Também o são os ares resolutos
e as formas garbosas das marchas infiltrantes nos países do Mediterrâneo
oriental, de gentes que conduzem os filhos que nem vemos chorar, gentes
preparadas de antemão para a conquista, e que saúda com as mãos e os sorrisos,
acabadas de chegar e de atravessar o mar, cemitério de tantos, gentes que vão
avançando, tal como outrora as hordas que deram novo rosto à Europa. E admiramos.
Umas dizem-se a fugir da guerra, outras em cata de melhores condições de vida e
de liberdade, outras virão com propósitos febris de expandir outras fés em
futuros actos de terrorismo, ingratas e selvagens para com os dadores do seu
sangue. E sorriem. E caminham rápidas e firmes, gentes do nosso espanto. E do
nosso medo.
É Clara Ferreira Alves que no
seu «Pai Nosso» põe a sociedade snob do Guincho a escutar sobre a guerra no
Médio Oriente da boca de uma repórter fotográfica da Guerra do Golfo, que por
lá andou e saiu nas capas das revistas sociais – Maria – pretexto para reduzir
a gente portuguesa a uma massa sem fibra, de curiosidade puramente fofoqueira,
e apurada na “sensibilite” interjectiva, desinteressada das razões políticas
que confrontam os homens:
Um marido capitalista, retrato
desses que também povoam as nossas notícias diárias, interrompe a mulher
brasileira, de segundas núpcias, largada na descrição de si própria, apesar da
curiosidade que diz ter sobre a “excitante aventura com esses palestinianos”:
«”Adriana, deixe a Maria
contar a aventura. Estamos interessadíssimos. As nossas vidas não são muito
atraentes.”
Uma criança assassinada, cem
mil corpos apodrecidos no deserto, o bombardeamento da capital do Califado e o
terror dos judeus à espera do gás nos abrigos, go to your shelter, please, são
reduzidos na mansão do Guincho a uma excitante aventura. Esta gente não sabe
nada do mundo e nunca quererá saber. Vivem dentro da bolha, vivem na bola de
sabão que sopram uns para cima dos outros, separados por rituais que os
protegem e os isolam e os obrigam a casar com pessoas iguais que vivem dentro
de outras bolhas, todos flutuando na certeza de que o sabão nunca acaba.»
Esta gente, esta “gentinha”
egoísta e ignorante, de uma sociedade que vive cá nos confins, e que às vezes
parece não amar os seus filhos, segundo as notícias dos casos do nosso espanto
por cá: A “Medeia” que em desespero e provavelmente vingança mata as filhas,
ela própria recuando na auto-imolação, crianças que morrem no terror do
abandono dos pais, outras que são maltratadas diariamente, o nosso mundo de misérias
e horrores próprios que a imprensa revela, os casos frequentes dos nossos
escândalos de corrupção, que dão vida às
nossas bolhas, e em que o Bem não é notícia, a não ser quando excita as nossas
almas no espanto e na devoção da beatitude.
João Miguel Tavares é dos que
participou no sentimento geral de horror perante o caso das crianças mortas
pela mãe tresloucada que desistiu da sua própria imolação. Uma mãe que acusara antes,
provavelmente assustada, mas num país cujos organismos de protecção à criança não
actuaram com diligência, conduzindo ao horror do crime e ao horror da dúvida e do
castigo.
As crianças morreram, nem o
desespero materno justifica tal crime. O que se segue é horroroso também. Fica
sempre, como consenso, a negligência geral dos serviços públicos. Neste caso
específico da falta de protecção real à criança. No artigo de João Miguel
Tavares:
O
superior desinteresse da criança
João
Miguel Tavares
Público, 18/2/16
Portugal é um país com muitos
problemas, mas nenhum deles é mais sério, mais obsceno e mais escandalosamente
terceiro-mundista do que os atrasos da justiça nas questões que envolvem direitos
de menores. Nós enchemos a boca com o famoso “interesse superior da criança”, indignamo-nos e
comovemo-nos ao ritmo dos casos mediáticos, só que isso, sejamos claros, vale
zero. Desligam-se as câmaras e continua tudo na mesma, até porque as crianças
em risco, azar o delas, não votam nem formam sindicatos.
Mais grave, muito mais grave, do que a negligência
parental é esta negligência governamental, que não consegue pôr de pé uma
política de protecção das crianças que seja célere e minimamente eficaz. Maus
pais sempre haverá, mas um país decente tem o dever de se empenhar na forma
como trata os menores de idade, e não falhar vergonhosamente no seu auxílio,
como parece ter acontecido mais uma vez na tragédia de Caxias.
No momento em que escrevo é impossível saber em
detalhe aquilo que se passou. Não faço ideia se as acusações de abuso sexual
acerca daquele pai são verdadeiras. Não faço ideia se as crianças estavam vivas
ou mortas antes de terem sido lançadas à água. Mas isto eu sei, porque foi
admitido pelas autoridades e pelos envolvidos: a situação foi sinalizada à
Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) da Amadora, em Novembro de
2015; houve uma participação na PSP e uma comunicação recebida do Hospital
Amadora-Sintra que levou à instauração de um inquérito em finais de Novembro,
para investigar, segundo um comunicado da Procuradoria –Geral da República
(PGR), «factos susceptíveis de
integrarem os crimes de violência doméstica e de abuso sexual de crianças»;
em paralelo, e na sequência da referida sinalização da CPCJ, o Ministério
Público (MP) requereu, a 2de Dezembro de 2015, «a abertura do processo
judicial de promoção e de protecção a favor das duas crianças».
Querem contar comigo até cinco? O caso da família de
Sónia Lima, que acabou com duas pequenas crianças afogadas em Caxias, foi
sinalizado à CPCJ, à APAV, à PSP, ao Hospital Amadora-Sintra e ao Ministério
Público. Sejam verdadeiras ou falsas as alegações de Sónia Lima, a verdade é
que só lhe faltou escrever ao Presidente da República. Fátima Duarte, da
Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco, contou à Lusa que «dados os contornos da situação», em Novembro o
caso «seguiu de imediato» para o MP, já ´que só ele pode investigar
suspeitas de abuso sexual de menores. E seguiu «com carácter urgentíssimo»
.
O que fizeram as autoridades perante tão urgente
pedido? Não se sabe ao certo, já que o caso, é claro, «corre termos no DIAP de Lisboa Oeste e encontra-se
em segredo de justiça.» A PGR garante que «no âmbito deste inquérito foi
proposta à denunciante a teleassistência, tendo sido elaborado um plano de
segurança». Eu até admito que o plano de segurança fosse magnífico, só que
há este pequeno problema: contactado pelo DN, Rui Maurício, advogado do pai das
crianças, declarou duas coisas: 1) O seu cliente nega todas as acusações; 2)
ele nunca foi ouvido pelas autoridades relativamente a elas. Leram bem. Há um
pai acusado de abuso sexual de menores em Novembro de 2015 e a 16 de Novembro
de 2016, três meses depois, ninguém lhe tinha perguntado o que quer que fosse.
Não preciso de saber mais nada. Isto basta-me. Superior interesse da criança?
Não gozem comigo.
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