quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Retalhos deste tempo



João Miguel Tavares não é dos que está contido na asserção de Clara Ferreira Alves, reproduzida a negrito em letras garrafais na sua entrevista da I de 21/11/15, para destacar a originalidade do seu pensamento, que há muito apreciamos, quer se revele nas intervenções orais quer seja nas intervenções escritas que ao sabor das suas muitas experiências em várias frentes, lhe dão indiscutivelmente ademanes de rainha, sensível e superior, Fénix ardendo em chamas e cinzas para renascer mais esplêndida, no seu solipsismo, de uma argúcia que a muita leitura ajudou a construir. A entrevista é sobre o primeiro romance que publica, “Pai Nosso”, que a capa da revista I destaca, juntamente com a expressiva foto da escritora: «Com todas as letras do terror, “Pai Nosso”, o primeiro romance de Clara Ferreira Alves é sobre uma guerra que já está aqui. No meio de nós. Entrevista na véspera dos atentados em França Por Cristina Margato e Ricardo Costa».
A referência à véspera dos atentados tem naturalmente um cariz propositado de predestinação, na pose verbal e hierática de que se reveste, na longa entrevista que concede, sibila plena de certezas, mas naturalmente de angústias e paixões e desprezos, próprios de quem muito sabe mas acima de tudo se ama a si própria, no acentuar de uma egolatria que os entrevistadores não deixaram de explorar. Em letras garrafais vem, pois, a negrito na página 30 da I, o seguinte destaque que, aliás, eu já sublinhara com certo espanto, no texto dessa entrevista: “Eu sou independente, sempre fui. A internet é uma selva, é o frustrado, o ressentido, o fanático. Eu abomino o fanatismo.» E digo com certo espanto porque não me passara pela cabeça generalizar afirmação tão drasticamente restritiva a uma potência mediática de tão variada amplitude de funções e enriquecimento cultural para quem a queira utilizar na generosidade dos seus múltiplos filamentos, ignorando, naturalmente o carácter perverso de muita banalidade ou malandrice sórdida.
Não, a afirmação de Clara Ferreira Alves não tem a ver com o texto de João Miguel Tavares, «José Sócrates nunca existiu». Trata-se, este, de um texto jornalístico, saído no Público de 26/11, que aliás a Internet também mostra, que rendeu dinheiro ao que o escreveu, julgo que sem fanatismo, embora com um sentido de orientação crítica que pelo menos em tempos – antes do seu «Anticomunista, obrigada» - deveria causar repulsa a Clara Ferreira Alves. Aliás, João Miguel Tavares faz parte do grupo humorístico “Governo Sombra”, a que pertence Pedro Mexia, dos literatos analistas preferidos de Clara, talvez na mira já de uma boa crítica dele, não iria considerar fanático Tavares, nas suas verdades sobre os do elenco governativo actual, que desmonta em análises envolvendo um passado já esquecido pelos que se preparam para a reviravolta conveniente dos novos tempos.
Por mim, não julgo que seja o fanatismo a mover as opiniões de João Miguel Tavares, mas o bem senso na análise e a honradez do pensamento preocupado. Quanto a Clara Ferreira Alves, já a vi mudando de estatuto, ao sabor dos seus caprichos e conforme os interesses pessoais, sempre me pareceu. Ou talvez sejam as mudanças - quaisquer que elas sejam - apenas uma consequência da própria característica da evolução humana. E de tudo o que existe, afinal. Que andamos cá para isso, já Camões e outros o escreveram:

José Sócrates nunca existiu
João Miguel Tavares
Público, 26/11/2015
Uma pessoa olha para a lista de António Costa e não acredita: dois dos três homens do núcleo duro de José Sócrates - Augusto Santos Silva e Vieira da Silva - estão de regresso ao governo. Azeredo Lopes, que ao lado de Estrela Serrano se destacou na liderança da ERC mais politizada de sempre, é agora ministro da Defesa. Miguel Prata Roque, advogado de Sócrates no processo contra o Correio da Manhã e restantes publicações do grupo Cofina, é secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros. E ainda falta conhecer três ou quatro dezenas de secretários de Estado - com sorte, talvez se arranje um lugarzinho para Paulo Campos. Mas sabem o que é pior no meio disto? É que ninguém parece importar-se. Ninguém quer saber. José Sócrates  nunca existiu.
Mas eu lembro-me. Lembro-me que um mês antes de Sócrates ser preso, Augusto Santos Silva aconselhava Cavaco a não condecorar o ex-primeiro-ministro, pois essa condecoração seria uma "nódoa" para Sócrates: "Haverá certamente, dentro em breve, um Presidente merecedor da honra de condecorá-lo." Lembro-me que Vieira da Silva, invariavelmente apresentado como "ministro da Segurança Social de José Sócrates", foi ministro da Economia entre 2009 e 2011, quando o país se afundou economicamente na bancarrota. Lembro-me que João Soares, futuro ministro da Cultura, considerou há um ano a prisão de Sócrates "injusta e injustificada" e uma "perversa tentativa de humilhação". Lembro-me que Capoulas Santos, futuro ministro da Agricultura, declarou acreditar que ele era "obviamente" inocente, à saída da prisão de Évora.
E porque me lembro disto tudo, estou até receoso que a nomeação de Francisca Van Dunem para ministra da Justiça, interpretada por alguns comentadores como um reforço da autoridade do Ministério Público junto do governo, tenha sido antes uma escolha de António Costa com o objectivo de vigiar de perto a actividade da Procuradoria numa era dominada por vários processos com profundas implicações políticas. Tendo em conta o currículo do PS no domínio da justiça desde os tempos da Casa Pia, ninguém pode dormir descansado. Mas se a qualidade da nomeação de Van Dunem é ainda incerta, isto, pelo menos, já temos como certo: António Costa não retirou qualquer ilação política nem do desastre de 2011, nem da detenção de 2014.
É que dá para escolher. Podemos defender que a presença de Santos Silva e Vieira da Silva num futuro governo PS é inconcebível por eles terem feito parte do núcleo duro de um primeiro-ministro com indícios fortes de corrupção. Podemos defender que a presença de Santos Silva e Vieira da Silva num futuro governo PS é inconcebível por terem feito parte do núcleo duro de um governo que levou o país à bancarrota. Ou podemos defender as duas coisas. O que não podemos é defender que nada disto se passou, que os políticos portugueses são inimputáveis, que o que quer que seja que aconteça ou o que quer que seja que eles façam, nada conta, nada se inscreve, nada permanece na nossa memória, nada tem consequências.
A própria comunicação social, para meu espantoso espanto, limitou-se ontem a retratar Vieira da Silva ou Augusto Santos Silva como políticos "experientes", como se "experiente" fosse um adjectivo neutro, completamente desligado da qualidade das suas várias "experiências". Sim, ok, pertenceram ao governo anterior do PS, isso está nas suas biografias. Mas parece que não faz mal. Não tem importância. Já foi há quatro anos. Tanto tempo. José Sócrates? Quem é esse?

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