O
título é intencional. Traz pezinhos de lã, aparenta simpatia por aqueles
oriundos de um Moçambique gracioso, na saudade de espaços e recantos que também
percorremos e amámos e revimos, quer em filme, quer na Internet, em imagens de
grande beleza arquitectónica onde a
Catedral impera, no meio do esquadriado do traçado urbano, de amplos edifícios.
Um texto apelativo de emoção, na referência a tantos belos lugares da nossa
lembrança, (com exclusão da praia da Polana, sítio de menor intelectualidade, e
dos prazeres saudáveis de uma infância de piqueniques ao domingo, no convívio
com os macacos, que comiam das nossas bananas e bebiam da água das torneiras,
lá perto do Pavilhão, onde não faltavam as árvores antigas, ao longo da estrada,
donde eles desciam). A intelectualidade fixara-se predominantemente, nos anos
sessenta, nos espaços da Baixa, de teatros e cafés – o Continental – ah! O Continental!
– da confluência de advogados e doutores e tantos mestres na arte da
coscuvilhice espirituosa, ou do desabafo dramático, ou dos temas da seriedade
política ou cultural, que ali punham em dia o que se ia fabricando em termos de
“país dos outros” nas costas dos incautos, que éramos a maioria. Foi lá, no
Continental, que encontrei um dia Zeca Afonso, de que ouvira falar em Coimbra, desterrado
pela Pide para o Liceu António Enes, onde eu trabalhara dois anos, casado em
segundas núpcias com uma mocinha que não tirava os olhos dele, num cuidado e
atenção que fixei com ternura, não sei bem se já conhecedora do seu “Menino
do Bairro Negro” do meu encanto e comoção da boa formação moral, ignorante ainda
do que isso escondia de traição pátria.
A
verdade é que, quando acordámos para a realidade do significado do País desses
Outros, já vivíamos mais para a “Alta”, para os lados da Massano de Amorim,
onde outros cafés preenchiam o nosso convívio, de outros amores e amizades. “O
País dos Outros”, tínhamo-lo recebido de Rui Knopfli, ainda em Coimbra,
em 59, e logo me enamorei de uma poesia rebelde e madura, com tanta
maleabilidade expressiva de um pensamento de angústia predominante, demonstrativa
das relações conflituosas com os outros e consigo próprio, de vez em quando
pintalgada de sensibilidade para com esses outros da fraternidade de encomenda,
que Marx aconselhava e a intelectualidade impunha nessa Lourenço Marques da
saudade de tantos. Aos sábados à noite,
durante os primeiros tempos da nossa vida de trabalho em África, era com Rui Knopfli,
Eugénio Lisboa, o jornalista Vieira Simões e respectivas mulheres, muitas vezes
também com Manuel Luís Pombal, jornalista de bastante humor, que costumávamos,
após o cinema, reunir-nos, na esplanada da Praça 7 de Março, onde a ironia e
o muito saber dos dois primeiros abundavam em demonstrações que, prudentemente,
ou por ignorância, mal acompanhava, percebendo, no seu show que destacava
leituras e filmes, o quanto era rica de prazeres intelectuais a sua vida em
África, que nós outros interrompemos para completarmos os estudos na Metrópole.
E Rui Knopfli não perdia ocasião de salientar quantos graus estava acima de
nós, tímidos ou incultos, ou de leituras mais centradas nos universos livrescos
dos respectivos interesses culturais adquiridos nos cursos próprios da nossa alienação. Essa marca de
despeito, por não ter saído de África e submeter-se, como os outros, à canga do
estudo obrigatório, proporcionador do título académico que ditaria um percurso
profissional diferente, não descurava de a fazer sentir, até mesmo nos seus versos, ele que
fora sempre reconhecido, já no liceu, pela excelência da sua escrita que o
tornara de todos admirado. Rui knopfli justificou com o seu profundo amor por
África a sua desistência de partir em ”Carta
para um amor” - «… Quebrou-se esse velho espanto // e nossos companheiros tiveram a
coragem // de partir para outras cidades // com história, do mundo // (Para
eles a tua lembrança é // fugitiva mágoa). // Só, // eu fiquei abraçado a este
amor anónimo.»
E
Knopfli continuou escrevendo e publicando versos com uma mestria que talvez
tenha atingido em “Mangas Verdes com Sal” a cúpula do seu edifício
poético.
Pedro
Mexia consegue, pois, sensibilizar-nos para o nosso “outrora” em vários andamentos,
e foi com espanto e emoção que li o seu artigo, sobre a visita que fez a
Lourenço Marques, previamente informado dos sítios da bela cidade de outrora, e
através dos escritores que admira – Rui Knopfli e Eugénio Lisboa. Bem haja por
isso.
É
claro que a escolha do título para a sua crónica tem o seu quê de contundente -
“macio”, em todo o caso - contra os que ingenuamente continuam cuidando que tudo
poderia ter sido diferente, não fora o crescendo de sensibilites que atribuem
as nações aos primitivos habitantes, esquecidas essas sensibilites das viagens
dos hominídios africanos pelos continentes alheios, espalhando-se por tudo
quanto foi canto, além dos exemplos bem posteriores dos gregos, romanos, godos,
alanos, árabes e os vikings, que praticaram idêntica vilegiatura, e mais tarde
ingleses, espanhóis, portugueses, que se estabeleceram definitivamente nessas
terras em lutas de independência, nos variados nomes que deram aos seus países,
depois de exterminados – ou quase – os seus habitantes, índios nas Américas. A pátria pluricontinental
não foi mais possível para os portugueses, mas também o não foram as pátrias da
colonização branca independentes – África do Sul e Rodésias – que os ventos da
história - ou a manipulação dos cínicos povos americanos e russos, injustamente
fizeram expulsar, facilitadores de armas e ideologias.
Grande
poeta, Rui Knopfli. Que tratou, nos seus livros, também da negritude, sendo “O
País dos Outros” a porta de entrada do seu sucesso literário. E no
entanto, nunca, nos cafés de sábado à noite, na esplanada da 7 de Março, o ouvi
falar de descolonização, nem de compaixão pelos casos de injustiça social, de
que fez matéria poética. Na esplanada discutia-se literatura e cinema e
diziam-se graças. Afinal, Rui Knopfli tão dividido, como poeta, era apenas um
poeta europeu, não um qualquer Craveirinha, ou Rui de Noronha tão repetitivos
nos seus temas de raiva e apelo à mudança, sendo deste último o seu grito no
final de um soneto “África! Surge et ambula”. Por isso, Knopfli, como
quase todos nós, veio para cá, sempre
desenraizado, ao que se conta, deixando aos outros o “país dos outros”, sem
coragem para acamaradar com eles, em novo status.
Por
cá, também se passa o mesmo: democratas, sim, mas cada macaco (/ca) no seu
galho, que o respeitinho é muito bonito e todos gostamos.
O País dos Outros
Pedro Mexia
E, 14/5/16
O
que sei da África ou o que dela imagino, em especial desta África antigamente
portuguesa? Pouco ou nada, verbetes de enciclopédia, fotografias a sépia,
histórias truncadas, a mensagem de uma amiga dos meus pais que diz “traz-me o
cheiro dos frangipanis”, e os poemas de Rui Knopfli, veementes e melancólicos,
irónicos e sofridos.
Uns dias antes da viagem, comprei em Lisboa,
por graça, dois livrinhos turísticos do tempo da outra senhora, dois livros de
propaganda, e ambos fazem de Moçambique um Portugal que correu bem, uma nação
ultramarina tropical, e de Lourenço Marques uma metrópole estupenda, com
avenidas largas bordejadas de “acácias rubras”, edifícios Art déco e
modernistas com longos corredores e quebra-luzes, o “Stiloguedes” do colossal Pancho,,
a bela estação de comboios verde-pistacho, a catedral branca que parece a
igreja da avenida de Berna, o mítico hotel Polana que até é citado num romance
de Graham Greene, a Praça da Independência
quando ainda não se chamava assim e
tinha um Mouzinho a cavalo em vez de Samora Machel, o espantoso e imponente
Prédio Rubi, o Rádio Clube, a Livraria Minerva Central,, o cinema Scala, o Cine
África, o café Continental, o Salão Cristal. Lugares que quis ver ao vivo, se
ainda existissem, pedaços de vidas das quais não tenho uma nostalgia biográfica
ou política mas, digamos, po´wtica uma nostalgia que vem igualmente dos ensaios
de Eugénio Lisboa, das memórias de Luís Amorim de Sousa, do testemunho duma
geração excepcional de intelectuais portugueses moçambicanos, nativos ou
adoptivos, nenhum deles aliás “colonialista.”
Gente
como Knopfli, de quem eu gostava de ter sido amigo, ou de ter tentado, e que
morreu entristecido como uma árvore transplantada em Londres ou Lisboa. Gente
para quem Moçambique era a terra onde tinham nascido, ainda que vivessem no “país
dos outros” e soubessem isso, gente que, ao contrário do que diziam os
livrinhos que comprei, não entendia Moçambique imperialmente como “a segunda
parcela do território nacional” mas como uma espécie de casa, uma casa precária,
condenada, uma invenção tardia, oitocentista, depois de séculos de fraca ocupação,
de febres de ouro, de surtos desenvolvimentistas, da “dolce vita” para uns e da
iniquidade para outros, da guerra. Ou gente com a condição ambígua de “colono”,
gente que carregou culpas históricas mas que sente um afecto genuíno e que
defende umas lembranças idílicas, tocantes mesmo quando inverosímeis.
Penso
nesta cidade de Maputo como uma quase ficção, reconstruída na minha cabeça, a
partir de autobiografias de terceiros e de capítulos de livros, não conheci
nada disto, nada sei dos colonos e dos africanos, mas também nunca duvidei do
aviso atempado de um conservador inglês no ano de 1960: “o vento da mudança
sopra neste continente”. Conheço muita gente que viveu aqui antes da
independência e que diz sempre “Lourenço Marques”, quando converso com
moçambicanos procuro evitar gafes, mas não julgo ninguém, tudo o que tenho são
histórias esparsas de portugueses que conheço, e de portugueses moçambicanos,
alguns ainda obcecados com a ideia (que me é inacessível) de uma pátria em
vários continentes, outros que dizem de uma forma mais moderna que têm duas
pátrias, e é verdade que vi gente portuguesa emocionada quando cantava, um a
seguir ao outro, os dois hinos, o moçambicano e o nosso, e uma vez um coro
feminino cantou os versos todos de “A Portuguesa” e os portugueses
entreolharam-se e sorriram ao de leve porque não sabiam acompanhar as estrofes
adicionais com que nos homenageavam.
Os
moçambicanos são doces, tinham-me dito, mas o que quer isso dizer “os
moçambicanos”, e serão todos “doces”, todos isto ou aquilo? Além de que podemos
também perguntar: e os “portugueses” como são? Como fomos nós para eles quando
eles e nós éramos compatriotas? Há tantas versões, opostas embora compatíveis,
é possível acreditar em todas? Em conversa, os moçambicanos, quer dizer, um
punhado deles, pareceram-me pessoas bem-educadas, ao estilo anglo-saxónico de
understatement e cordialidade contida, pessoas não confrontacionais, suaves, e
ouvi com frequência frases amáveis sobre os portugueses, talvez autênticas,
talvez da boca para fora, talvez porque já passou muito tempo.
Chei
a Maputo com um punhado de imagens desbotadas, mesmo quando espantosas, imagens
de outros num país dos outros. Mas esta capital já não ostenta o nome eufónico
do comerciante de marfim do tempo de D. João III, tem uma designação
devidamente africana, agora é a Moçambique dos Moçambicanos, a História seguiu
o seu curso. Porém, os poemas de Knopfli que trouxe na bagagem comovem-me, um “eu”
individual esmagado pelos acontecimentos colectivos, em versos como este, sobre
um “fatídico mês de Março” no aeroporto: “Não voltas mais? Digo-lhe
só que não, // Não voltarei, mas ficarei sempre, // algures em pequenos sinais
elegíveis, // a salvo de todas as futurologias indiscretas, // preservado
apenas na exclusividade da memória”.
Com
fingimento e sofrimento, o poeta garante: “Não quero lembrar-me de nada”.
Mas não é isso, não é bem isso, é esta outra coisa talvez: “só me importa
esquecer(…) / o impossível de esquecer”.
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