Em busca do artigo de Alberto Gonçalves, parei na
última página do DN de Domingo, 7/2, num tema sobre o Carnaval, julgando
tratar-se de alguma chochice habitual de trocadilho sobre as máscaras
permitidas por essa altura, mais reais, todavia, no resto do ano, ocultos os
cinismos sob a fachada da naturalidade enganosa, ou realçados sem qualquer
necessidade de ocultação, na liberdade da plenitude democrática. Não se tratava disso. O artigo de João
Taborda da Gama - Carnaval, um glossário pessoal – com
o antetítulo “Dentro do Género”, não tinha quaisquer intenções beliscadoras
dos foliões do Carnaval, lembrando, com requinte, as partidas pregadas hoje e
ontem com os instrumentos do engenho humano, cada ano mais enriquecido pelo
empenhamento mercantil. O requinte de um descritivo de violência e arte no uso dos
meios para causar o dano alheio nesses dias de permissividade licenciosa surge,
assim, em serena abundância de pormenor que provoca um riso aberto, senão mesmo
a gargalhada divertida. João Taborda da Gama deixa aos filhos – como herança
- as suas experiências de longa data, sem intenções moralizadoras, aluno que
foi, certamente, amante de tropelias, que quase beatifica os seus excessos pela
serenidade e humor com que os revela, e que nos merecem um bravo, sem dúvida, pela
graça do seu descritivo.
Carnaval, um glossário pessoal
João Taborda da Gama
DN, 7/2/16
Bombas das grandes cartuchos de papel com cerca de quatro centímetros de
altura e meio de espessura, encimadas por um rastilho cilíndrico unido ao
cartucho por uma guita. Para detonar, juntar a cabeça de um fósforo (muitas
vezes chamado de forfe) à ponta do rastilho, colocar o polegar da mesma mão que
segura o fósforo na base da bomba, a fazer noventa graus, e raspar a lixa da
caixa de fósforos (os novatos tentam detonar com isqueiro, sem qualquer efeito
que não seja derreter o rastilho). Na falta de fósforos podem ser detonadas
usando a pólvora de outra bomba disposta numa superfície plana em linha (tipo
cocaína) a acabar na ponta do rastilho da bomba deitada, e com o isqueiro
acender a pólvora. Uma vez começando a arder o rastilho a explosão segue-se em
três ou quatro segundos. Sugestões de utilização: duas pessoas acendem uma
bomba ao mesmo tempo, cada um a sua e a última a largar ganha; atirar para
halls de prédios, caixotes de lixo (normalmente a tampa abre), sarjetas, debaixo
de latas de tinta vazias viradas de cabeça para baixo (podem atingir um quinto
andar), mas nada bate a bomba-cagalhão, colocada no centro de um dito de cão,
com pessoas a passar ao lado.
Bombinhas chinesas pequenos petardos vermelhos com 2 mm de espessura,
com fio de rastilho, vendidos à unidade, ou em fieiras de algumas dezenas.
Pouco impacto. Podem rebentar-se aos pares, entrelaçando os pavios. Se acaso
algum pavio sair torna-se difícil voltar a por. Neste caso sugere-se dobrar a
bombinha ao meio até expor a pólvora e chegar fogo, pois faz um bonito efeito.
Podem ser rebentadas na mão, devendo antes trincar-se o fundo e segurar pela
ponta, abaixo do vinco criado pela mordedura de modo a reduzir o impacto. Há
uma taxa de quebra, algumas vêm chochas. Pode tentar rebentar-se uma fieira
inteira, mas muitas acabam por se desprender sem rebentar. Ideal para enfiar
dentro de um cigarro, retirando o tabaco necessário e voltando a encher
(colocar o rastilho virado para a ponta do cigarro). Quando rebentar pode
dizer-se "fumar mata".
Estalinhos explosivos embrulhados em papel com uma esfera metálica no meio. Deve
dar-se torção extra antes de atirar ao chão para aumentar a explosão (atenção
para não romper o papel). É vexatório atirar ao chão estalinho que não estala.
Pode atirar-se mais do que um. Pode atirar-se contra a parede. É escusado
tentar reunir o conteúdo de dois estalinhos no invólucro de um só.
Farinha
atirar a um metro para um melhor efeito. Pode ser usada logo depois de ovo,
numa sequência mão esquerda - mão direita, fazendo o que se chama "um
bolo". Não calcar demasiado a farinha na mão pois impede a mesma de se
espalhar condizentemente (é irrelevante ter ou não fermento).
Garrafinhas de mau cheiro ampolas de vidro com líquido com aroma de enxofre.
Colocar nas entradas das portas, atirar para repartições de finanças, segurança
social, mercearias. Podem ser usadas em salas de aula, mas sugere-se que não na
própria, pois há docentes que obrigam todos os alunos a ficar até ao fim da
aula, com o cheiro. Podem ser colocadas debaixo dos capachos da entrada, o que
torna o odor mais leve mas mais indetectável.
Limas
recipientes de estearina (cera) em forma de uma pequena pera enchidos de água e
projetados como os ovos (v. Ovos). Fazem-se derretendo as barras de estearina
ao lume, enchendo o molde de alumínio, agitando e arrefecendo; é preciso
cuidado ao desenformar; encher de água e tapar com um pingo de cera.
Desconhecidas no continente, mas muito usadas em Ponta Delgada, S. Miguel,
Açores (sugere-se a visualização, no youtube, de "batalha de limas").
Ovos
atirar ovos exige uma técnica especial. O lance longo requer pontaria, à
distância, muito dificultada pela forma do ovo; o lance curto, tipo afundanço,
mais difícil, é mais espetacular, mas comporta o risco de identificação pela
vítima e de reação (deve ser feito em corrida, no cocuruto, aproveitando os
cinco segundos em que a vítima procura perceber o que lhe aconteceu, levando as
mãos à cabeça, cheirando). Ao esmagar o ovo não deve exercer-se demasiada força
para não fazer com que o conteúdo do ovo seja projetado para os lados e não
para a cabeça da vítima. Podem usar-se ovos podres, enterrados durante três
semanas (duas precauções: o Carnaval tem data móvel; os ovos podres ficam mais
frágeis, podendo partir-se na mão, ou desintegrar-se no ar no lance longo).
Reações expectáveis: "deves ser rico", "tanta gente com fome e
tu a desperdiçar ovos". Pode ser usado conjuntamente com o lance de
farinha (v. farinha). Não há qualquer vantagem na utilização de ovos
biológicos.
Papelinhos relevantes apenas se enfiados na boca de alguém desprevenido que
parece sufocar ao mesmo tempo que expele confettis, fazendo um bonito efeito
tragi-cómico.
Raspas
tiras de cartão com pinga de explosivo tipo lacre. Deve separar-se apenas uma
pinga, rasgando a tira com cuidado para não retirar o cartão debaixo da pinga
adjacente. Depois, como o nome indica, raspa-se na parede (de preferência algo
rugosa), o explosivo começa a explodir, e coloca-se entre as mãos, fazendo
castanholas. Deixa cheiro característico. Característicos são também os riscos
que deixa nas paredes e que normalmente enfurecem os habitantes dos respetivos
prédios.
Serpentinas lançar agarrando na ponta de dentro e não na de fora. Simular alegria
ao atirar, dizendo por exemplo yeeeahi (divertimento imbecil que deixa no fim
uma sensação de frustração). Podem fazer-se acordeões com serpentinas de duas
ou mais cores (igualmente triste).
PS - Este texto insere-se no estado de espírito "não
vá um gajo morrer amanhã e não deixar nada do que aprendeu aos filhos".
E já que estamos no Carnaval, e se fala de alunos, não
propriamente como o “Cancre” de Jacques Prévert, distraído e sensível à
natureza, mas dos também sem talvez grande apetência para o estudo embora com rapidez
de observação e de raciocínio desmistificador dos critérios do “magíster dixit”
- em que provavelmente João Taborda da Gama se enquadrou - transcrevo um
pequeno texto, encimado pelo quadro da Gioconda e saído num exame de francês de
nível 2 em 2013, de diálogo facilmente perceptível, revelador de como a opinião
pública (na voz ingénua das crianças) é muitas vezes baseada no preconceito e na
moda, embora, no caso da Gioconda, me pareça que ela merece mais o galardão do
que as figuras recortadas de Picasso:
«LA JOCONDE»
«Rafael: Mesdames et
messieurs, nous voici devant le tableau le plus célèbre du monde : La
Joconde !
Mona : Bah ! il
est plutôt petit, et puis on ne voit pas grand-chose… Juste cette dame, là,
avec son drôle de sourire.
Nabi : Il y a marqué
Mona Lisa ici. Alors « la Joconde » ça veut dire quoi ? C’est
son métier ?
Rafael : Ce portrait
représente, peut-être, l’épouse de Francesco del Giocondo, ce qui lui valut le
surnom de Joconde
Nabi : Qu’est-ce qu’elle fait, la dame, les bras
croisés ?
Mona : Peut-être qu’elle attend
son amoureux.
Rafael : Mais non, on ne sait pas
ce qu’elle fait.
Nabi : Ah bon ! Bah !
Si on sait rien. pourquoi elle est
célèbre ?
Mona : C’est peut-être parce
que Léonard de Vinci est connu pour ses inventions. Il a même dessiné les
premiers avions.
Nabi : Au Moyen-Âge?
Rafael : Mais non ! À la
Renaissance. Regardez la technique de Vinci : il a utilisé le «sfumato»,
ce qui donne des contours imprécis aux objets. Et puis le tableau est
surtout connu, car le sourire énigmatique de la Joconde et ses yeux qui ont l’éclat
de la vie ont contribué à son incroyable notoriété.
Mona : Bon, je vais sourire,
moi aussi, comme ça, je serai célèbre.
Rafael : T’es bête ! Ce
tableau, on vient le voir parce que… Bah ! Parce que tout le monde veut le
voir, voilà !
Mona : Bon, alors le vrai
mystère c’est qu’on ne sait pas pourquoi il est si célèbre au fond, ce
tableau. In «Une
minute au musée» (remanié)
Nenhum comentário:
Postar um comentário