazer uma Fundação com os seus livros, que são muitos, para
ilustrar este país que precisa muito, parece que aderiu ao PSD, mas isso
ninguém diria, e a vitória da esquerda encheu-lhe as medidas, como se nota por
este artigo saído no “Público” em 28/11/15, autêntica girândola de foguetes,
que pretende mostrar uma boa formação moral e muita cultura, além de um retorno
aos brinquedos da infância, neste aplaudir entusiástico do seu wink wink,
logo moderado por outros suspiros de dúvida transpostos nos sinais diacríticos
de uma pontuação expressiva de variados sentimentos e precauções:
Acabou!!!! Acabou. Acabou?
Acabou!!!!
Experimentem
dizer “acabou” junto de uma das inumeráveis vítimas destes anos de
“ajustamento” e vão ver como é a resposta. Eu já experimentei várias formas e
têm todas um ponto de exclamação no fim ou outro qualquer expletivo. Ou é um
suspiro fundo de quem atravessou um trajecto complicado e, chegado a outro
lado, respira longamente de alívio; ou é um alto e sonoro “acabou” como antes
do 25 de Abril se chegava ao “às armas” da Portuguesa e de repente toda a gente
gritava a plenos pulmões; ou é uma espécie de vingança saborosa em ver na mó de
baixo aqueles que sempre entenderam que têm o direito natural de estar na mó de
cima.
Ou
há mesmo uma variante irónica, como se o “acabou” fosse semelhante ao do
episódio dos Monty Python em que uma personagem num pub dizia para um eleitor
circunspecto do PAF ao lado “you know what I mean?”
e tocava-lhe nos braços numa cumplicidade admitida. Wink, wink. No episódio, depois
queria vender-lhe fotografias pornográficas: “you know what I mean?” Aqui, era uma
fotografia de Cavaco Silva a “indicar” António Costa, wink, wink. Até eu fico da escola
do engraçadismo, imaginando alguns personagens que andaram a insultar a nossa
inteligência, a mentir-nos descaradamente, e a atacar o bolso dos que não se
podiam defender, culpando-os de “viverem acima das suas posses” e de serem
“piegas”.
“You know what I mean?”. Piu-pius governamentais
que vivem no Twitter; irrevogáveis de geometria variável; o “impulsionador
jovem” que aos saltos no palco dizia à assistência “ó meu, isso da história não
serve para nada”; os “justiceiros geracionais” que queriam tirar as reformas
aos pais e avós para em nome de uns abstractos filhos e netos as darem a
“outros” pais e avós, bem vivos e presentes, em nome da “estabilidade do
sistema financeiro”; os neo-malthusianos que nos encheram de simplismos
gráficos em que se escolhiam os parâmetros e se excluíam outros para concluir
que “não há alternativa”; os arrojados ultra-liberais, que queimam o valor
dessa bela palavra de liberdade, e que proclamam que nunca, jamais e em tempo
algum quereriam “casar” com as “esganiçadas” do Bloco, sem sequer perceber o
que lhes diz o espelho; as mil e um personagens ridículos cuja desenvoltura
vinha de terem poder, estarem encostados ao poder e entenderem que tinham
impunidade para pisar os outros porque eram mais fracos e tinham menos defesas.
Vamos todos dançar a tarantela para expulsar o veneno.
Acabou!!!
Sabem ao que me refiro? Sabem, sabem. Bem demais.
Acabou.
Acabou.
Percebe-se no ar que chegou ao fim uma época, um momento da nossa vida
colectiva e que existe um desejado ponto sem retorno. E, na verdade, para
“aquilo” já não é possível voltar, pode ser para outra coisa pior ou para outra
coisa diferente, mas para o mesmo já não há caminho.
O
modo como “acabou” conta muito, porque é diferente dos modos tradicionais da
vida política portuguesa. Se o governo PSD-PP tivesse acabado nas urnas por uma
vitória do PS mesmo tangencial, o efeito de ruptura estaria muito longe de
existir, mesmo que o governo PS não fizesse muito de diferente do que o actual
governo minoritário vai fazer. Foi a ecologia da vida política portuguesa que
mudou, com o fim da tese do “arco de governação” e, mais do que qualquer
solução, que pode ser precária, não durar ou acabar mal, acabou a hegemonia de
uma das várias construções que suportavam a ideologia autoritária que minava a
democracia nestes dias, a do “não há alternativa”.
Acabaram
os votos de primeira e os de segunda, com o escândalo de também os votos de um
torneiro numa oficina de reparações, que faz todas as opções erradas e
tribunícias, é sindicalizado nos metalúrgicos, vive na margem sul, e vota na
CDU, também valer para que haja um governo de pacíficos funcionários públicos e
professores que votam no PS, ex-membro do “arco da governação”. Não é por amor
ao governo de Costa, nem ao PS, é outra coisa, é porque não queriam os “mesmos”
e foi essa força que os fez acabar. Vem aí o PREC? Se a asneira pagasse multa
podíamos enviar os asneirentos num pacote para pagar a dívida e ainda ficávamos
com um superavit.
Acabou?
Não.
Há muita coisa que não acabou. Há um rastro de estragos, uns materiais e outros
espirituais, que não vão ser fáceis ou sequer possíveis de superar numa
geração. Sempre que um jornalista fizer a pergunta pavloviana de “quem paga?”
ou “quanto custa?” só sobre salários, pensões e reformas, ou seja aquilo que
interessa aos que tem menos e nunca faça a mesma pergunta em primeiro lugar, e
muitas vezes único lugar, para tudo o resto, benefícios fiscais, impostos sobre
os lucros, “resolução” de bancos, PPPs, swaps, etc. ainda não acabou. Sempre
que alguém “explicar”, com um encolher irónico dos ombros e completa e absoluta
indiferença, a ineficácia da fiscalidade sobre a riqueza, porque os capitais
“deslocam-se” como água para outros sítios, para offshores, e podem sempre
fugir, e por isso “não vale a pena” sequer admitir tentar taxá-los, ainda não
acabou. Sempre que se considera como normal que quem manda em nós, eleitores,
portugueses, Portugal, são uns burocratas de Bruxelas e uma elite de governos
europeus, que nos governam por “instruções”, “directivas”, “regras”, interpretadas
rigidamente para países como Portugal e com ampla folga para países como a
França, ainda não acabou. Sempre que o dolo, a violação da confiança e dos
contratos com os de “baixo” e a inviolabilidade com os de “cima”, continuar a
ser a prática de um estado de má-fé, ainda não acabou. Sempre que se cultive,
dissemine, impregne, envenene a vida pública com a indiferença com a pobreza, o
desemprego, a quebra de qualidade de vida, a perda de dignidade quando se vê a
casa penhorada , ou se perde o carro na frágil classe média que criamos depois
do 25 de Abril, retirando da pobreza muitas famílias para lhes dar outros
horizontes pelo trabalho e, aos seus filhos, pela educação, e se vê tudo isto
como efeitos colaterais não se sabe de quê, embora se saiba para quem, ainda
não acabou. Sempre que se despreza os que vivem com dificuldades do seu
trabalho e se valorize a esperteza e o subir na vida, ainda não acabou. Sempre
que se violam direitos sociais, protecções aos que menos força têm,
reivindicações de gerações inteiras, ainda não acabou.
Sempre
que se acha que isto é radicalismo e não decência, ainda não acabou.
Pode
até não mudar muito, porque já mudou muito.»
Acabo. Afinal, eu não tenho palavras para tão digno
fardo sentimental. Prefiro imaginar na boca de Pedro Passos Coelho e de Paulo
Portas, os versos tristes de Soares de Passos, poeta de muita dor, também
autor do “Noivado do Sepulcro”, que a minha mãe cantava e me ensinou, melodia
desenterrada dos finais do século do nosso ultra-romantismo. Só aqueles poderão
condignamente responder a José Pacheco Pereira, com a respectiva dor da
separação, mesmo sem melodia, mas com muita fé no porvir:
Partida
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