José Pacheco Pereira escreveu um texto sobre o Acordo
Ortográfico como abastardador da língua portuguesa, publicado no Público
em 15/5/2015. Maria Helena Mira Mateus a ele responde, no
mesmo Público, em 17/2/2016. Exactamente, nove meses depois - mais
dois dias - levou a gestação da sua resposta que nos chegou hoje. Nove meses é o tempo ideal para um parto normal,
não se trata, pois, de um aborto este seu texto, ainda por cima com mais dois
dias de gestação.
O
texto de José Pacheco Pereira é impecável - quer no sentido crítico que arrasa não
só os governos indiferentes, como o grupo elaborador do Acordo, que devia ser
de respeitabilidade intelectual e se revela de ignara indiferença e desrespeito
apátridas por uma língua com origens tão clássicas como as do resto dos países
europeus de idênticas origens e para quem seria crime destruí-las no que
possuem de nobreza erudita original; quer na argumentação científica que
contesta a validez desse acordo; quer na referência ao desprezo ou indiferença doutros países
da lusofonia que o não seguem; quer no apregoado paralelo com reduções anteriores,
como as do ph em f e outras anomalias simplificadoras de outros
acordos, mas que, de facto, tirando alguns pormenores de utilidade simplificativa
(como, por exemplo, a supressão do hífen nas formas monossilábicas do presente
do indicativo do verbo haver – hei-de, hás-de, há-de – justificável cientificamente,
mas gerando confusão com as outras formas polissilábicas que o não requerem) revelam
um absurdo desprezo por factores de etimologia necessários foneticamente e dando
origem a autênticas alarvidades gráficas – caso de Egito (sem p, que se não
pronuncia) contrariamente a egípcio com p, que se pronuncia. Outras razões invoca José Pacheco Pereira no seu artigo perfeito,
quer em argumentação, quer numa justa cólera que o faz dedicar o seu texto à
memória de Vasco Graça Moura, tão grande batalhador contra esse Acordo da nossa estreiteza mental e cívica.
O texto de contestação ao de P.P.,
de Maria Helena Mira Mateus, professora catedrática jubilada da
Faculdade de Letras de Lisboa, levou, repito, 9 meses e 2 dias a nascer, mas
não é um bebé escorreito, apresentando razões – vagidos - que José Pacheco
Pereira enfileirará no tipo de argumentação própria da extrema imaturidade
deste povo que nós somos, apátrida como nos considera o articulista, e, acima
de tudo, boçal e cada vez mais enfermo intelectualmente, como se observa a cada
passo, hoje mais do que nunca, com a expansão dos escritos pela Internet,
que, não tarda, requererão um novo Acordo Ortográfico de adaptação adaptação democrática a
uma oralidade cada vez mais primária. Com efeito, quando a
professora catedrática jubilada informa que deve haver adaptação da língua escrita
à língua oral, estamos a regressar ao tempo das cavernas, ou dos papuas, ou
outros que tais. Nem apetece mais
comentar tal raciocínio, que, aliás, se socorre dos argumentos de autoridade - de
Lindley Cintra – os de ordem económica, da nossa submissão à riqueza de países
como o Brasil ou Angola, os de ordem prática, da nossa submissão à cada vez
maior pobreza espiritual da nossa gente. Se até há povos que nem escrita têm,
aponta a catedrática jubilada, suponho que de júbilo! Quem somos nós para
sermos mais do que esses povos sem escrita? O que temos é que safar o coiro!
Esperemos que a Europa nos não despreze mais, depois deste artigo, no caso de o ler - há sempre os curiosos das aberrações - parido nove
meses depois do de José Pacheco Pereira, e nos vá alimentando a gula. Ou mesmo a fome. Não diz Maria Helena Mateus
que o que é preciso é safar os pobrezinhos? Ou coisa parecida, do ideário
conhecido.
Leiamos: Mas, ainda que o amor à língua antiga pudesse impulsionar desejos de retrocesso do português, pode colocar-se esse desideratum como um dos grandes problemas que atingem hoje o país? Se esta pergunta fosse apresentada para resposta ao Dr. Pacheco Pereira estou convencida de que ele não quereria que a anulação do acordo ortográfico passasse à frente das soluções a estudar para minorar as diferenças entre classes sociais, ou para alterar o modelo económico ou, ainda, para enriquecer e adequar o modelo educacional para as novas gerações.
Leiamos: Mas, ainda que o amor à língua antiga pudesse impulsionar desejos de retrocesso do português, pode colocar-se esse desideratum como um dos grandes problemas que atingem hoje o país? Se esta pergunta fosse apresentada para resposta ao Dr. Pacheco Pereira estou convencida de que ele não quereria que a anulação do acordo ortográfico passasse à frente das soluções a estudar para minorar as diferenças entre classes sociais, ou para alterar o modelo económico ou, ainda, para enriquecer e adequar o modelo educacional para as novas gerações.
Nem
vale a pena mais trajectória palavrosa, para todos os efeitos, inútil. Dá para
perceber as razões do Acordo - guinchos de hominídeo recolector, indiferente a
tudo o que não seja a utilidade prática e imediata da comunicação, que nos faça
penetrar noutros mundos. De mão estendida, de preferência.
Os
apátridas da língua que nos governam
À memória do Vasco Graça Moura
Não sei se são válidos ou não os argumentos jurídicos que
discutem a data da aplicação efectiva do Acordo Ortográfico [AO], se nestes
dias, ou em 2016. Isso não me interessa em particular, a não ser para registar
a pressa suspeita em o aplicar contra tudo e contra todos. Mas uma coisa
eu sei ao certo: é que o desprezo concreto do bem que ele pretende regular, a
língua portuguesa, é evidente nessa mistura sinistra de inércia, indiferença e
imposição burocrática com que se pretende obrigar os portugueses a escrever de
uma forma cada vez mais abastardada.
Na sua intenção original, o Acordo pretendia ser um acto
de política externa, uma forma de manter algum controlo sobre o português
escrito pelo mundo todo, como forma de garantir uma réstia de influência
portuguesa num conjunto de países que, cada vez mais, se afastam da
centralidade portuguesa, em particular o Brasil. Se é um “acordo” é suposto que
seja com alguém. No entanto, desse ponto de vista, o AO é um grande falhanço
diplomático, visto que está neste momento em vigor apenas em Portugal, com
promessas do Brasil e Cabo Verde, esquecimento em Moçambique, Guiné Bissau, S.
Tomé e Timor-Leste, e recusa activa em Angola. Nalguns casos há protelamentos
sucessivos, implementações adiadas e uma geral indiferença e má vontade. Para
além disso, nenhuma implementação do AO, vagamente parecida com a pressão
burocrática que tem sido feita em Portugal, existe em nenhum país, a começar
por aquele que parecia ser o seu principal beneficiado, o Brasil. Ratificado
ele foi, aplicado, não.
Mas com o mal ou a sorte (mais a sorte que o mal) dos
outros podemos nós bem, mas ele revela o absurdo do zelo português num AO
falhado e que nos isolará ainda mais. Onde os estragos serão mais
significativos é em Portugal, para os portugueses, e para a sua língua. É que o
Acordo Ortográfico não é matéria científica de linguistas nem, do meu ponto de
vista, deve ser discutido nessa base, porque se trata de um acto cultural que
não é técnico, e como acto cultural em que o Estado participa, é um acto
político e as suas consequências são identitárias. Não me parece aliás que
colha o historicismo habitual, como o daqueles que lembram que farmácia já se
escreveu “pharmácia”, porque as circunstâncias políticas e nacionais da
actualidade estão muito longe de ser comparáveis com as dos Acordos anteriores.
É um problema da nossa identidade como portugueses que
está em causa, na forma como nos reconhecemos na nossa língua, na sua vida, na
sua história e na sua proximidade das fontes vivas de onde nasceu: o latim. Não
é irrelevante para o português e a sua pujança, a sua capacidade de manter
laços com a sua origem no latim e assim comunicar com toda a riqueza do mundo
romano e, por essa via, com o grego, ou seja, o mundo clássico onde nasceu a
nossa cultura ocidental. Esta comunicação entre uma língua e a cultura que
transporta é posta em causa quando a engenharia burocrática da língua a afasta
da sua marca de origem, mesmo que essas marcas sejam “mudas” na fala, mas estão
visíveis nas palavras. As palavras têm imagem e não apenas som, são vistas por
nós e pela nossa cabeça, e essa imagem “antiga” puxa culturalmente para cima e
não para baixo.
O AO é mais um passo no ataque generalizado que se faz
hoje contra as humanidades, contra o saber clássico e dos clássicos, contra o
melhor das nossas tradições. Não é por caso que ele colhe em políticos
modernaços e ignorantes, neste e nos governos anteriores, que naturalmente são
indiferentes a esse património que eles consideram caduco, ultrapassado e
dispensável. Chegado aqui recordo-me sempre do “jovem” do Impulso Jovem aos
saltos em cima do palco a dizer “ó meu isso não serve para nada”, sendo que o
“isso” era a história. Esta é a gente do AO, e, como de costume, encontram
sempre sábios professores ao seu lado, os mesmos que vêem as suas universidades
a serem cortadas, em nome da “empregabilidade”, da investigação nas humanidades
e em sectores como a física teórica e a matemática pura, teorias sem interesse
para os negócios. “Ó meu, isso não interessa para nada!”.
Mas estamos em 2015 e hoje o português de Portugal está
sitiado e numa situação defensiva. Não é no Brasil que o português está em
risco, nem em Angola, Cabo Verde, Moçambique ou Timor. Aí os riscos do português
são os riscos de sempre e vêm da extensão da colonização, da sua relação com as
línguas autóctones, dos crioulos que gerou, e do modo como penetrou nas elites
e no povo desses países, se é ou não a língua de cultura ou a língua da
administração e do Estado. E não é certamente no Brasil que o português está na
defensiva, bem pelo contrário, é no Brasil que o português está num momento
particularmente criativo.
Quer se goste quer não, a locomotiva da língua
portuguesa não é a academia portuguesa, mas a pujança do povo e da sociedade
brasileira, a sua criatividade e dinamismo. E isso fará com que o português
escrito no Brasil esteja sempre para lá de qualquer AO, como aliás aconteceu no
passado e vai acontecer no futuro. É o mais fútil dos exercícios, até porque
enquanto o português de Portugal for para o português do Brasil como o latim é
para o português, ainda tem um papel. Se abastardamos o português de Portugal,
nem esse papel teremos, a não ser escrevermos um “brasileiro” mais pobre que
não serve de exemplo a ninguém.
A vitalidade do nosso português está nos seus grandes
escritores, Miranda, Camões, Bernardes, Vieira, Herculano, Camilo, Eça, todos
conhecedores do seu Virgílio, do seu Horácio, do seu Ovídio, mesmo do seu
escolar Tácito, César ou Salústio. Todos lidos, estimados e estudados no
Brasil, que por eles faz muito mais do que nós alguma vez fizemos, por exemplo,
com Machado de Assis. E é também por isso, que a maioria dos escritores
portugueses contemporâneos recusa o AO, como quase toda a gente que está na
escrita e vive pela escrita e é independente da burocracia do estado. Todos
sabem que o português permite todas as rupturas criativas, dos simbolistas ao
Sena dos Sonetos a Afrodite Anadiómena – “E, quando prolifarem as sangrárias,/
lambidonai tutílicos anárias,/ tão placitantos como o pedipeste”, – ao “U Omãi
Qe Dava Pulus” de Nuno Bragança. Criativamente a nossa língua vernácula suporta
e bem tudo, menos que seja institucionalizada com uma ortografia pobre e alheia
à sua história.
O futuro do português como língua já está há muito
fora do nosso alcance, mas o português que se fala e escreve em Portugal, desse
ainda podemos cuidar. É que é em Portugal que o português está em risco, está
na defensiva, e o AO é mais uma machadada nessa defesa de último baluarte. É em
Portugal que um Big Brother invisível, que se chama sistema educativo, retira
todos os anos centenas de palavras do português falado, afastando das escolas
os nossos escritores do passado e substituindo-os por textos jornalísticos. É
em Portugal que uma linguagem cada vez mais estereotipada domina os media, com
a substituição dos argumentos pelos soundbites, matando qualquer forma mais
racional e menos sensacional de conversação. É em Portugal que formas guturais
de escrita, nos SMS e nos 140 caracteres do Twitter, enviados às centenas todos
os dias por tudo que é adolescente, ou seja também por muitos adultos, se
associa à capacidade de escrever um texto, seja uma mera reclamação a uma
descrição de viagem. É neste Portugal que, em vez de se puxar para cima, em
nome da cultura e da sua complexidade, em nome da língua e da sua criatividade,
em nome da conversação entre nós todos que é a democracia, se puxa para baixo
não porque os povos o desejem, mas porque há umas elites que acham que a única
pedagogia que existe é a facilidade.
E é neste Portugal que
uma geração de apátridas da língua, todos muito destros em declamar que a “a
nossa pátria é a língua portuguesa”, minimizam a nossa identidade e a nossa
liberdade, que vem dessa coisa fundamental que é falar e escrever com a fluidez
sonora do português, mas também com a complexidade da sua construção
ortográfica. É como se estivéssemos condenados a escrever como se urrássemos em
vez de falar.
O abastardamento da língua segundo
Pacheco Pereira
Maria Helena Mira Mateus
Público, 17/2/2016
Ainda que o amor à língua antiga pudesse impulsionar
desejos de retrocesso do português, pode colocar-se esse desideratum como um
dos grandes problemas que atingem hoje o país?
Acordos e desacordos na escrita do
português
O acordo ortográfico celebrado entre Portugal e Brasil em 1986
levantou acesa polémica há cerca de 30 anos e, pelo visto, continua a
despoletar, em Portugal, posições dramáticas contrárias a esse acordo e debates
inflamados. Estas posições não seriam de surpreender se os que pretendem que se
anule o acordo não o apresentassem como uma questão maior que afeta a conduta
dos portugueses ou os princípios do seu funcionamento social. No entanto, com
surpresa se verifica que comentadores como o Dr. Pacheco Pereira (P.P.) emitem
opiniões sobre o acordo ortográfico que, no mínimo, merecem ser contraditadas
por quem trabalha nesta área. Lembre-se, antes de passar à explanação do
problema, que a história das reformas e dos acordos ortográficos entre Portugal
e Brasil é longa, tendo como início, em 1911, uma sugestão de reforma seguida
de um primeiro acordo proposto pela Academia Brasileira em 1931 e replicado
pela Academia Portuguesa em 1945. Em 1973 e 1975 foi esboçado um novo acordo
que emanou de discussões levadas a efeito num seminário de grande repercussão
realizado em Coimbra em 1967. Este foi o ponto de partida para o acordo que
surgiu como trabalho básico em 1986. É sobre as reações que tem suscitado que
incide este texto.
Disse Pacheco Pereira, usando a autoridade que lhe
reconhecemos, que o “novo” acordo ortográfico provoca um “abastardamento da
língua portuguesa”. A primeira observação a fazer diz respeito à palavra
utilizada: “abastardamento” da língua”? O que significa esta expressão? O
dicionário informa-nos que o “abastardamento” trata de “degeneração ou perda da
genuinidade”. Considera então P.P que a variação da língua no decorrer dos
séculos, ou melhor, a sua evolução é uma degeneração? Em relação a quê? Ao
latim vulgar, ao português do século XV ou do século XVIII? Ora ninguém de
boa-fé poderia afirmar que deveríamos voltar à forma de falar de há 500 anos,
ou mesmo ao século XIX e à época da polémica entre Leite de Vasconcellos e
Cândido de Figueiredo precisamente sobre ortografia. Será que algumas destas
posições contrárias à mudança se conformam com a imagem nostálgica de um
passado que Pacheco Pereira julga “abastardado”? Mas, ainda que o amor à
língua antiga pudesse impulsionar desejos de retrocesso do português, pode
colocar-se esse desideratum como um dos grandes
problemas que atingem hoje o país? Se esta pergunta fosse apresentada para
resposta ao Dr. Pacheco Pereira estou convencida de que ele não quereria que a
anulação do acordo ortográfico passasse à frente das soluções a estudar para
minorar as diferenças entre classes sociais, ou para alterar o modelo económico
ou, ainda, para enriquecer e adequar o modelo educacional para as novas
gerações.
A unificação e a simplificação da escrita
Se admitirmos que a anulação do acordo ortográfico não se
inclui nos grandes objetivos do atual desenvolvimento do país, vale a pena
rever algumas das finalidades que estiveram na base da sua elaboração. Sirvo-me
para tal de um artigo publicado em junho de 1986, da autoria de Lindley Cintra,
um dos signatários do acordo. Refiro apenas os objetivos que Cintra considerava
prioritários: a unificação da escrita
produzida em Portugal e no Brasil e a simplificação de diversas
grafias. Diz Cintra: “Pode e deve pois considerar-se indispensável e urgente
que se chegue a um verdadeiro e eficaz acordo sobre tal matéria, ainda que para
isso haja que sacrificar preconceitos e hábitos há muito adquiridos, os quais
poderão causar uma inicial e compreensível estranheza perante uma ou outra das
medidas a adotar. Além da extrema conveniência de ordem prática, deve pesar-se
nesta decisão que, sendo a grafia secundária em relação à oralidade e sendo uma
representação sempre meramente convencional desta, não é mais nem menos
científica uma grafia simplificada, em que se renuncia a certos hábitos
gráficos apoiados numa tradição mais ou menos longa, do que uma grafia dita
etimológica, a qual, além disso, para o ser efetiva e coerentemente, exigiria o
regresso puro e simples a outros hábitos há muito abandonados.” [1]
No seguimento desta argumentação, o Professor Lindley Cintra
dá a conhecer a proposta de simplificação que foi aprovada na reunião de 1986 e
que tem como aspeto principal a supressão das chamadas ‘consoantes mudas’. “Com
efeito, a vantagem de conservar a ‘letra muda’ para indicar que é aberta a
vogal anterior átona é uma vantagem mínima, se considerarmos:
a)– Que ela não compensa o inconveniente, bem mais grave, da
disparidade das grafias em Portugal e no Brasil, e que é insensato pretender
levar um brasileiro a escrever actor e acção já que, mesmo sem o c ‘mudo’, as grafias ator
e ação representam fielmente a sua
pronúncia. [a tor], [a são].
b)– Que escrevemos em Portugal padeiro,
corar, caveira, credor, geração, quaresmal, sarmento, especar, especular, aguar,
aguadeiro, aguaceiro, esfomeado, retaguarda, agachar, relator, dilação,
retrovisor e uma infinidade de outras palavras, sobretudo de
carácter culto, mas em grande parte generalizadas com vogais átonas abertas,
não assinaladas por ‘letra muda’, nem qualquer outro sinal gráfico, sem que
isso cause qualquer perturbação.”
Como corolário das palavras de Lindley Cintra quero pôr em
relevo o seguinte: A existência de uma ortografia comum não implica que
passemos a utilizar a mesma forma de falar mas apenas uma escrita, ou melhor,
uma só ortografia. Note-se que num único país como Portugal, por exemplo,
existe apenas uma ortografia e, no entanto, ocorrem variações na língua que em
certos aspetos estão muito afastadas da norma ortográfica. (basta pensar nos dialetos
setentrionais e em palavras como viagem [b]iagem /[v]iagem ou
em outras características de variação).
Poderíamos agora acrescentar ao interesse da unificação e
simplificação da ortografia do português a feição “económica” da unificação da
escrita, integrando nessa unificação os países que têm o português como língua
oficial e reforçando assim a perspetiva que esteve na base da criação da CPLP.
Um dos principais objetivos desta Comunidade é, por natureza, a preocupação com
o enriquecimento da língua portuguesa no campo da ciência e da cultura, e no
uso quotidiano dos países que a integram [2]. Num artigo publicado em 2011 eu
própria manifestei concordância com este ponto de vista: “Numa ocasião em que
tanto se fala sobre problemas da nossa economia, é um erro esquecer que o
conhecimento e o uso do português constituem uma mais-valia no campo das
interações económicas e um dos mais importantes investimentos que cabem à
iniciativa governamental e coletiva” [3]. No âmbito desta afirmação cabe a
convicção de que a unificação da escrita entre países que usam a mesma língua,
e a simplificação da sua ortografia, concorrem para uma mais fácil expansão dos
textos escritos nessa língua, neste caso o português.
Ora no sentido de aumentar o prestígio da língua portuguesa e
no sentido da sua difusão tem-se avançado pouco em Portugal. Na ausência de
estímulos para a criação de meios que reforcem e difundam a língua portuguesa,
é fundamental que se proteja a produção em português através de uma política de
incentivo à tradução e à realização de obras de base para a formação escolar, e
à produção de obras teóricas e de aplicação em todos os campos do saber. Estas
formas de incentivar a utilização da língua portuguesa são facilitadas pelas
mudanças preconizadas pelo novo acordo, e justificam, em Portugal e no Brasil,
a existência de uma ortografia que converge para a unificação e para a
simplicidade [4].
Língua e ortografia
A frase que motivou este texto – o abastardamento da língua pela aplicação do acordo ortográfico – mostra, por fim, uma confusão entre língua e ortografia, confusão frequente que não é exclusiva de Pacheco Pereira. Na verdade, é de lamentar que quem usa a língua em que aprendeu a falar e que dela se serve como meio de transmitir conhecimentos, reflexões e paixões da alma, possa confundi-la com a sua representação escrita que é o meio em que aprendeu a escrever. A aceitarmos esta confusão teríamos que aceitar também que uma língua que não tem ortografia não existe como língua. Como se sabe, a língua identifica o ser humano e existe em todas as sociedades, enquanto a escrita está restrita a determinados estádios de desenvolvimento de uma sociedade, razão pela qual existem línguas sem escrita tal como há pessoas que não aprenderam a escrever. O domínio da língua na sua forma de expressão verbal contribui para o desenvolvimento das capacidades lógica, afetiva e estética dos indivíduos; coopera na sua tomada de consciência de um adequado comportamento em situação de intercomunicação; possibilita o esclarecimento de pontos obscuros da história; serve a ciência e permite o acesso ao conhecimento psicológico e social do indivíduo. Enfim: a língua está presente em todas as formas da nossa atividade.
A frase que motivou este texto – o abastardamento da língua pela aplicação do acordo ortográfico – mostra, por fim, uma confusão entre língua e ortografia, confusão frequente que não é exclusiva de Pacheco Pereira. Na verdade, é de lamentar que quem usa a língua em que aprendeu a falar e que dela se serve como meio de transmitir conhecimentos, reflexões e paixões da alma, possa confundi-la com a sua representação escrita que é o meio em que aprendeu a escrever. A aceitarmos esta confusão teríamos que aceitar também que uma língua que não tem ortografia não existe como língua. Como se sabe, a língua identifica o ser humano e existe em todas as sociedades, enquanto a escrita está restrita a determinados estádios de desenvolvimento de uma sociedade, razão pela qual existem línguas sem escrita tal como há pessoas que não aprenderam a escrever. O domínio da língua na sua forma de expressão verbal contribui para o desenvolvimento das capacidades lógica, afetiva e estética dos indivíduos; coopera na sua tomada de consciência de um adequado comportamento em situação de intercomunicação; possibilita o esclarecimento de pontos obscuros da história; serve a ciência e permite o acesso ao conhecimento psicológico e social do indivíduo. Enfim: a língua está presente em todas as formas da nossa atividade.
A escrita traz outras vantagens à atividade sociocultural,
vantagens que estiveram na raiz da sua criação como meio de comunicação e
impulsionaram o lugar de relevo que hoje ocupa nos países que a utilizam: ela
participa no enriquecimento do indivíduo e da sociedade que a utiliza pela
clarificação do pensamento e das emoções; ela viabiliza, pela sua própria
natureza, a comunicação a distância no espaço e no tempo; ela permite a
manutenção da expressão de ideias e sentimentos, ela colabora na explicitação
das formas obscuras do pensamento; ela fornece instrumentos que permitem várias
formas de análise da utilização da língua.
Ainda que todos estes aspetos da importância da escrita sejam
relevantes, devemos interpretar as reações às mudanças na ortografia de uma
língua como o olhar saudoso em busca do passado, da tradição, da raiz. Essa
nostalgia é provocada em todos os campos de ação pela quebra da tradição ou
pelo afastamento do que julgamos ser a fonte que temos o dever de preservar.
Não podemos no entanto furtar-nos à necessidade de viver no tempo atual ainda
que saibamos que aquilo por que lutamos no aqui e agora virá a modificar-se no
tempo vindouro.
[1] In Expresso, 28 de junho de 1986
[2] Difícil se torna compreender a integração da Guiné
Equatorial na CPLP
[3] Ver, por exemplo, o jornal Expresso,
janeiro de 2011.
[4] Foi certamente com esta finalidade que se considerou, no
Brasil, vantagem na supressão do treme (linguista – linguista) e na eliminação
do diacrítico em palavras como idéia – ideia etc.
Professora Catedrática Jubilada da
Faculdade de Letras de Lisboa
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