sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Um país de brincadeira



Mais um texto que desejo guardar, de alguém do meu país que admiro na sua escrita desassombrada, inteligente, descodificadora das realidades sociais, sociólogo inventariador dos muitos casos que aqui e além são denunciadores de incompetência, trafulhice, vaidade, parolice, hipocrisia, atrevimento específico de ignorância, falsa bondade, pedantismo vazio e insensato, embora destruidor da ordem, como pretendem e se admite, em actuação de demagogia a que se pode conceder a designação de ditadura do proletariado.
Alberto Gonçalves aí está, inteiro, no orgulho de quem paira muito acima da mediocridade de um país de mândria, subserviência e atraso. Foi o caso da conferência de um Varoufakis convidado – pela esquerda que empunha actualmente a faca e o queijo – para vir cá mostrar como se faz para desorganizar a Europa, proeza de que os senhores e senhoras da esquerda de cá também se consideraram capazes, apesar dos nulos êxitos de Varoufakis no capítulo, mas que o alcandoraram a uma determinada proeminência, de efémera expressão, é certo, e mais para os costumeiros babados pelos êxitos da moda. Alberto Gonçalves o desmistifica na sua arrogância, vaidade e tolice, tal como caricatura actuações de António Costa, de foro familiar ou confessional, o que para mim é o menos simpático da sua crónica. Mas as referências a uma Catarina Martins decidindo sobre redução de exames, no facilitismo abjecto de quem se está nas tintas para um desenvolvimento cultural necessário a um país ainda hoje na cauda e que mais aí continuará, com estes exemplares de opróbrio, a quem se entregam os destinos de uma pobre nação, são por demais justas, num país de brincalhões.

Caras-de-pau
Alberto Gonçalves
DN, 6/12/15
Mal chegou ao poder, a entretanto falecida esperança do terceiro-mundismo europeu, o Sr. Varoufakis, tomou medidas imediatas: uma entrevista, com esposa, varanda e saladas, à Paris Match. Decerto pela predominância de fotografias em detrimento do texto, foi das ocasiões em que proferiu menos disparates.
Por cá, talvez porque os disparates que emite estão em dialecto só vagamente próximo do português, talvez porque o peso da periferia seja maior em Lisboa do que em Atenas, o Dr. Costa teve de contentar-se com o que havia. Por um lado, não havia interesse da Paris Match, da Burda Moden e do suplemento desportivo do The Guardian. Por outro, os media indígenas têm censurado inexplicavelmente o Dr. Costa, vergonha manifesta na escassa cobertura das respectivas gafes, perdão, intervenções. Embora não veja "telejornais", garantiram-me que, para citar caso recente, as atoardas, perdão, os assertivos bitaites do Dr. Costa acerca da Turquia e da NATO não foram destacados em nenhum. Sobrava a imprensa da especialidade, leia-se a especialidade do Dr. Costa, leia-se a Caras, na qual a espécie de chefe desta espécie de governo apresentou a família a uma nação ansiosa.
Valeu a pena esperar. Ao exibir Fernanda (esposa), Pedro e Catarina (filhos), o "marido atento" e o "pai carinhoso" mostrou a "faceta privada", precisamente aquela que as pessoas costumam escarrapachar nas páginas das revistas populares. Pirosice sem limites? Nada disso. Visto que o Dr. Costa é dado a tropeçar nas sílabas e na verdade, além de "extremamente inteligente" (palavras de Fernanda), aproveitou uma entrevista em princípio superficial para permitir à cônjuge revelar em código a visão que ele possui da realidade, o seu método de acção política e os truques a que recorre a fim de alcançar qualquer coisa similar a uma carreira.
Ficámos por exemplo a saber que o Dr. Costa "não constrói projectos sozinho" e que "os outros estão sempre na sua cabeça" (tradução: derrotado nas "legislativas", o Dr. Costa ouve vozes - as dos leninistas que lhe puxam os fios). E que "quando os miúdos eram pequenos, precisávamos de ir jantar fora uma vez por semana para falarmos" (tradução: os encontros secretos, as conversas em recato e os acordos conspirados à socapa são passatempos antigos). E que o Dr. Costa "está sempre a enviar-nos SMS" (tradução: os jornalistas insolentes que se cuidem). E que, a propósito dos filhos adultos, o Dr. Costa acha difícil "largar os pintainhos" e "deixá-los voar" (tradução: à conta de impostos, "investimento", falências, favoritismos, habilidades, excentricidades, proibições e silêncios forçados, este Portugal com tiques venezuelanos não irá longe). E que o Dr. Costa "gosta muito de cozinhar, mas falta-lhe começar a arrumar a cozinha" (tradução: após instaurar o pandemónio, é melhor que alguém venha pagar a despesa).
Não admira que o Dr. Costa "procure sempre ouvir a Fernanda" sobre as "questões fundamentais". Nós também tivemos de o fazer para confirmar as piores suspeitas: com a família resignada à necessidade de espalhar o "bem comum", o novo emprego do Dr. Costa é "uma aventura", ainda assim irrisória se comparada com a nossa. Acrescente-se, a título ilustrativo da lisura de processos, que a casa (o "refúgio") onde o agregado recebeu o fotógrafo da Caras é um palacete alheio, que Sua Excelência ocupou com a mesma jovialidade com que penetrou o de São Bento.

Quinta-feira, 6 de Dezembro
Rir da desgraça própria
Já é lendária a meta de Catarina Martins para o ensino básico: providenciar "as bases de que se faz o conhecimento todo", o que é uma ambição nobre e típica de quem não tem conhecimento nenhum. Em vez de um lugar de esforço, disciplina e exigência, a escola deve ser um espaço de felicidade (cito, juro que cito), onde as crianças crescem a rir dos Monty Python, do Blackadder e de Ricardo Araújo Pereira até, como será inevitável, chegarem a físicos, historiadores, filósofos e cirurgiões de renome. Isto enquanto irrompem às gargalhadas a cada degrau na escada da Sabedoria.
Não conheço em pormenor o percurso do estudante Pedro Passos Coelho. Mas, a julgar pela galhofa que dedicou à estreia parlamentar de Mário Centeno, a sua capacidade de ser feliz não foi maculada por exames da quarta classe. Também é verdade que o Dr. Centeno ajuda. O homem é engraçado quando repete os argumentos da "direita" acerca do Novo Banco. O homem é engraçado quando, à revelia das maravilhosas promessas socialistas, não consegue esboçar a sombra de uma fundamentação plausível. Sobretudo o homem tem graça quando é confrontado pelo deputado Miguel Morgado com os próprios trabalhos académicos, em particular um em que afirmava as consequências negativas do aumento do salário mínimo na criação e manutenção de empregos: "Não tente transpor conclusões de artigos científicos para a legislação nacional, porque se tentar fazer isso é um passo para o desastre."
Numa singela frase, o ministro das Finanças (desculpem, que isto é igualmente cómico) demoliu a sua coluna vertebral, a sua competência técnica e a seriedade das instituições que lhe dão guarida, a começar pela actual. E, ao contrário do que por acaso (?) lhe é habitual, o Dr. Centeno disse isto sem se rir. Era impossível que Pedro Passos Coelho e a metade do país imune aos encantos da Frente Popular não o fizessem. Dado o que nos espera, trata-se, claro, de um riso nervoso.

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