Eu, traidor, me confesso
Público, 4/02/2016
Anteontem descobri que sou um traidor à pátria. Eis o
meu crime: criticar o governo socialista pela contabilidade criativa inscrita
no seu primeiro esboço de orçamento e pelas consequências para o país dessa
postura pouco séria. Até há bem pouco tempo, a isto chamava-se uma “opinião”.
Entretanto, passou a chamar-se “traição”. No ano da graça de 2016, dizer que
António Costa está a dar cabo da pátria é antipatriótico.
Porfírio Silva, que está para António Costa como o
professor Manuel Sérgio estava para Jorge Jesus, colocou nas redes sociais uma
imagem da famosa defenestração de 1640 com o seguinte comentário: “Miguel de
Vasconcelos. Os de hoje devem ser tratados com mais civilidade, claro. Mas
nunca deixam de ser o que são, essa é que é essa.” João Galamba, numa das suas
divertidas conferências de imprensa, declarou: “A negociação em curso é um
processo normal, que já se verificou com outros países. Ao contrário do que
sucede em Portugal, não consta que nesses países a oposição faça claque contra
os interesses dos seus povos, tentando limitar a margem de manobra negocial dos
respectivos governos.” E Ana Sá Lopes, que leio sempre com prazer,
lembrou-se de ir buscar o fantasma da Quinta Coluna, afirmando: “Portugal
dispõe hoje de uma quinta coluna bastante disponível para prejudicar os
interesses nacionais em favor dos interesses dos países mais fortes da UE. São
muitos, vivem de cara destapada, multiplicam-se pelas televisões (às vezes
parecem omnipresentes) e desejam que Portugal seja derrotado, os portugueses
sejam levados para mais cortes, as agências de rating rebentem com o país e os
juros da dívida subam à velocidade dos balões.”
Lá está: para Porfírio Silva, João Galamba ou Ana Sá
Lopes (a lista poderia continuar) eu não posso simplesmente acreditar que a
receita keynesiana aplicada desta forma a Portugal é um desastre que vai
enterrar ainda mais o país. Não – se eu acredito nisso, então só posso ser um
antipatriota, um membro da “claque” derrotista, um cúmplice dos mercados, um
privilegiado com vida de rico, um voluntário da quinta coluna empenhado em
“prejudicar os interesses nacionais” e em celebrar a derrota de Portugal. Boa
parte da esquerda é incapaz de olhar para a direita e simplesmente argumentar
que ela está enganada. Não. Nós, os da direita, temos de ser maus. Temos de ser
vendidos. Temos de ser traidores. Temos de ser Miguéis de Vasconcelos.
Há duas formas de olhar para isto. Se quisermos ver o
copo meio cheio, podemos sempre saudar o facto de o insulto “fascista!” estar a
perder força. Até há bem pouco tempo, a esquerda não resistia a gritar
“fascista!”, tal como o Dr. Strangelove não resistia a erguer o braço. Mas se
quisermos ver o copo meio vazio, podemos justamente temer que o antipatriota
seja o novo fascista. Ou seja, quem não alinhar na retórica “Para Portugal e
em força” e se atrever a criticar os denodados esforços do regoverno de António
Costa, corre o risco de ser publicamente desqualificado como perigosos
colaboracionista e capanga de Wolfgang Schäuble. Todos sabemos que a
extrema-esquerda não se contenta em ter apenas adversários – ela precisa de
inimigos. Este novo inimigo tem, ao menos, a vantagem de mostrar o óbvio: é na
esquerda portuguesa que as forças mais conservadoras instalaram o seu bivaque. Com
sorte, talvez a direita ainda possa vir a acusar o PS de ser salazarento, nesta
sua nova mistura de “deixem-me trabalhar” com “orgulhosamente sós”.
Os mandamentos
Público, 13/2/16
O sr. primeiro-ministro, dr.
António Costa, deu três conselhos soberanos à Nação Portuguesa, que nos cabe
agora respeitar e seguir. Primeiro, que deixássemos de fumar. Segundo,
andássemos de transportes públicos. Terceiro, que não pedíssemos dinheiro
emprestado, sobretudo aos bancos. Estes mandamentos, cuja genialidade e
subtileza ninguém põe em causa, são no entanto um pouco ambíguos e de certa
maneira incompletos. Numa interpretação superficial, parecem regras para o
cidadão comum (e o patriota) para evitar o imposto. Mas mesmo nessa
compreensível hipótese, deixam muito a desejar. O dr. António Costa não se
lembrou de outros preceitos com um resultado mais fácil e seguro. Por exemplo,
deixar de trabalhar, deixar de comer, abandonar a família e viver na rua. O
pior é que essas medidas prejudicariam o consumo de que ele espera a
prosperidade do país.
Dito isto, nada excluiu que o dr. António Costa não
estivesse a pensar nos mesquinhos problemas da fiscalidade e pretendesse com as
sua preciosa experiência paternalmente promover a saúde dos portugueses. O
ataque ao imundo vício do tabaco não precisa de explicações. Infelizmente não
chega para criar um eleitorado que possa votar nele em 2065. O Estado já
reduziu o sal no pão e criou a ASAE. Mas falta ainda combater o vinho e, em
geral, impor uma “lei seca” inflexível, que permita retirar de circulação as
pessoas com maus costumes, principalmente aquelas com um estilo de vida
incompatível com a construção da nova página do socialismo e com a maravilhosa
liberdade que nele reinará.
Numa terceira e última interpretação, não me admiraria
que o dr. António Costa, demonstrando a sua inigualável habilidade táctica,
fosse uma infiltração dos “Verdes” da Europa e do nosso próprio PC para pura e
simplesmente liquidar o automóvel. Com esta astuciosa política, o PS e o mestre
que hoje o dirige conseguiriam objectivos capazes de espantar a massa vil que
povoa o Oriente e o Ocidente. Para só falar em alguns, a igualdade perante o
transporte seria absoluta, poupando à pobreza e à velhice o espectáculo degradante
dos carros do capitalismo de casino e mais maroteiras. Depois não se devem
esquecer os benefícios da bicicleta que suprime a barriga (até a do nosso
chefe) e purifica o ar. Nem subestimar o que a bicicleta (e o triciclo) fazem
pelo regresso a uma sociedade mais rural e mais sã. O coração do dr. António
Costa é maior do que a razão da plebe.
Contra a seriedade de João Miguel Tavares, exasperado com a atitude ressabiada do novo grupo político, que goza fartamente o seu
poder de mando “patriótico” – e é ver como todos eles, no Parlamento, iniciando
os seus debates com ataques desses à direita, instigam seguidamente o 1º
ministro em ademanes de uma suavidade ameaçadora, lembrando constantemente que a
palavra que lhes foi dada, (não sei se meteu a honra, como é costume nestas
cenas), é para ser “cumprida”, e aqui pode muito a doutrinação da catequese,
por a honra ser já palavra de parco conhecimento, há muito puída no sofisticado
uso cavaleiresco …
Contra, pois, a indignação juvenil de João Miguel
Tavares, saliente no seu artigo, com as tropelias vocabulares da esquerda, que
vê traição no bom-senso, o artigo de Vasco Pulido Valente, com muita bonomia, confronta
os “mandamentos” saídos da boca singela de António Costa, que deram no goto de muitos.
Só que, ao contrário dos mandamentos de Passos Coelho que provocaram bastas
vaias nos defensores da dignidade, os do novo primeiro ministro são acatados,
com respeito, pelos mesmos, com ironia pelos da oposição.
Por tudo isso relembro Sá de Miranda e as filosofias libertárias
do pastor Gil da “Écloga Basto”, que anda sumido nos montes, e se
desculpa perante o dissuasor Bieito, com verdades de todos os tempos, sobre as
naturais mudanças que se dão nas coisas e nas gentes:
Vês tu que cousa estê queda?
Ora é noite, ora amanhece,
Ora corre uma moeda,
Ora outra; tudo envelhece,
Tudo tem no cabo a queda.
E nós a ter mão na conta
Errada! Sejamos velhos
Quer meninos – que mais monta?
O presente tudo afronta,
A vida vai-se em conselhos.
Bem fez o João de Deus, que pôs no retrato da
rapariguinha namoradeira, a aplicação das teorias hedonistas contrariando os
comedimentos do estoicismo ou do preconceito:
Amores, Amores
Não sou eu
tão tola
Que caia em casar;
Mulher não é rola
Que tenha um só par:
Eu tenho um moreno,
Tenho um de outra cor,
Tenho um mais pequeno,
Tenho outro maior.
Que mal faz um beijo,
Se apenas o dou,
Desfaz-se-me o pejo,
E o gosto ficou?
Um deles por graça
Deu-me um, e, depois,
Gostei da chalaça,
Paguei-lhe com dois.
Abraços, abraços,
Que mal nos farão?
Se Deus me deu braços,
Foi essa a razão:
Um dia que o alto
Me vinha abraçar,
Fiquei-lhe de um salto
Suspensa no ar.
Vivendo e gozando,
Que a morte é fatal,
E a rosa em murchando
Não vale um real:
Eu sou muito amada,
E há muito que sei
Que Deus não fez nada
Sem ser para quê.
Amores, amores,
Deixá-los dizer;
Se Deus me deu flores,
Foi para as colher:
Eu tenho um moreno,
Tenho um de outra cor,
Tenho um mais pequeno,
Tenho outro maior
Que caia em casar;
Mulher não é rola
Que tenha um só par:
Eu tenho um moreno,
Tenho um de outra cor,
Tenho um mais pequeno,
Tenho outro maior.
Que mal faz um beijo,
Se apenas o dou,
Desfaz-se-me o pejo,
E o gosto ficou?
Um deles por graça
Deu-me um, e, depois,
Gostei da chalaça,
Paguei-lhe com dois.
Abraços, abraços,
Que mal nos farão?
Se Deus me deu braços,
Foi essa a razão:
Um dia que o alto
Me vinha abraçar,
Fiquei-lhe de um salto
Suspensa no ar.
Vivendo e gozando,
Que a morte é fatal,
E a rosa em murchando
Não vale um real:
Eu sou muito amada,
E há muito que sei
Que Deus não fez nada
Sem ser para quê.
Amores, amores,
Deixá-los dizer;
Se Deus me deu flores,
Foi para as colher:
Eu tenho um moreno,
Tenho um de outra cor,
Tenho um mais pequeno,
Tenho outro maior
Ou, para os que já não estão na idade de casar, façamos
como aconselha Bieito, que quer levar Gil ao seu rebanho, isto é, reconduzi-lo à
aldeia, junto dos seus:
Come de toda a
vianda,
Não andes nesses entejos:
Não sejas tão vindo à banda,
Tem-te às voltas co’os desejos
Anda por onde o carro anda.
Vês como os mundos são feitos:
Somos muitos, tu só és:
Por isso, em todos seus jeitos,
Um esquerdo entre direitos
Parece que anda ao revés.
E conta a história do homem que resguardado da chuva,
foi atacado por todos os que queriam folia. Meteu-se no charco, brincou com os
outros,
“Molhou-se de toda a parte
Tomou-a como mezinha.…
Logo todos se entenderam:
Ei-los vão numa chacota.
É tempo de brincadeira. Lancemo-nos ao charco.
Façamo-lo “como mezinha”.
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