quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Alerta Está



Um escrito poderoso, de quem se lembra e previne. Sempre a anedota, diz Alberto Gonçalves, serviu como escape – em países de maior domínio opressivo, naturalmente arriscado, – para amenizar as tragédias impostas pela má governação. Mas também outras espécies de escrita, de maior alcance, serviram para avisar, para orientar, para encaminhar, quer na seriedade de um pensamento crítico, quer na captação de figuras representativas dos ridículos de cada época, e nesse ponto, entre nós, foi Eça o mais explícito.
Hoje o ataque é mais directo, sobretudo porque a escrita literária de mais fácil acesso está mais confinada ao jornalismo, e neste, pequenos primores se vão colhendo aqui, além, de textos que nos avisam, de escritores com experiência e arte que, lembrando a História, sabendo dos factos passados e presentes, e conhecendo o Homem de sempre, nos vão alertando para o perigo do irreparável.
Assim o faz Alberto Gonçalves, com ferocidade, com preocupação. Com muita coragem:

Uma anedota de país
Alberto Gonçalves
Público, 14/2/16
Há muitas páginas escritas sobre a função do riso em situações trágicas. E há quase tantas páginas escritas sobre o que acontece quando a tragédia é o comunismo e os infelizes que o sofrem recorrem ao humor para mitigar o infortúnio. A URSS, onde o género era, com o extermínio, das raras indústrias eficazes, é o caso clássico - e extremo (Como é que lidam com as infestações de ratos no Kremlin? / Põem um cartaz a dizer "Quinta Colectiva". Metade morre de fome e a metade restante foge num ápice). De 1917 a 1989, produziram-se, no devido anonimato, largos milhares de anekdoty sobre a miséria em vigor e os psicopatas que a impunham (Lenine morreu, mas a sua causa viverá! / Por acaso, eu preferia ao contrário).
No meio da opressão, o contraste entre os objectivos proclamados dos regimes marxistas e os seus grotescos resultados favorece a galhofa melancólica: se rir não é o melhor remédio, é frequentemente o alívio possível. Assim foi na URSS, assim foi nos "satélites" da URSS e nas metástases do Terceiro Mundo, e assim é e será em todas as desafortunadas "experiências" semelhantes. Há meses, a revista New Yorker compilou diversas anedotas representativas da sobrevivência na Venezuela, o farol dos povos do século XXI. Eis uma. Cansado de esperar em fila por alimentos básicos, um homem diz ao amigo que vai matar o presidente Maduro. Horas depois, regressa. "Conseguiste?", pergunta o amigo. "Não, a fila era ainda maior..."
Um país sabe que iniciou a descida aos abismos sem retorno previsto no momento em que as piadas acerca dos senhores no poder se multiplicam diária e exponencialmente. Um país sabe que caminha para o comunismo sempre que as piadas têm graça. O exemplo português é o mais recente de uma longa série de calamidades históricas. E um dos mais fulminantes: algumas semanas chegaram para que uma maioria parlamentar alucinada, um governo de desavergonhados e a curiosa nulidade que preside ao arranjo nos orientassem rumo ao desastre. Cada dia, enquanto os serviçais da nulidade exaltam o progresso e culpam tudo o que se move pelo atraso, Portugal retrocede um trimestre ou dois, proeza que não tarda a elevar-nos ao glorioso panteão dos indigentes da Terra. O humor, uma óptima resposta e um péssimo sinal, também não tardou.
Um destes dias, o pequeno autarca transformado em Grande Líder por seitas de irresponsáveis naturalmente acrescentou pedagogia ao destrambelhamento económico. Decidido a justificar o saque fiscal para satisfazer clientelas, o dr. Costa recomendou que não fumássemos, não andássemos de carro e não contraíssemos empréstimos. Antes que divagasse contra o álcool, o bife e a água quente, certos cidadãos menos anestesiados criaram no Twitter a conta Costa, Primeiro, na qual se sugeriam novos conselhos de Sua Excelência e inspiraram a proliferação da hashtag #ConselhosDoCosta: "Não gaste de uma vez os 60 cêntimos de aumento nas pensões"; "Poupe no IMI e more numa tenda"; "Ande à chuva de boca aberta"; "Acorde tarde e salte uma refeição"; "Diga sim à eutanásia"; "Aproveite as inundações e desloque-se de canoa"; "Use o Wi-Fi do vizinho rico"; "Trabalhe 45 horas e evite os custos das 35 da função pública"; "Faça xixi no banho e economize no autoclismo"; etc.
E é isto. Encontrámo-nos em via acelerada para o tipo de sociedade em que apenas as graçolas nos protegem da insanidade e da prepotência. Trata-se, claro, de uma protecção em última instância inútil, e em primeira débil: por "violação das regras", a referida conta depressa desapareceu do Twitter. O comunismo garante a liberdade de expressão, não a liberdade após a expressão - já rezava a anedota, e bem precisamos que as anedotas rezem.

Quarta-feira, 10 de Fevereiro
Marcados pelo ócio
Eles reuniram-se em Berlim. Eles vão "agitar a Europa, de forma gentil mas firme". Eles prometem "voltar a pôr o demo na democracia", já que o continente "ou se democratiza ou se desintegra". Eles exigem "transparência". Eles têm um manifesto com quatro princípios: "Nenhum europeu será livre enquanto a democracia de outro for violada; nenhum europeu pode viver com dignidade enquanto a dignidade de outro for negada; nenhum europeu pode desejar prosperidade se outro for forçado a uma insolvência e depressão permanentes; nenhum europeu pode crescer sem bens básicos para os cidadãos mais frágeis." Eles dirigem-se "principalmente aos que estão cansados da política, que estão deprimidos e optam por ver reality shows na televisão para tentar esquecer os seus problemas". Eles são o Movimento para a Democracia na Europa 2025 (DiEM 25), lançado pelo pensador grego Varoufakis e por sumidades políticas de diversos países, tão relevantes que os partidos que formaram ou apoiam nem conseguiram ser eleitos para os respectivos parlamentos.
Mudando de assunto, conheci em tempos um sujeito que passava os dias de fato de treino num café da vizinhança, a conspirar a tomada de Olivença. Depois vieram os enfermeiros, levaram-no de forma gentil mas firme e impediram o ataque decisivo.

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