Pensar que o Orçamento passou em
Bruxelas dá-nos uma sensação de beatitude por nos “encontrarmos” já a “virar a
página da austeridade”, mesmo que, como manda
o ministro, tenhamos que andar de transportes públicos o que não é desdouro, os
comboios permitindo pôr leituras em dia. (Velhos tempos aprazíveis, esses em
que o trabalho longe de casa me fazia apanhar o comboio da linha, o que era
prático e de recurso para um assentar de noções de última hora, que as tarefas
caseiras impediam tantas vezes de aprofundar. Doutras vezes, só o olhar pela
vidraça deleitava, vendo o mar ou o rio ou os monumentos e os sítios aparentemente
deslizando em sentido contrário). Mas não deixa de ser curiosa a similitude de
comentários na questão dos “aconselhamentos” ao povo impaciente, de Passos
Coelho e de António Costa, o primeiro aconselhando a partir para o estrangeiro,
em busca de solução momentânea das dificuldades, o segundo aconselhando os
transportes públicos na questão do encarecimento da gasolina. Mas a Costa, os
parceiros da amizade perdoarão as descargas impacientes, a “boutade” de Passos ficará
para sempre gravada nas suas ironias, sem se lembrarem de que a emigração foi
sempre recurso nosso, pelos mais variados motivos, e não necessariamente “a
salto” nem com mala de cartão.
O certo é que o Orçamento passou e a Oposição
deve ficar contente por isso, sem guerra de palavras. No fundo, do que o país
precisa mesmo é de gente que trabalhe, com inteligência e aplicação, embora as
mudanças que o Ministério da Educação prepara para a escola, me pareçam novo
fogo de vistas para massacrar os alunos e torná-los cada vez mais apanhados pela
carruagem do tempo, sem pausas para curtirem a sua mocidade. Refiro-me a nova
carga horária que se propõe para os alunos do nono ano, prolongando-lhes o
tempo de escola, embora facultativamente.
Mas é o artigo de João Miguel
Tavares que transcrevo, bastante justo, sem muita esperança na extinção da tal
austeridade, TINA e TINinhA aparentadas nas mesmas exigências que, se faziam
acusar do governo anterior de servilismo à UE, pelos peritos da esquerda, não
deixarão de lhes merecer o mesmo apodo, a serem justos, pois que a arrogância
inicial à Varoufakis de Costa e Cia. não pode deixar de descambar em obediência
à Tsipras.
A
TINA e a TINinhA
Há um famoso paradoxo filosófico que se pode formular
assim: se eu substituir a lâmina de uma faca, e de seguida o seu cabo, ela
ainda é a mesma faca? Numa perspectiva ontológica, a questão não é simples. Mas
numa perspectiva meramente utilitária, o que interessa é haver faca e ela
continuar a cortar.
O orçamento de Estado do actual governo é como a faca
do paradoxo: um orçamento que entrou em Bruxelas disposto a “virar a página
da austeridade” e saiu com mil milhões de euros de austeridade em cima ainda
pode ser considerado o mesmo orçamento? A resposta ontológica é “não”. Se
compararmos o programa original de grupo de trabalho de Mário Centeno e o Frankenstein
orçamental que ele se viu obrigado a defender (com evidentes dificuldades)
na sexta-feira, só mesmo com testes genéticos aprofundadíssimos será possível
encontrar vestígios de um pai comum. Mais. Quando António Costa afirma que, “ao
contrário do que muitos desejavam, a Comissão Europeia não chumbou o primeiro
orçamento do governo”, importa repor a verdade: ai chumbou, chumbou. O esboço
do primeiro orçamento foi chumbadíssimo. Aquilo que a Comissão não chumbou foi
a última versão desse orçamento, carregadíssima de impostos e com as metas
revistas, que já pouco tinha a ver com o original.
Mas tudo isto interessa muito pouco a António Costa –
afinal, ele é o rei do pragmatismo. Desde que se continue a chamar “orçamento”
e passe em Bruxelas e em São Bento, por ele está tudo bem. Evidentemente, não é
um “tudo bem” sério, como se verificou nas suas declarações de sábado, ao ser
confrontado com o aumento colossal de impostos indirectos nos combustíveis e no
tabaco. Nesse momento, a demagogia de Costa elevou-se à estratosfera, ao
aconselhar os portugueses a “fumar menos” e a “usar transportes públicos”.
O que ele se esqueceu de acrescentar é que se os portugueses começarem a fumar
muito menos e a usar muito mais transportes públicos, então as receitas
destes impostos caem a pique e o governo tem de encontrar medidas alternativas
para compensar a queda na receita.
Oh, sim, António Costa virou a página da austeridade –
só que na página seguinte encontrou a mesma austeridade de que se prometeu
livrar. Enfim, não é bem a mesma austeridade. A austeridade da direita era
feita de impostos directos. A austeridade da esquerda privilegia os indirectos.
Não é já a TINA – é a irmã gémea, a TINinhA.
Mas agora vêm as boas notícias: se o novo
orçamento tem tudo para correr mal em termos económicos, dada a manifesta
ausência de uma perspectiva de futuro e de um caminho sustentável para as
finanças públicas, a sua aprovação em Bruxelas, ainda que com reservas, é uma
boa notícia política. A ninguém aproveitava uma crise neste momento. Se o regoverno
de António Costa conseguiu instalar-se, há que o deixar regovernar. A frente de
esquerda tem de poder praticar todas as suas espectaculares políticas de
crescimento e tem de lhe ser dado tempo para elas falharem (mais uma vez). Ora,
este orçamento é suficientemente mau para que todos percebam onde essas
políticas nos levam (mais uma vez); mas não suficientemente mau, graças à
intervenção da Comissão Europeia, para obrigar a um novo resgate em 2018. Nesse
sentido, não vale a pena dramatizar, porque poderia ter sido bem pior –
bastaria Bruxelas ter engolido a matemática à portuguesa. Como não engoliu, o regoverno
merece agora uma folga, para poder namorar com a TINinhA.
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