Mais um daqueles artigos desempoeirados do sociólogo
Alberto Gonçalves que, porque leu sobre os homens, sabe que nem o próprio Adão se
assumiu em liberdade, amassado que foi do barro e logo preso nas artimanhas de
Eva mais da serpente, que acorrentaram os nossos pais primeiros definitivamente
ao pó da Terra. E apesar disso, outros houve que, desinteressados do pó,
cuidaram que a alma era suficiente para a sua libertação, adoptando parâmetros
de compostura e honra que os tornaram seres livres, atidos ao lema de que o
pensamento e a razão se impunham nos considerandos de uma liberdade sem os “baixos
afectos” materiais condicionantes. Mas isso era nos tempos da “aurea
mediocritas” que foram idos, mesmo os nobres ideais de agora têm subjacente
a importância da matéria para a concretização desses ideais.
Por isso, Alberto Gonçalves discorda da criação de um partido
liberal entre nós, como alguns propõem, por partir da constatação de que,
neste país de sol amaciador, dificilmente se poderá aspirar a tal, divididos
que estamos em três partidos principais, de submissão a interesses
manipuladores dos afectos, de um materialismo prático: os que pertencem ao governo do Estado, os que vivem do Estado, os que gostariam de
pertencer ao Estado, como local de mais fácil acesso na senda do armazenar sem
esforço.
Quanto ao artigo seguinte, sobre as eleições
americanas, ele é demonstrativo da empatia com um país onde tudo é enorme,
espaços, realizações, paixões, e até mesmo a revelação de seres adversos ao
comedimento discursivo, na demonstração de que a posse da tal matéria manipuladora
dos interesses, quando se torna o alfa e o ómega de certas vidas “humanas”
deslumbradas. pode destruir o edifício do soi-disant equilíbrio anterior que nesse
país tem combatido os radicalismos, para se tornar em algo de monstruoso a
evitar. Em nome da Terra.
A liberdade
nunca passou por aqui
DN, 21/2/16
De repente, não imagino porquê, boa parte dos meus
amigos do Facebook desataram a discutir a criação de um partido liberal. Quase
de certeza, estão a brincar. Dado que não são de esquerda, possuem por
definição a lucidez suficiente para perceber que a ausência de um partido
liberal indígena se deve a um motivo assaz trivial: não há público. Ou há o
público necessário para que a comissão política, o conselho nacional, os
participantes nas arruadas e os eleitores do hipotético PL se possam deslocar
no mesmo autocarro - e ainda oferecer boleia a dois transeuntes particularmente
afectados pela subida dos combustíveis. É a simples lei da oferta e da procura,
que os liberais, mais do que os outros, compreendem.
Por cá, as convicções políticas dividem os cidadãos em
três grupos principais: os que mandam no Estado, os que vivem ou sobrevivem à
custa do Estado e os que gostariam de pertencer ao primeiro grupo ou, no
mínimo, ao segundo. Uma longa tradição de pobreza, material e de espírito,
impede os portugueses de experimentarem qualquer vestígio de simpatia pela
liberdade, conceito que de resto lhes é tão estranho quanto o frio para um
habitante do Iucatão. Entre nós, a liberdade é um penduricalho que fica
impecável em discursos épicos e cançonetas medonhas. No mundo real, é coisa impensável.
Onde já se viu que um indivíduo possa tentar determinar o próprio destino sem
trela nem amparo?
Não é à toa que o nosso quadro partidário percorre
todo o espectro ideológico de A a B, leia--se do mal dissimulado socialismo da
ridiculamente chamada direita ao socialismo orgulhoso da espantosa esquerda,
que inclui, sem destoar, seitas leninistas e estalinistas, admiradores da
Coreia do Norte e promotores de merchandising do Che. Um governo que aumenta
descaradamente os impostos, mantém a máquina pública essencialmente intacta e
não enfia o país na bancarrota em seis meses já é "neoliberal" e um
perigoso lacaio dos mercados. A alternativa, o saque fiscal a benefício das
clientelas, "investimento" público, corrupção escancarada e desastre
iminente é o padrão aceite pela generalidade da opinião pública e publicada. E
tende a piorar. Para regressar às graças do povo, o CDS entregou-se a uma
adversária da iniciativa privada. O PSD busca popularidade através de
declarações apaixonadas à social-democracia. E o PS resiste no poder com típica
brutalidade e um renovado amor pelo marxismo. No desgraçado Portugal destes
dias, o PCP propõe taxar os "ricos" a 75% e ninguém se dá ao luxo de
achar a proposta uma alucinação divertida, como a cientologia ou o criacionismo:
a loucura tornou-se mesmo plausível. E com frequência desejável.
E é isto. Dos "trabalhadores" aos
"empresários", uma desmesurada parcela da população enfiou na cabeça
o direito de ser sustentada pelos "ricos", ou pela Europa, ou pelos
meros contribuintes. E o papel do Estado consiste, na metade do tempo, em zelar
para que assim aconteça. Na metade que sobra, cabe ao Estado decretar
comportamentos, na medida em que irresponsáveis económicos padecem igualmente
de irresponsabilidade cívica. Neste rectângulo repleto de crianças crescidas,
não faltam fumadores entusiasmados com medidas antitabágicas. É aqui que o
liberalismo conta prosperar? Boa sorte.
Por mim, e por pura curiosidade, aceito convites para
um almoço conspirativo do PL, mas julgo que basta reservar a mesa do canto. A
menos que eu esteja enganado. Espero estar enganado.
Sábado, 20 de Fevereiro
Ameaças globais
Desde
2006 que passo pelo menos uma ou duas semanas por ano na América. Gosto das
possibilidades de Nova Iorque, da música nas ruas de Nova Orleães, Nashville e
certos lugarejos do Mississippi, das estradas do Novo México, das paisagens do
Arizona e do Utah, dos desertos da Califórnia e do Nevada, da comida dos
texanos e da simpatia de estranhos.
E
se há na América coisas de que não gosto, não chegam para me remover a
impressão, não sei se fundamentada, de que um dia ficarei por lá de vez. O
redundante travo "europeu" da Nova Inglaterra é largamente compensado
por um pequeno-almoço numa espelunca do Tennessee. A aridez imperial de Washington
é esquecida a cada conversa com amigos feitos há meia hora num café de
Albuquerque. A melancólica padronização da main street nas pequenas cidades não
apaga a absurda exuberância do Monument Valley. A desagradável ênfase nas
questões raciais não mancha o improvável sucesso daquele caldo cultural.
Sobretudo a repugnante obsessão com a ideia de celebridade não impede a América
de ser o lugar mais conveniente ao voluntário e abençoado isolamento.
Por
tudo isto, tenho evitado escrever, ou sequer pensar, nas próximas eleições
presidenciais. Os candidatos "tradicionais" de ambos os partidos,
fossem Rubio ou Cruz, fosse Hillary, eram deprimentes quanto baste. Os
candidatos "surpresa" são outra coisa completamente diferente.
Enquanto sociedade, o grande mérito da América tem sido a capacidade de
enfraquecer os diversos radicalismos em prol de uma alternativa civilizacional
eficaz. É um lugar de equilíbrios, que sempre reagiu às rupturas sociais com
decência e rapidez. A orientação para o "centro", com os inúmeros
defeitos deste, poupou a América a arrebatamentos totalitários. Hoje, por
razões que não cabem aqui, os senhores Trump e Sanders elegeram o
"centro" como o inimigo. Se os americanos elegerem um deles, a
América que conhecemos está em risco. E o mundo, pelo menos o meu, também.
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