domingo, 28 de fevereiro de 2016

Os casos dos nossos espantos




Também o são os ares resolutos e as formas garbosas das marchas infiltrantes nos países do Mediterrâneo oriental, de gentes que conduzem os filhos que nem vemos chorar, gentes preparadas de antemão para a conquista, e que saúda com as mãos e os sorrisos, acabadas de chegar e de atravessar o mar, cemitério de tantos, gentes que vão avançando, tal como outrora as hordas que deram novo rosto à Europa. E admiramos. Umas dizem-se a fugir da guerra, outras em cata de melhores condições de vida e de liberdade, outras virão com propósitos febris de expandir outras fés em futuros actos de terrorismo, ingratas e selvagens para com os dadores do seu sangue. E sorriem. E caminham rápidas e firmes, gentes do nosso espanto. E do nosso medo.
É Clara Ferreira Alves que no seu «Pai Nosso» põe a sociedade snob do Guincho a escutar sobre a guerra no Médio Oriente da boca de uma repórter fotográfica da Guerra do Golfo, que por lá andou e saiu nas capas das revistas sociais – Maria – pretexto para reduzir a gente portuguesa a uma massa sem fibra, de curiosidade puramente fofoqueira, e apurada na “sensibilite” interjectiva, desinteressada das razões políticas que confrontam os homens:
Um marido capitalista, retrato desses que também povoam as nossas notícias diárias, interrompe a mulher brasileira, de segundas núpcias, largada na descrição de si própria, apesar da curiosidade que diz ter sobre a “excitante aventura com esses palestinianos”:
«”Adriana, deixe a Maria contar a aventura. Estamos interessadíssimos. As nossas vidas não são muito atraentes.”
Uma criança assassinada, cem mil corpos apodrecidos no deserto, o bombardeamento da capital do Califado e o terror dos judeus à espera do gás nos abrigos, go to your shelter, please, são reduzidos na mansão do Guincho a uma excitante aventura. Esta gente não sabe nada do mundo e nunca quererá saber. Vivem dentro da bolha, vivem na bola de sabão que sopram uns para cima dos outros, separados por rituais que os protegem e os isolam e os obrigam a casar com pessoas iguais que vivem dentro de outras bolhas, todos flutuando na certeza de que o sabão nunca acaba.»
Esta gente, esta “gentinha” egoísta e ignorante, de uma sociedade que vive cá nos confins, e que às vezes parece não amar os seus filhos, segundo as notícias dos casos do nosso espanto por cá: A “Medeia” que em desespero e provavelmente vingança mata as filhas, ela própria recuando na auto-imolação, crianças que morrem no terror do abandono dos pais, outras que são maltratadas diariamente, o nosso mundo de misérias e horrores próprios que a imprensa revela, os casos frequentes dos nossos escândalos de corrupção, que dão vida às nossas bolhas, e em que o Bem não é notícia, a não ser quando excita as nossas almas no espanto e na devoção da beatitude.
João Miguel Tavares é dos que participou no sentimento geral de horror perante o caso das crianças mortas pela mãe tresloucada que desistiu da sua própria imolação. Uma mãe que acusara antes, provavelmente assustada, mas num país cujos organismos de protecção à criança não actuaram com diligência, conduzindo ao horror do crime e ao horror da dúvida e do castigo.
As crianças morreram, nem o desespero materno justifica tal crime. O que se segue é horroroso também. Fica sempre, como consenso, a negligência geral dos serviços públicos. Neste caso específico da falta de protecção real à criança. No artigo de João Miguel Tavares:

O superior desinteresse da criança
João Miguel Tavares
Público, 18/2/16
Portugal é um país com muitos problemas, mas nenhum deles é mais sério, mais obsceno e mais escandalosamente terceiro-mundista do que os atrasos da justiça nas questões que envolvem direitos de menores. Nós enchemos a boca com o famoso “interesse superior da criança”, indignamo-nos e comovemo-nos ao ritmo dos casos mediáticos, só que isso, sejamos claros, vale zero. Desligam-se as câmaras e continua tudo na mesma, até porque as crianças em risco, azar o delas, não votam nem formam sindicatos.
Mais grave, muito mais grave, do que a negligência parental é esta negligência governamental, que não consegue pôr de pé uma política de protecção das crianças que seja célere e minimamente eficaz. Maus pais sempre haverá, mas um país decente tem o dever de se empenhar na forma como trata os menores de idade, e não falhar vergonhosamente no seu auxílio, como parece ter acontecido mais uma vez na tragédia de Caxias.
No momento em que escrevo é impossível saber em detalhe aquilo que se passou. Não faço ideia se as acusações de abuso sexual acerca daquele pai são verdadeiras. Não faço ideia se as crianças estavam vivas ou mortas antes de terem sido lançadas à água. Mas isto eu sei, porque foi admitido pelas autoridades e pelos envolvidos: a situação foi sinalizada à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) da Amadora, em Novembro de 2015; houve uma participação na PSP e uma comunicação recebida do Hospital Amadora-Sintra que levou à instauração de um inquérito em finais de Novembro, para investigar, segundo um comunicado da Procuradoria –Geral da República (PGR), «factos susceptíveis de integrarem os crimes de violência doméstica e de abuso sexual de crianças»; em paralelo, e na sequência da referida sinalização da CPCJ, o Ministério Público (MP) requereu, a 2de Dezembro de 2015, «a abertura do processo judicial de promoção e de protecção a favor das duas crianças».
Querem contar comigo até cinco? O caso da família de Sónia Lima, que acabou com duas pequenas crianças afogadas em Caxias, foi sinalizado à CPCJ, à APAV, à PSP, ao Hospital Amadora-Sintra e ao Ministério Público. Sejam verdadeiras ou falsas as alegações de Sónia Lima, a verdade é que só lhe faltou escrever ao Presidente da República. Fátima Duarte, da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco, contou à Lusa que «dados os contornos da situação», em Novembro o caso «seguiu de imediato» para o MP, já ´que só ele pode investigar suspeitas de abuso sexual de menores. E seguiu «com carácter urgentíssimo» .
O que fizeram as autoridades perante tão urgente pedido? Não se sabe ao certo, já que o caso, é claro, «corre termos no DIAP de Lisboa Oeste e encontra-se em segredo de justiça.» A PGR garante que «no âmbito deste inquérito foi proposta à denunciante a teleassistência, tendo sido elaborado um plano de segurança». Eu até admito que o plano de segurança fosse magnífico, só que há este pequeno problema: contactado pelo DN, Rui Maurício, advogado do pai das crianças, declarou duas coisas: 1) O seu cliente nega todas as acusações; 2) ele nunca foi ouvido pelas autoridades relativamente a elas. Leram bem. Há um pai acusado de abuso sexual de menores em Novembro de 2015 e a 16 de Novembro de 2016, três meses depois, ninguém lhe tinha perguntado o que quer que fosse. Não preciso de saber mais nada. Isto basta-me. Superior interesse da criança? Não gozem comigo.

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