quarta-feira, 25 de maio de 2016

“A defesa do outro”



Já a nossa amiga, naquele domingo, explicara que se tratava de encenação já não sei a respeito de que caso que eu vira em um qualquer canal, sobre a participação pública nas supostas questões de gravidade social, com repercussões - ou não - sobre a sensibilidade dos passantes, e a sua participação – ou não – na resolução desses casos de rua.
Falávamos no clima fofoqueiro, de bisbilhotice soez que as televisões assumem, com esses casos em que, uma vez mais, se pretende incriminar a indiferença dos transeuntes ou o seu convencionalismo tacanho - no caso, por exemplo, de manifestações de despudor amoroso e provocatório entre homossexuais, que merecerão o repúdio filmado da dama, na paragem do autocarro. Mas a dama não era real, soube-o depois, tratava-se de mais uma cena de farsa televisiva de intervenientes contratados para a representar. Alberto Gonçalves cita outros sketches que compara aos apanhados de Joaquim Letria, outrora, feitos com propósitos maquiavélicos de pôr a ridículo os “parolos” caídos na patranha. Também nunca achei graça aos apanhados de Letria. Outros me fizeram rir, com intenções menos sobranceiras, condenatórias da parlapatice social, porque desportivamente aceitando que qualquer um, incluindo os da rábula, poderia cair nessas esparrelas. Alberto Gonçalves dá pormenores e exemplos, em que uma das figuras da generosidade de encomenda é Catarina do Bloco de Esquerda, pretexto para ironizar sobre uma suposta bondade que a ninguém convence.
Um artigo de alguém sério e com o dom de desmontar os trejeitos e as intenções das mentes pobres desses programas pobres, da nossa parlapatice rústica.
Quanto ao segundo artigo – “Zeitgeist”- o “espírito da época” informa a Internet - conceito romântico alemão, revela bem quanto as consciências são pouco isentas ou rigorosas na interpretação dos factos e atribuição de responsabilidades, segundo a sua orientação partidária.
Mais um artigo de “encher as medidas”, na satisfação de uma clarividência crítica magistral que se constata em cada seu artigo.

E se fosse connosco?
DN, 22/5/16
Alberto Gonçalves
Parece que a SIC exibe regularmente um programa chamado E Se Fosse Consigo?, que segundo os autores "testa a capacidade de intervenção dos portugueses na defesa do outro, a partir de situações ficcionadas". O problema é que nem todas as situações até agora ficcionadas exigem intervenção alheia, de portugueses ou de quem calha. Que eu visse - e não vi tudo dado passar imenso tempo à procura do "outro" para defender - não há simulação de terramotos, guerras, terrorismo islâmico, Rock in Rio ou calamidades afins. Há, ao que pude espreitar no site da estação, o tipo de comportamentos patetas que inspiram as almas sensíveis a fomentar a denúncia ao Estado, o Estado a produzir leis, as leis a legitimar um observatório e duas comissões de protecção (ou metade de um ministério).
Trata-se, claro, da "agenda" própria da época, que segrega bem segregadinhos os "oprimidos" (mulheres, gays, minorias étnicas, pobres, obesos, etc.) e os "opressores" (machos brancos, de preferência endinheirados) por categorias rígidas, num processo de simplificação que oscila entre o atraso mental e o puro preconceito. E, algures no meio, os tiros nos pés: parafraseando a Helena Matos, quantas apresentadoras da SIC são gordas, aborígenes, lésbicas e habitam um T2 de renda técnica em Chelas?
Num dos "casos" transmitidos, sobre o (atenção: aproximação de linguagem "especializada") bullying, três crianças aliviam a mochila de uma quarta e, enquanto lhe chamam "princesa", atiram-lhe os cadernos ao chão. Desde Treblinka que não se via semelhante drama humano. A SIC, porém, entende que tamanha irrelevância é de uma gravidade extrema, ou pelo menos a suficiente para que cada transeunte "consciente" (os restantes são uns bandalhos) ajude a vítima, a qual, se não for completamente choninhas, acabará ainda mais enxovalhada. Noutro "caso", uma senhora reclama, sem grande convicção (os "actores" não foram exactamente recrutados na Julliard), das intimidades de um casal homossexual na paragem de autocarro.
Mas o episódio de que se fala tenta exemplificar, evidentemente sem o conseguir, a violência no namoro. Num parque, um casal heterossexual (os homossexuais não têm desavenças) discute a propósito de um telemóvel. O rapaz encarrega-se do berreiro (as raparigas nunca levantam a voz) e das agressões, cujo alvo é um banco de jardim. A cena é tão ridícula e mal interpretada (?) que, naturalmente, leva quase todos os transeuntes a passar ao largo, com receio de interferirem nas filmagens de Morangos com Açúcar. Uma senhora, porém, atira-se de cabeça para o vórtice da discussão: coincidência das coincidências, é a dona Catarina do Bloco de Esquerda, que oferece ajuda à rapariga (o banco só se salvaria pela nacionalização imediata) e descarrega um sermão em cima do rapaz. O rapaz, com auricular e vontade de rir, olha para a dona Catarina. A dona Catarina olha para a câmara e dá o aval à coisa. A SIC exibe-a. O país descobre uma heroína.
Não pretendo insinuar que a SIC manipula o entretenimento de modo a favorecer políticos da sua simpatia, e que a dona Catarina participou na encenação. Pela seriedade com que engole as cabeludas patranhas que lhe põem à frente, apenas verifico que a credulidade dela em matérias políticas, económicas e sociais se estende aos pormenores do quotidiano. Subiu na minha consideração, perdão, comiseração.
De resto, na melhor das hipóteses, E Se Fosse Consigo? é uma alternativa particularmente infantil aos velhos "apanhados" de Joaquim Letria, e uma promoção da bisbilhotice, virtude que dispensaria incentivos. Na pior, procura consagrar o rol de "causas" admissíveis, e assim depreciar problemas autênticos ou complexos ou inconvenientes. Duvido, por exemplo, que venha a haver um episódio dedicado às vítimas do socialismo, os infelizes que, espezinhados pela prepotência dos poderes públicos, começam a ver o caso (sem aspas) malparado. São muitos, esperam alguém que os ajude e sabem que não será a dona Catarina. E se fosse consigo? É connosco.

Sexta-feira, 20 de Maio\
Zeitgeist
Um ministro é acusado de fraude em redor de uma bolsa de estudo? Caso fosse de "direita", seria um trafulha sem princípios, alvo da fúria do Facebook e de rábulas de comediantes - demissão já! Como é de esquerda, foi obviamente vítima de uma conspiração sórdida e de péssimo jornalismo. Um autarca decide escorraçar munícipes e espatifar milhões de euros na construção de um templo religioso? Caso fosse de "direita", seria um inaceitável aviltamento do regime laico, uma prepotência atroz e uma despesa criminosa - demissão já! Como é de esquerda (e a religião é o islão), trata-se de um enorme passo ecuménico e um gesto de inegável coragem. Uma nulidade reformada põe um cidadão em tribunal e consegue uma condenação por delito de opinião? Caso fosse de "direita", seria um inimigo da liberdade de expressão e um rematado fascista - demissão já (ainda que o estatuto de reformado dificultasse a tarefa)! Como é de esquerda, é o proverbial filho da boa gente, que se sente tomado por justíssima indignação. Um primeiro-ministro ri-se imenso enquanto arrasta o país para o abismo e, mediante contas alucinadas, despesas típicas e fezadas primitivas, finge salvá-lo. Caso fosse de "direita", seria um cínico desavergonhado, um incompetente ao serviço de interesses obscuros, uma nódoa enfim - demissão já! Como é de esquerda, é exactamente o que se espera que a esquerda seja.

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