Comecei por estranhar o subtítulo
do texto, «Consoante muda», em epígrafe, o título -«Ai,
Uruguai» - contendo sete vogais, nem o g nem o r me parecendo
enfileirar entre as tais consoantes “mudas” - mas a leitura do artigo mostrou-me o trocadilho, puro caso de
homonímia, “consoante” funcionando como conjunção e não como nome, “muda” como
verbo e não como adjectivo.
Trata-se de um curioso texto de reivindicação
patriótica, qual outra Olivença que o Tratado de Alcanizes fizera portuguesa em
1297 e o Tratado de Badajoz tornou espanhola em 1801.
Gostei do texto, que me levou
à consulta de dados sobre a história do Uruguai, na Internet, naturalmente,
local de orientação mais cómoda e directa do que a consulta dos livros pesados,
para pessoas manifestamente vocacionadas para o peso da cultura. De resto, Rui
Tavares dá-nos uma resenha sobre a história de Uruguai e mantém que não tem uma
língua oficial, embora a síntese da internet informe que é o espanhol a língua
oficial.
«O início do século
XIX viu o surgimento de movimentos de independência por toda a América
do Sul, incluindo o Uruguai, cujo território constituiu parte da Banda Oriental do Uruguai (isto é,
"faixa a leste do rio Uruguai"), cujo território foi disputado pelos
estados nascentes do Brasil, herdeiro de Portugal, e das Províncias Unidas do Rio da Prata,
atualmente República Argentina, com capital em Buenos
Aires, herdeira do Vice-reinado do Prata da Espanha.»
Uma nação desenvolta, que Rui Tavares parece conhecer, fazendo-o desejar que se tornasse mais um Palop menos
humilhante, no seu êxito económico e social, do que esses que se tornaram de
nós independentes no século XX, Palops de terras com potencial mais económico
do que humano.
Fica-lhe bem a ternura e o
orgulho, no cansaço do seu ai, também de trocadilho, que tanto pode
exprimir ambição, desejo de posse, invejazinha, por um Uruguai bem sucedido, como
tristeza de rejeição por esses países que não estariam ainda preparados para a
sua autonomia, como se tem visto, e que Rui Tavares talvez despreze, tal como
os seus antepassados do espírito de Abril.
De resto os ais são coisa bem poderosa
entre nós, a canção nacional deles
recheada, tal como neles são peritos Guerra
Junqueiro e António Nobre, o próprio Alencar de Alenquer tendo-os quantificado,
como já deixei escrito, referindo-se a Seteais, é certo que por malícia de um Eça
atento:
Quantos luares eu lá vi!
Que doces manhãs de abril!
E os ais que soltei ali
Não foram sete, mas mil!
Ai,
Uruguai
Público, 27/04/2016
Passo pelo centro da cidade e vejo de repente, em plena
Praça do Comércio, a bandeira da Guiné Equatorial. Lá estava ela ao lado das
outras oito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Para nos lembrar
como os interesses petrolíferos levaram à CPLP uma ditadura brutal onde há uma
suposta moratória à pena de morte (que ninguém verifica), e onde o ditador
rouba os recursos naturais do país para que o seu filho seja um colecionador de
carros de luxo que não podem andar nas poucas estradas asfaltadas daquela
desventurada terra.
Não
que faltem razões históricas para uma relação com o povo da Guiné Equatorial,
por onde os portugueses também andaram e onde há ainda quem fale um dialeto de
base portuguesa na ilha de Ano Bom. Mas se essas fossem razões suficientes
para entrar um país na CPLP, eu preferiria ter visto outro na frente da fila: o
Uruguai.
Antes
que alguém diga: “mas o Uruguai tem como língua oficial o espanhol!” —
interrompo para responder que não tem. O Uruguai não tem idioma oficial.
E isso não acontece por acaso, mas pela razão histórica de que a República
Oriental do Uruguai, como é seu nome constitucional, foi criada como uma
espécie de Bélgica da América do Sul, ou seja, para servir de tampão entre o
Brasil e a Argentina, sucessores do império português e do império espanhol.
Por isso foi deixada propositadamente sem língua oficial, nem português nem
espanhol, num esforço de neutralidade.
Muita
gente já ouviu falar da uruguaia Colónia do Sacramento, que foi a
mais meridional das cidades portuguesas e se situa mesmo em frente a Buenos
Aires, na margem uruguaia do Rio da Prata. Esta cidade foi intermitentemente
portuguesa e espanhola durante século e meio, e serviu de moeda de troca nas
negociações pela posse do território das Missões, no atual estado brasileiro do
Rio Grande do Sul.
Mas
há menos quem saiba que todo o Uruguai foi, no início do século XIX, parte
do Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves, com o nome de Província
Cisplatina. Após 1822, o Uruguai passou a fazer parte do Império Brasileiro. Em
1825, o Uruguai tornou-se independente, não — como muita gente pensa — do
império espanhol, mas sim do império brasileiro.
Este
é um caso único na América de língua espanhola — mas o Uruguai é também,
embora minoritariamente, de língua portuguesa. Há cidades de fronteira com
o Brasil, onde o português é língua materna. O “portunhol riverense”, também
chamado de “fronteiriço”, é um dialeto de base portuguesa reconhecido pelo
estado uruguaio. E a língua portuguesa é de ensino obrigatório nas escolas do
país.
Para
mais, o Uruguai é um país democrático e respeitador dos direitos humanos. A
pena de morte foi abolida em 1907. Foi um dos primeiros países na América a
reconhecer o casamento gay e um dos primeiros no mundo a legalizar as drogas
leves. E — esta é a melhor — já pediu e repetiu o pedido para ser observador na
CPLP. Se tivéssemos sido um pouco mais ativos ainda poderíamos ter tido José
“Pepe” Mujica nas cimeiras da lusofonia.
É
por isso que, de cada vez que eu passar pelas bandeiras da CPLP e lá vir a da
Guiné Equatorial hei de suspirar e pensar: mal por mal, preferia o Uruguai.
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