Um escrito poderoso, de quem
se lembra e previne. Sempre a anedota, diz Alberto Gonçalves, serviu como
escape – em países de maior domínio opressivo, naturalmente arriscado, – para amenizar as
tragédias impostas pela má governação. Mas também outras espécies de escrita,
de maior alcance, serviram para avisar, para orientar, para encaminhar, quer na
seriedade de um pensamento crítico, quer na captação de figuras representativas
dos ridículos de cada época, e nesse ponto, entre nós, foi Eça o mais
explícito.
Hoje o ataque é mais directo,
sobretudo porque a escrita literária de mais fácil acesso está mais confinada
ao jornalismo, e neste, pequenos primores se vão colhendo aqui, além, de textos
que nos avisam, de escritores com experiência e arte que, lembrando a História,
sabendo dos factos passados e presentes, e conhecendo o Homem de sempre,
nos vão alertando para o perigo do irreparável.
Assim o faz Alberto Gonçalves,
com ferocidade, com preocupação. Com muita coragem:
Uma anedota de país
Alberto Gonçalves
Público, 14/2/16
Há muitas páginas escritas sobre a função do riso em
situações trágicas. E há quase tantas páginas escritas sobre o que acontece
quando a tragédia é o comunismo e os infelizes que o sofrem recorrem ao humor
para mitigar o infortúnio. A
URSS, onde o género era, com o extermínio, das raras indústrias eficazes, é o
caso clássico - e extremo (Como é que lidam com as infestações de ratos no
Kremlin? / Põem um cartaz a dizer "Quinta Colectiva". Metade morre de
fome e a metade restante foge num ápice). De 1917 a 1989, produziram-se, no
devido anonimato, largos milhares de anekdoty sobre a miséria em vigor e os
psicopatas que a impunham (Lenine morreu, mas a sua causa viverá! / Por acaso,
eu preferia ao contrário).
No meio da opressão, o contraste entre os objectivos
proclamados dos regimes marxistas e os seus grotescos resultados favorece a
galhofa melancólica: se rir não é o melhor remédio, é frequentemente o alívio
possível. Assim foi na
URSS, assim foi nos "satélites" da URSS e nas metástases do Terceiro
Mundo, e assim é e será em todas as desafortunadas "experiências"
semelhantes. Há meses, a revista New Yorker compilou diversas anedotas
representativas da sobrevivência na Venezuela, o farol dos povos do século XXI.
Eis uma. Cansado de esperar em fila por alimentos básicos, um homem diz ao
amigo que vai matar o presidente Maduro. Horas depois, regressa.
"Conseguiste?", pergunta o amigo. "Não, a fila era ainda
maior..."
Um país sabe que iniciou a descida aos abismos sem
retorno previsto no momento em que as piadas acerca dos senhores no poder se
multiplicam diária e exponencialmente. Um país sabe que caminha para o
comunismo sempre que as piadas têm graça. O exemplo português é o mais recente
de uma longa série de calamidades históricas. E um dos mais fulminantes: algumas
semanas chegaram para que uma maioria parlamentar alucinada, um governo de
desavergonhados e a curiosa nulidade que preside ao arranjo nos orientassem
rumo ao desastre. Cada dia, enquanto os serviçais da nulidade exaltam o
progresso e culpam tudo o que se move pelo atraso, Portugal retrocede um
trimestre ou dois, proeza que não tarda a elevar-nos ao glorioso panteão dos
indigentes da Terra. O humor, uma óptima resposta e um péssimo sinal,
também não tardou.
Um destes dias, o pequeno autarca transformado em
Grande Líder por seitas de irresponsáveis naturalmente acrescentou pedagogia ao
destrambelhamento económico. Decidido a justificar o saque fiscal para
satisfazer clientelas, o dr. Costa recomendou que não fumássemos, não
andássemos de carro e não contraíssemos empréstimos. Antes que divagasse contra
o álcool, o bife e a água quente, certos cidadãos menos anestesiados criaram no
Twitter a conta Costa, Primeiro, na qual se sugeriam novos conselhos de Sua
Excelência e inspiraram a proliferação da hashtag #ConselhosDoCosta: "Não gaste de uma vez os 60 cêntimos de
aumento nas pensões"; "Poupe no IMI e more numa tenda";
"Ande à chuva de boca aberta"; "Acorde tarde e salte uma
refeição"; "Diga sim à eutanásia"; "Aproveite as inundações
e desloque-se de canoa"; "Use o Wi-Fi do vizinho rico";
"Trabalhe 45 horas e evite os custos das 35 da função pública";
"Faça xixi no banho e economize no autoclismo"; etc.
E é isto. Encontrámo-nos em via acelerada para o tipo
de sociedade em que apenas as graçolas nos protegem da insanidade e da
prepotência. Trata-se, claro,
de uma protecção em última instância inútil, e em primeira débil: por
"violação das regras", a referida conta depressa desapareceu do
Twitter. O comunismo garante a liberdade de expressão, não a liberdade após
a expressão - já rezava a anedota, e bem precisamos que as anedotas rezem.
Quarta-feira, 10 de Fevereiro
Marcados pelo ócio
Eles reuniram-se em Berlim. Eles vão "agitar a
Europa, de forma gentil mas firme". Eles prometem "voltar a pôr o
demo na democracia", já que o continente "ou se democratiza ou se
desintegra". Eles exigem "transparência". Eles têm um manifesto
com quatro princípios: "Nenhum europeu será livre enquanto a democracia
de outro for violada; nenhum europeu pode viver com dignidade enquanto a
dignidade de outro for negada; nenhum europeu pode desejar prosperidade se
outro for forçado a uma insolvência e depressão permanentes; nenhum europeu
pode crescer sem bens básicos para os cidadãos mais frágeis." Eles
dirigem-se "principalmente aos que estão cansados da política, que estão
deprimidos e optam por ver reality shows na televisão para tentar esquecer os
seus problemas". Eles são o Movimento para a Democracia na Europa 2025
(DiEM 25), lançado pelo pensador grego Varoufakis e por sumidades políticas de
diversos países, tão relevantes que os partidos que formaram ou apoiam nem
conseguiram ser eleitos para os respectivos parlamentos.
Mudando de assunto, conheci em tempos um sujeito que
passava os dias de fato de treino num café da vizinhança, a conspirar a tomada
de Olivença. Depois vieram os enfermeiros, levaram-no de forma gentil mas firme
e impediram o ataque decisivo.
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