O país vive um tempo de
acabrunhamento. E não perde ocasião para o fazer sentir. Até mesmo através de
textos ressabiados, lembrando os erros praticados pelos detestados leões de
agora, que nos governam, ignorando os erros dos outros leões que foram reis nos
quarenta e mais anos nesta nossa floresta de muitos enganos, mais ou menos
responsáveis por coisas boas e más, mas de cômputo final negativo. E por culpa
nossa. Os defeitos da grei são bastantes, e o desastre progressivo que se
reflectiu nas finanças a nós se deve, que somos calaceiros e nos não importamos
de viver de esplendor à custa de bens alheios, os tais que começaram a cair
como maná no nosso deserto, nos tempos de Cavaco, sobretudo. E Cavaco foi
apreciado, tanto pelo que construiu de modernidade no país, como pelo que
permitiu de esbanjamento e extorsão, nas negociatas que nos conduziram às
catástrofes do nosso acabrunhamento.
E vá de o atacar, agora que
está velho, merecendo designações como “o mais odiado “, quando, não há
muito, as sondagens eram positivas a seu respeito. Por isso, o artigo de Vasco
Pulido Valente sobre Cavaco e aqueles que condecorou - não por estima pessoal
mas para fazer sentir a ingratidão do país para com ele próprio, segundo
opinião de Pulido Valente - não me parece muito “didáctico”, enfileirando nas
opiniões de todos os ingratos, como mais um apenas. E isso me lembrou a fábula
de La Fontaine, sobre o Leão à beira da morte, maltratado pelos vassalos, quando
já não tinha poder. É claro que a metáfora disfemística “asno” do espevitamento
altivo final do velho Leão não se aplica a Pulido Valente, naturalmente o
oposto do sentido negativo que se atribui ao doce bicho, mas a fábula, no seu
genérico, é bem o retrato de todos os “destemidos”, quando o que temiam jaz
prostrado. O nosso retrato.
Eis
a fábula de La Fontaine:
O
Leão ficando velho
O
Leão, terror das florestas,
Carregado
de anos, e antigas proezas recordando,
Pelos
seus próprios vassalos foi enfim atacado
Que
ganharam força com a sua debilidade.
Aproximando-se,
o Cavalo dá-lhe um coice,
O
Lobo, uma dentada, uma cornada o Boi.
O
infeliz Leão, triste, sombrio, enfraquecido,
Mal
pode rugir, pela idade destruído.
Espera
o seu destino sem se lamentar,
Mas,
ao ver o Burro ao seu antro acudir,
Diz-lhe
em último esforço de anterior dignidade:
«Ah!
É demais, não me importo de morrer,
Mas
é morrer duas vezes os ataques teus sofrer”.
O artigo de Vasco Pulido Valente:
Dia
de finados
14/02/2016 -
O dr. Cavaco resolveu
condecorar oito antigos ministros com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D.
Henrique. À primeira vista a escolha parece aleatória, mas de perto é mais do
que evidente. Os cavalheiros que foram, como se costuma dizer, “agraciados”
tiveram de maneira geral uma carreira infeliz no governo ou acabaram por se
demitir ou serem pura e simplesmente expulsos. Basta contar as cabeças deste
desditoso grupo: Vítor Gaspar, Álvaro Santos Pereira, Luís Campos e Cunha,
Paulo de Macedo, Maria de Lurdes Rodrigues, Bagão Félix, Nuno Crato e Rui
Pereira. Nenhum deles com certeza ficará na história das longas desgraças
portugueses. Só que o dr. Cavaco não lhes deu a Cruz para os consolar; o
Presidente da III República mais detestado de sempre quis sobretudo deixar, a
dias de sair, um lamento público pela “ingratidão” com que a Pátria o
abandonou.
Para ele, os sete cavalheiros e a senhora, que quase
lacrimejantemente distinguiu, representam a mesma injustiça de que ele se
queixa. E, podendo pôr neste capítulo pôr o mundo a direito, Cavaco fez com que
a própria República na sua egrégia pessoa os recompensasse das lágrimas que
todos choraram a bem da Pátria, “independentemente” do seu papel político no
governo. Não sei se Vítor Gaspar ou Paulo de Macedo se comoveram muito com a
distinção. Mas sei que o sentimento normal da gente que nos pastoreou desde,
pelo menos o século XVIII é o de que Portugal não aprecia os seus grandes
filhos e que está eternamente morto por os ver pelas costas.
Fora as cerimónias de Estado, ninguém lamentou o
desaparecimento ou a morte do sr. rei D. João V, ou de Pombal , ou do arcebispo
de Tessalónica (confessor da rainha D. Maria I) ou de qualquer dos membros da
longa série dos caudilhos liberais, que por aí andaram entre 1820 e 1910. O
“povo” invariavelmente deu a seu afecto a personagens secundárias, com pouca
influência e cujo desinteresse pelo poder era notório, como José Estêvão ou
Passos Manuel. Tirando o histerismo que Sidónio provocou, os donos da República
foram sem excepção tratados com desprezo e ódio. Depois, nem vale a pena
mencionar o pessoal do “28 de Maio” e da Ditadura. E, quanto ao PREC, ainda
continua universalmente a meter medo e nojo. Cavaco, no fundo, teve muita
sorte.
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