quarta-feira, 4 de maio de 2016

Ai, Olivença



Comecei por estranhar o subtítulo do texto, «Consoante muda», em epígrafe, o título -«Ai, Uruguai» - contendo sete vogais, nem o g nem o r me parecendo enfileirar entre as tais consoantes “mudas” - mas a leitura do artigo  mostrou-me o trocadilho, puro caso de homonímia, “consoante” funcionando como conjunção e não como nome, “muda” como verbo e não como adjectivo.
Trata-se  de um curioso texto de reivindicação patriótica, qual outra Olivença que o Tratado de Alcanizes fizera portuguesa em 1297 e o Tratado de Badajoz tornou espanhola em 1801.
Gostei do texto, que me levou à consulta de dados sobre a história do Uruguai, na Internet, naturalmente, local de orientação mais cómoda e directa do que a consulta dos livros pesados, para pessoas manifestamente vocacionadas para o peso da cultura. De resto, Rui Tavares dá-nos uma resenha sobre a história de Uruguai e mantém que não tem uma língua oficial, embora a síntese da internet informe que é o espanhol a língua oficial.
«O início do século XIX viu o surgimento de movimentos de independência por toda a América do Sul, incluindo o Uruguai, cujo território constituiu parte da Banda Oriental do Uruguai (isto é, "faixa a leste do rio Uruguai"), cujo território foi disputado pelos estados nascentes do Brasil, herdeiro de Portugal, e das Províncias Unidas do Rio da Prata, atualmente República Argentina, com capital em Buenos Aires, herdeira do Vice-reinado do Prata da Espanha.»
Uma nação desenvolta, que Rui Tavares parece conhecer, fazendo-o desejar que se tornasse mais um Palop menos humilhante, no seu êxito económico e social, do que esses que se tornaram de nós independentes no século XX, Palops de terras com potencial mais económico do que humano.
Fica-lhe bem a ternura e o orgulho, no cansaço do seu ai, também de trocadilho, que tanto pode exprimir ambição, desejo de posse, invejazinha, por um Uruguai bem sucedido, como tristeza de rejeição por esses países que não estariam ainda preparados para a sua autonomia, como se tem visto, e que Rui Tavares talvez despreze, tal como os seus antepassados do espírito de Abril.
De resto os ais são coisa bem poderosa entre nós,  a canção nacional deles recheada,  tal como neles são peritos Guerra Junqueiro e António Nobre, o próprio Alencar de Alenquer tendo-os quantificado, como já deixei escrito, referindo-se a Seteais, é certo que por malícia de um Eça atento:
Quantos luares eu lá vi!
Que doces manhãs de abril!
E os ais que soltei ali
Não foram sete, mas mil!

Ai, Uruguai
Público, 27/04/2016
Passo pelo centro da cidade e vejo de repente, em plena Praça do Comércio, a bandeira da Guiné Equatorial. Lá estava ela ao lado das outras oito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Para nos lembrar como os interesses petrolíferos levaram à CPLP uma ditadura brutal onde há uma suposta moratória à pena de morte (que ninguém verifica), e onde o ditador rouba os recursos naturais do país para que o seu filho seja um colecionador de carros de luxo que não podem andar nas poucas estradas asfaltadas daquela desventurada terra.
Não que faltem razões históricas para uma relação com o povo da Guiné Equatorial, por onde os portugueses também andaram e onde há ainda quem fale um dialeto de base portuguesa na ilha de Ano Bom. Mas se essas fossem razões suficientes para entrar um país na CPLP, eu preferiria ter visto outro na frente da fila: o Uruguai.
Antes que alguém diga: “mas o Uruguai tem como língua oficial o espanhol!” — interrompo para responder que não tem. O Uruguai não tem idioma oficial. E isso não acontece por acaso, mas pela razão histórica de que a República Oriental do Uruguai, como é seu nome constitucional, foi criada como uma espécie de Bélgica da América do Sul, ou seja, para servir de tampão entre o Brasil e a Argentina, sucessores do império português e do império espanhol. Por isso foi deixada propositadamente sem língua oficial, nem português nem espanhol, num esforço de neutralidade.
Muita gente já ouviu falar da uruguaia Colónia do Sacramento, que foi a mais meridional das cidades portuguesas e se situa mesmo em frente a Buenos Aires, na margem uruguaia do Rio da Prata. Esta cidade foi intermitentemente portuguesa e espanhola durante século e meio, e serviu de moeda de troca nas negociações pela posse do território das Missões, no atual estado brasileiro do Rio Grande do Sul.
Mas há menos quem saiba que todo o Uruguai foi, no início do século XIX, parte do Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves, com o nome de Província Cisplatina. Após 1822, o Uruguai passou a fazer parte do Império Brasileiro. Em 1825, o Uruguai tornou-se independente, não — como muita gente pensa — do império espanhol, mas sim do império brasileiro.
Este é um caso único na América de língua espanhola — mas o Uruguai é também, embora minoritariamente, de língua portuguesa. Há cidades de fronteira com o Brasil, onde o português é língua materna. O “portunhol riverense”, também chamado de “fronteiriço”, é um dialeto de base portuguesa reconhecido pelo estado uruguaio. E a língua portuguesa é de ensino obrigatório nas escolas do país.
Para mais, o Uruguai é um país democrático e respeitador dos direitos humanos. A pena de morte foi abolida em 1907. Foi um dos primeiros países na América a reconhecer o casamento gay e um dos primeiros no mundo a legalizar as drogas leves. E — esta é a melhor — já pediu e repetiu o pedido para ser observador na CPLP. Se tivéssemos sido um pouco mais ativos ainda poderíamos ter tido José “Pepe” Mujica nas cimeiras da lusofonia.
É por isso que, de cada vez que eu passar pelas bandeiras da CPLP e lá vir a da Guiné Equatorial hei de suspirar e pensar: mal por mal, preferia o Uruguai.

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