domingo, 21 de fevereiro de 2016

Os coices da nossa valentia



O país vive um tempo de acabrunhamento. E não perde ocasião para o fazer sentir. Até mesmo através de textos ressabiados, lembrando os erros praticados pelos detestados leões de agora, que nos governam, ignorando os erros dos outros leões que foram reis nos quarenta e mais anos nesta nossa floresta de muitos enganos, mais ou menos responsáveis por coisas boas e más, mas de cômputo final negativo. E por culpa nossa. Os defeitos da grei são bastantes, e o desastre progressivo que se reflectiu nas finanças a nós se deve, que somos calaceiros e nos não importamos de viver de esplendor à custa de bens alheios, os tais que começaram a cair como maná no nosso deserto, nos tempos de Cavaco, sobretudo. E Cavaco foi apreciado, tanto pelo que construiu de modernidade no país, como pelo que permitiu de esbanjamento e extorsão, nas negociatas que nos conduziram às catástrofes do nosso acabrunhamento.
E vá de o atacar, agora que está velho, merecendo designações como “o mais odiado “, quando, não há muito, as sondagens eram positivas a seu respeito. Por isso, o artigo de Vasco Pulido Valente sobre Cavaco e aqueles que condecorou - não por estima pessoal mas para fazer sentir a ingratidão do país para com ele próprio, segundo opinião de Pulido Valente - não me parece muito “didáctico”, enfileirando nas opiniões de todos os ingratos, como mais um apenas. E isso me lembrou a fábula de La Fontaine, sobre o Leão à beira da morte, maltratado pelos vassalos, quando já não tinha poder. É claro que a metáfora disfemística “asno” do espevitamento altivo final do velho Leão não se aplica a Pulido Valente, naturalmente o oposto do sentido negativo que se atribui ao doce bicho, mas a fábula, no seu genérico, é bem o retrato de todos os “destemidos”, quando o que temiam jaz prostrado. O nosso retrato.
Eis a fábula de La Fontaine:

O Leão ficando velho
O Leão, terror das florestas,
Carregado de anos, e antigas proezas recordando,
Pelos seus próprios vassalos foi enfim atacado
Que ganharam força com a sua debilidade.
Aproximando-se, o Cavalo dá-lhe um coice,
O Lobo, uma dentada, uma cornada o Boi.
O infeliz Leão, triste, sombrio, enfraquecido,
Mal pode rugir, pela idade destruído.
Espera o seu destino sem se lamentar,
Mas, ao ver o Burro ao seu antro acudir,
Diz-lhe em último esforço de anterior dignidade:
«Ah! É demais, não me importo de morrer,
Mas é morrer duas vezes os ataques teus sofrer”.
O artigo de Vasco Pulido Valente:
Dia de finados
14/02/2016 -  
O dr. Cavaco resolveu condecorar oito antigos ministros com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. À primeira vista a escolha parece aleatória, mas de perto é mais do que evidente. Os cavalheiros que foram, como se costuma dizer, “agraciados” tiveram de maneira geral uma carreira infeliz no governo ou acabaram por se demitir ou serem pura e simplesmente expulsos. Basta contar as cabeças deste desditoso grupo: Vítor Gaspar, Álvaro Santos Pereira, Luís Campos e Cunha, Paulo de Macedo, Maria de Lurdes Rodrigues, Bagão Félix, Nuno Crato e Rui Pereira. Nenhum deles com certeza ficará na história das longas desgraças portugueses. Só que o dr. Cavaco não lhes deu a Cruz para os consolar; o Presidente da III República mais detestado de sempre quis sobretudo deixar, a dias de sair, um lamento público pela “ingratidão” com que a Pátria o abandonou.
Para ele, os sete cavalheiros e a senhora, que quase lacrimejantemente distinguiu, representam a mesma injustiça de que ele se queixa. E, podendo pôr neste capítulo pôr o mundo a direito, Cavaco fez com que a própria República na sua egrégia pessoa os recompensasse das lágrimas que todos choraram a bem da Pátria, “independentemente” do seu papel político no governo. Não sei se Vítor Gaspar ou Paulo de Macedo se comoveram muito com a distinção. Mas sei que o sentimento normal da gente que nos pastoreou desde, pelo menos o século XVIII é o de que Portugal não aprecia os seus grandes filhos e que está eternamente morto por os ver pelas costas.
Fora as cerimónias de Estado, ninguém lamentou o desaparecimento ou a morte do sr. rei D. João V, ou de Pombal , ou do arcebispo de Tessalónica (confessor da rainha D. Maria I) ou de qualquer dos membros da longa série dos caudilhos liberais, que por aí andaram entre 1820 e 1910. O “povo” invariavelmente deu a seu afecto a personagens secundárias, com pouca influência e cujo desinteresse pelo poder era notório, como José Estêvão ou Passos Manuel. Tirando o histerismo que Sidónio provocou, os donos da República foram sem excepção tratados com desprezo e ódio. Depois, nem vale a pena mencionar o pessoal do “28 de Maio” e da Ditadura. E, quanto ao PREC, ainda continua universalmente a meter medo e nojo. Cavaco, no fundo, teve muita sorte.

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