quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Agora percebi



José Pacheco Pereira escreveu um texto sobre o Acordo Ortográfico como abastardador da língua portuguesa, publicado no Público em 15/5/2015. Maria Helena Mira Mateus a ele responde, no mesmo  Público, em 17/2/2016.  Exactamente, nove meses depois - mais dois dias - levou a gestação da sua resposta que nos chegou hoje.  Nove meses é o tempo ideal para um parto normal, não se trata, pois, de um aborto este seu texto, ainda por cima com mais dois dias de gestação.
O texto de José Pacheco Pereira é impecável - quer no sentido crítico que arrasa não só os governos indiferentes, como o grupo elaborador do Acordo, que devia ser de respeitabilidade intelectual e se revela de ignara indiferença e desrespeito apátridas por uma língua com origens tão clássicas como as do resto dos países europeus de idênticas origens e para quem seria crime destruí-las no que possuem de nobreza erudita original; quer na argumentação científica que contesta a validez desse acordo; quer na referência ao desprezo ou indiferença doutros países da lusofonia que o não seguem; quer no apregoado paralelo com reduções anteriores, como as do ph em f e outras anomalias simplificadoras de outros acordos, mas que, de facto, tirando alguns pormenores de utilidade simplificativa (como, por exemplo, a supressão do hífen nas formas monossilábicas do presente do indicativo do verbo haver – hei-de, hás-de, há-de – justificável cientificamente, mas gerando confusão com as outras formas polissilábicas que o não requerem) revelam um absurdo desprezo por factores de etimologia necessários foneticamente e dando origem a autênticas alarvidades gráficas – caso de Egito (sem p, que se não pronuncia) contrariamente a egípcio com p, que se pronuncia. Outras  razões  invoca José Pacheco Pereira no seu artigo perfeito, quer em argumentação, quer numa justa cólera que o faz dedicar o seu texto à memória de Vasco Graça Moura, tão grande batalhador contra esse Acordo da nossa estreiteza mental e cívica.
O texto de contestação ao de P.P., de Maria Helena Mira Mateus, professora catedrática jubilada da Faculdade de Letras de Lisboa, levou, repito, 9 meses e 2 dias a nascer, mas não é um bebé escorreito, apresentando razões – vagidos - que José Pacheco Pereira enfileirará no tipo de argumentação própria da extrema imaturidade deste povo que nós somos, apátrida como nos considera o articulista, e, acima de tudo, boçal e cada vez mais enfermo intelectualmente, como se observa a cada passo, hoje mais do que nunca, com a expansão dos escritos pela Internet, que, não tarda, requererão um novo Acordo Ortográfico de adaptação adaptação democrática a uma oralidade cada vez mais primária. Com efeito, quando a professora catedrática jubilada informa que deve haver adaptação da língua escrita à língua oral, estamos a regressar ao tempo das cavernas, ou dos papuas, ou outros que tais.  Nem apetece mais comentar tal raciocínio, que, aliás, se socorre dos argumentos de autoridade - de Lindley Cintra – os de ordem económica, da nossa submissão à riqueza de países como o Brasil ou Angola, os de ordem prática, da nossa submissão à cada vez maior pobreza espiritual da nossa gente. Se até há povos que nem escrita têm, aponta a catedrática jubilada, suponho que de júbilo! Quem somos nós para sermos mais do que esses povos sem escrita? O que temos é que safar o coiro! Esperemos que a Europa nos não despreze mais, depois deste artigo, no caso de o ler - há sempre os curiosos das aberrações - parido nove meses depois do de José Pacheco Pereira, e nos vá alimentando a gula.  Ou mesmo a fome. Não diz Maria Helena Mateus que o que é preciso é safar os pobrezinhos? Ou coisa parecida, do ideário conhecido.
Leiamos: Mas, ainda que o amor à língua antiga pudesse impulsionar desejos de retrocesso do português, pode colocar-se esse desideratum como um dos grandes problemas que atingem hoje o país? Se esta pergunta fosse apresentada para resposta ao Dr. Pacheco Pereira estou convencida de que ele não quereria que a anulação do acordo ortográfico passasse à frente das soluções a estudar para minorar as diferenças entre classes sociais, ou para alterar o modelo económico ou, ainda, para  enriquecer e adequar o modelo educacional para as novas gerações.


Nem vale a pena mais trajectória palavrosa, para todos os efeitos, inútil. Dá para perceber as razões do Acordo - guinchos de hominídeo recolector, indiferente a tudo o que não seja a utilidade prática e imediata da comunicação, que nos faça penetrar noutros mundos. De mão estendida, de preferência.
 
Os apátridas da língua que nos governam
Público, 16/05/2015

À memória do Vasco Graça Moura

Não sei se são válidos ou não os argumentos jurídicos que discutem a data da aplicação efectiva do Acordo Ortográfico [AO], se nestes dias, ou em 2016. Isso não me interessa em particular, a não ser para registar a pressa suspeita em o aplicar contra tudo e contra todos. Mas uma coisa eu sei ao certo: é que o desprezo concreto do bem que ele pretende regular, a língua portuguesa, é evidente nessa mistura sinistra de inércia, indiferença e imposição burocrática com que se pretende obrigar os portugueses a escrever de uma forma cada vez mais abastardada.
Na sua intenção original, o Acordo pretendia ser um acto de política externa, uma forma de manter algum controlo sobre o português escrito pelo mundo todo, como forma de garantir uma réstia de influência portuguesa num conjunto de países que, cada vez mais, se afastam da centralidade portuguesa, em particular o Brasil. Se é um “acordo” é suposto que seja com alguém. No entanto, desse ponto de vista, o AO é um grande falhanço diplomático, visto que está neste momento em vigor apenas em Portugal, com promessas do Brasil e Cabo Verde, esquecimento em Moçambique, Guiné Bissau, S. Tomé e Timor-Leste, e recusa activa em Angola. Nalguns casos há protelamentos sucessivos, implementações adiadas e uma geral indiferença e má vontade. Para além disso, nenhuma implementação do AO, vagamente parecida com a pressão burocrática que tem sido feita em Portugal, existe em nenhum país, a começar por aquele que parecia ser o seu principal beneficiado, o Brasil. Ratificado ele foi, aplicado, não.
Mas com o mal ou a sorte (mais a sorte que o mal) dos outros podemos nós bem, mas ele revela o absurdo do zelo português num AO falhado e que nos isolará ainda mais. Onde os estragos serão mais significativos é em Portugal, para os portugueses, e para a sua língua. É que o Acordo Ortográfico não é matéria científica de linguistas nem, do meu ponto de vista, deve ser discutido nessa base, porque se trata de um acto cultural que não é técnico, e como acto cultural em que o Estado participa, é um acto político e as suas consequências são identitárias. Não me parece aliás que colha o historicismo habitual, como o daqueles que lembram que farmácia já se escreveu “pharmácia”, porque as circunstâncias políticas e nacionais da actualidade estão muito longe de ser comparáveis com as dos Acordos anteriores.
É um problema da nossa identidade como portugueses que está em causa, na forma como nos reconhecemos na nossa língua, na sua vida, na sua história e na sua proximidade das fontes vivas de onde nasceu: o latim. Não é irrelevante para o português e a sua pujança, a sua capacidade de manter laços com a sua origem no latim e assim comunicar com toda a riqueza do mundo romano e, por essa via, com o grego, ou seja, o mundo clássico onde nasceu a nossa cultura ocidental. Esta comunicação entre uma língua e a cultura que transporta é posta em causa quando a engenharia burocrática da língua a afasta da sua marca de origem, mesmo que essas marcas sejam “mudas” na fala, mas estão visíveis nas palavras. As palavras têm imagem e não apenas som, são vistas por nós e pela nossa cabeça, e essa imagem “antiga” puxa culturalmente para cima e não para baixo.
O AO é mais um passo no ataque generalizado que se faz hoje contra as humanidades, contra o saber clássico e dos clássicos, contra o melhor das nossas tradições. Não é por caso que ele colhe em políticos modernaços e ignorantes, neste e nos governos anteriores, que naturalmente são indiferentes a esse património que eles consideram caduco, ultrapassado e dispensável. Chegado aqui recordo-me sempre do “jovem” do Impulso Jovem aos saltos em cima do palco a dizer “ó meu isso não serve para nada”, sendo que o “isso” era a história. Esta é a gente do AO, e, como de costume, encontram sempre sábios professores ao seu lado, os mesmos que vêem as suas universidades a serem cortadas, em nome da “empregabilidade”, da investigação nas humanidades e em sectores como a física teórica e a matemática pura, teorias sem interesse para os negócios. “Ó meu, isso não interessa para nada!”.
Mas estamos em 2015 e hoje o português de Portugal está sitiado e numa situação defensiva. Não é no Brasil que o português está em risco, nem em Angola, Cabo Verde, Moçambique ou Timor. Aí os riscos do português são os riscos de sempre e vêm da extensão da colonização, da sua relação com as línguas autóctones, dos crioulos que gerou, e do modo como penetrou nas elites e no povo desses países, se é ou não a língua de cultura ou a língua da administração e do Estado. E não é certamente no Brasil que o português está na defensiva, bem pelo contrário, é no Brasil que o português está num momento particularmente criativo.
Quer se goste quer não, a locomotiva da língua portuguesa não é a academia portuguesa, mas a pujança do povo e da sociedade brasileira, a sua criatividade e dinamismo. E isso fará com que o português escrito no Brasil esteja sempre para lá de qualquer AO, como aliás aconteceu no passado e vai acontecer no futuro. É o mais fútil dos exercícios, até porque enquanto o português de Portugal for para o português do Brasil como o latim é para o português, ainda tem um papel. Se abastardamos o português de Portugal, nem esse papel teremos, a não ser escrevermos um “brasileiro” mais pobre que não serve de exemplo a ninguém.
A vitalidade do nosso português está nos seus grandes escritores, Miranda, Camões, Bernardes, Vieira, Herculano, Camilo, Eça, todos conhecedores do seu Virgílio, do seu Horácio, do seu Ovídio, mesmo do seu escolar Tácito, César ou Salústio. Todos lidos, estimados e estudados no Brasil, que por eles faz muito mais do que nós alguma vez fizemos, por exemplo, com Machado de Assis. E é também por isso, que a maioria dos escritores portugueses contemporâneos recusa o AO, como quase toda a gente que está na escrita e vive pela escrita e é independente da burocracia do estado. Todos sabem que o português permite todas as rupturas criativas, dos simbolistas ao Sena dos Sonetos a Afrodite Anadiómena – “E, quando prolifarem as sangrárias,/ lambidonai tutílicos anárias,/ tão placitantos como o pedipeste”, – ao “U Omãi Qe Dava Pulus” de Nuno Bragança. Criativamente a nossa língua vernácula suporta e bem tudo, menos que seja institucionalizada com uma ortografia pobre e alheia à sua história.
O futuro do português como língua já está há muito fora do nosso alcance, mas o português que se fala e escreve em Portugal, desse ainda podemos cuidar. É que é em Portugal que o português está em risco, está na defensiva, e o AO é mais uma machadada nessa defesa de último baluarte. É em Portugal que um Big Brother invisível, que se chama sistema educativo, retira todos os anos centenas de palavras do português falado, afastando das escolas os nossos escritores do passado e substituindo-os por textos jornalísticos. É em Portugal que uma linguagem cada vez mais estereotipada domina os media, com a substituição dos argumentos pelos soundbites, matando qualquer forma mais racional e menos sensacional de conversação. É em Portugal que formas guturais de escrita, nos SMS e nos 140 caracteres do Twitter, enviados às centenas todos os dias por tudo que é adolescente, ou seja também por muitos adultos, se associa à capacidade de escrever um texto, seja uma mera reclamação a uma descrição de viagem. É neste Portugal que, em vez de se puxar para cima, em nome da cultura e da sua complexidade, em nome da língua e da sua criatividade, em nome da conversação entre nós todos que é a democracia, se puxa para baixo não porque os povos o desejem, mas porque há umas elites que acham que a única pedagogia que existe é a facilidade.
E é neste Portugal que uma geração de apátridas da língua, todos muito destros em declamar que a “a nossa pátria é a língua portuguesa”, minimizam a nossa identidade e a nossa liberdade, que vem dessa coisa fundamental que é falar e escrever com a fluidez sonora do português, mas também com a complexidade da sua construção ortográfica. É como se estivéssemos condenados a escrever como se urrássemos em vez de falar.

O abastardamento da língua segundo Pacheco Pereira
Maria Helena Mira Mateus
Público, 17/2/2016
Ainda que o amor à língua antiga pudesse impulsionar desejos de retrocesso do português, pode colocar-se esse desideratum como um dos grandes problemas que atingem hoje o país?

Acordos e desacordos na escrita do português

O acordo ortográfico celebrado entre Portugal e Brasil em 1986 levantou acesa polémica há cerca de 30 anos e, pelo visto, continua a despoletar, em Portugal, posições dramáticas contrárias a esse acordo e debates inflamados. Estas posições não seriam de surpreender se os que pretendem que se anule o acordo não o apresentassem como uma questão maior que afeta a conduta dos portugueses ou os princípios do seu funcionamento social. No entanto, com surpresa se verifica que comentadores como o Dr. Pacheco Pereira (P.P.) emitem opiniões sobre o acordo ortográfico que, no mínimo, merecem ser contraditadas por quem trabalha nesta área. Lembre-se, antes de passar à explanação do problema, que a história das reformas e dos acordos ortográficos entre Portugal e Brasil é longa, tendo como início, em 1911, uma sugestão de reforma seguida de um primeiro acordo proposto pela Academia Brasileira em 1931 e replicado pela Academia Portuguesa em 1945. Em 1973 e 1975 foi esboçado um novo acordo que emanou de discussões levadas a efeito num seminário de grande repercussão realizado em Coimbra em 1967. Este foi o ponto de partida para o acordo que surgiu como trabalho básico em 1986. É sobre as reações que tem suscitado que incide este texto.
Disse Pacheco Pereira, usando a autoridade que lhe reconhecemos, que o “novo” acordo ortográfico provoca um “abastardamento da língua portuguesa”. A primeira observação a fazer diz respeito à palavra utilizada: “abastardamento” da língua”? O que significa esta expressão? O dicionário informa-nos que o “abastardamento” trata de “degeneração ou perda da genuinidade”. Considera então P.P que a variação da língua no decorrer dos séculos, ou melhor, a sua evolução é uma degeneração? Em relação a quê? Ao latim vulgar, ao português do século XV ou do século XVIII? Ora ninguém de boa-fé poderia afirmar que deveríamos voltar à forma de falar de há 500 anos, ou mesmo ao século XIX e à época da polémica entre Leite de Vasconcellos e Cândido de Figueiredo precisamente sobre ortografia. Será que algumas destas posições contrárias à mudança se conformam com a imagem nostálgica de um passado que Pacheco Pereira julga “abastardado”? Mas, ainda que o amor à língua antiga pudesse impulsionar desejos de retrocesso do português, pode colocar-se esse desideratum como um dos grandes problemas que atingem hoje o país? Se esta pergunta fosse apresentada para resposta ao Dr. Pacheco Pereira estou convencida de que ele não quereria que a anulação do acordo ortográfico passasse à frente das soluções a estudar para minorar as diferenças entre classes sociais, ou para alterar o modelo económico ou, ainda, para  enriquecer e adequar o modelo educacional para as novas gerações.

A unificação e a simplificação da escrita

Se admitirmos que a anulação do acordo ortográfico não se inclui nos grandes objetivos do atual desenvolvimento do país, vale a pena rever algumas das finalidades que estiveram na base da sua elaboração. Sirvo-me para tal de um artigo publicado em junho de 1986, da autoria de Lindley Cintra, um dos signatários do acordo. Refiro apenas os objetivos que Cintra considerava prioritários: a unificação da escrita produzida em Portugal e no Brasil e a simplificação de diversas grafias. Diz Cintra: “Pode e deve pois considerar-se indispensável e urgente que se chegue a um verdadeiro e eficaz acordo sobre tal matéria, ainda que para isso haja que sacrificar preconceitos e hábitos há muito adquiridos, os quais poderão causar uma inicial e compreensível estranheza perante uma ou outra das medidas a adotar. Além da extrema conveniência de ordem prática, deve pesar-se nesta decisão que, sendo a grafia secundária em relação à oralidade e sendo uma representação sempre meramente convencional desta, não é mais nem menos científica uma grafia simplificada, em que se renuncia a certos hábitos gráficos apoiados numa tradição mais ou menos longa, do que uma grafia dita etimológica, a qual, além disso, para o ser efetiva e coerentemente, exigiria o regresso puro e simples a outros hábitos há muito abandonados.” [1]
No seguimento desta argumentação, o Professor Lindley Cintra dá a conhecer a proposta de simplificação que foi aprovada na reunião de 1986 e que tem como aspeto principal a supressão das chamadas ‘consoantes mudas’. “Com efeito, a vantagem de conservar a ‘letra muda’ para indicar que é aberta a vogal anterior átona é uma vantagem mínima, se considerarmos:

a)– Que ela não compensa o inconveniente, bem mais grave, da disparidade das grafias em Portugal e no Brasil, e que é insensato pretender levar um brasileiro a escrever actor e acção já que, mesmo sem o c ‘mudo’, as grafias ator e ação representam fielmente a sua pronúncia. [a tor], [a são].

b)– Que escrevemos em Portugal padeiro, corar, caveira, credor, geração, quaresmal, sarmento, especar, especular, aguar, aguadeiro, aguaceiro, esfomeado, retaguarda, agachar, relator, dilação, retrovisor e uma infinidade de outras palavras, sobretudo de carácter culto, mas em grande parte generalizadas com vogais átonas abertas, não assinaladas por ‘letra muda’, nem qualquer outro sinal gráfico, sem que isso cause qualquer perturbação.”

Como corolário das palavras de Lindley Cintra quero pôr em relevo o seguinte: A existência de uma ortografia comum não implica que passemos a utilizar a mesma forma de falar mas apenas uma escrita, ou melhor, uma só ortografia. Note-se que num único país como Portugal, por exemplo, existe apenas uma ortografia e, no entanto, ocorrem variações na língua que em certos aspetos estão muito afastadas da norma ortográfica. (basta pensar nos dialetos setentrionais e em palavras como viagem [b]iagem /[v]iagem ou em outras características de variação).
Poderíamos agora acrescentar ao interesse da unificação e simplificação da ortografia do português a feição “económica” da unificação da escrita, integrando nessa unificação os países que têm o português como língua oficial e reforçando assim a perspetiva que esteve na base da criação da CPLP. Um dos principais objetivos desta Comunidade é, por natureza, a preocupação com o enriquecimento da língua portuguesa no campo da ciência e da cultura, e no uso quotidiano dos países que a integram [2]. Num artigo publicado em 2011 eu própria manifestei concordância com este ponto de vista: “Numa ocasião em que tanto se fala sobre problemas da nossa economia, é um er­ro esquecer que o conhecimento e o uso do português constituem uma mais-valia no campo das interações económicas e um dos mais importantes in­vestimentos que cabem à iniciativa go­vernamental e coletiva” [3]. No âmbito desta afirmação cabe a convicção de que a unificação da escrita entre países que usam a mesma língua, e a simplificação da sua ortografia, concorrem para uma mais fácil expansão dos textos escritos nessa língua, neste caso o português.
Ora no sentido de aumentar o prestígio da língua portuguesa e no sentido da sua difusão tem-se avançado pouco em Portugal. Na ausência de estímulos para a criação de meios que reforcem e difundam a língua portuguesa, é fundamental que se proteja a produção em português através de uma política de incentivo à tradução e à realização de obras de base para a formação escolar, e à produção de obras teóri­cas e de aplicação em todos os campos do saber. Estas formas de incentivar a utilização da língua portuguesa são facilitadas pelas mudanças preconizadas pelo novo acordo, e justificam, em Portugal e no Brasil, a existência de uma ortografia que converge para a unificação e para a simplicidade [4].
Língua e ortografia
A frase que motivou este texto – o abastardamento da língua pela aplicação do acordo ortográfico – mostra, por fim, uma confusão entre língua e ortografia, confusão frequente que não é exclusiva de Pacheco Pereira. Na verdade, é de lamentar que quem usa a língua em que aprendeu a falar e que dela se serve como meio de transmitir conhecimentos, reflexões e paixões da alma, possa confundi-la com a sua representação escrita que é o meio em que aprendeu a escrever. A aceitarmos esta confusão teríamos que aceitar também que uma língua que não tem ortografia não existe como língua. Como se sabe, a língua identifica o ser humano e existe em todas as sociedades, enquanto a escrita está restrita a determinados estádios de desenvolvimento de uma sociedade, razão pela qual existem línguas sem escrita tal como há pessoas que não aprenderam a escrever. O domínio da língua na sua forma de expressão verbal contribui para o desenvolvimento das capacidades lógica, afetiva e estética dos indivíduos; coopera na sua tomada de consciência de um adequado comportamento em situação de intercomunicação; possibilita o esclarecimento de pontos obscuros da história; serve a ciência e permite o acesso ao conhecimento psicológico e social do indivíduo. Enfim: a língua está presente em todas as formas da nossa atividade.
A escrita traz outras vantagens à atividade sociocultural, vantagens que estiveram na raiz da sua criação como meio de comunicação e impulsionaram o lugar de relevo que hoje ocupa nos países que a utilizam: ela participa no enriquecimento do indivíduo e da sociedade que a utiliza pela clarificação do pensamento e das emoções; ela viabiliza, pela sua própria natureza, a comunicação a distância no espaço e no tempo; ela permite a manutenção da expressão de ideias e sentimentos, ela colabora na explicitação das formas obscuras do pensamento; ela fornece instrumentos que permitem várias formas de análise da utilização da língua.
Ainda que todos estes aspetos da importância da escrita sejam relevantes, devemos interpretar as reações às mudanças na ortografia de uma língua como o olhar saudoso em busca do passado, da tradição, da raiz. Essa nostalgia é provocada em todos os campos de ação pela quebra da tradição ou pelo afastamento do que julgamos ser a fonte que temos o dever de preservar. Não podemos no entanto furtar-nos à necessidade de viver no tempo atual ainda que saibamos que aquilo por que lutamos no aqui e agora virá a modificar-se no tempo vindouro.
 [1] In Expresso, 28 de junho de 1986
[2] Difícil se torna compreender a integração da Guiné Equatorial na CPLP
[3] Ver, por exemplo, o jornal Expresso, janeiro de 2011.
[4] Foi certamente com esta finalidade que se considerou, no Brasil, vantagem na supressão do treme (linguista – linguista) e na eliminação do diacrítico em palavras como idéia – ideia etc.
Professora Catedrática Jubilada da Faculdade de Letras de Lisboa

Nenhum comentário: