sábado, 7 de maio de 2016

O coelho na manga



Dois jovens portugueses empenhados na resolução dos problemas que afectam o país e o povo do país, perplexos ambos, ante evidências irreparáveis: o primeiro, na sua sensatez de quem nunca acreditou nas falsas promessas do autodenominado  primeiro ministro, em vias de desagregação mas nunca de reconhecimento do falhanço na praça pública; o segundo, que como delegado europeu está a par de questões menos conhecidas aqui no país, e provavelmente se envergonha da nossa ignorância, segundo ele estimulada pelas “elites”, de coisas graves passadas nas nossas costas – no caso presente o tratado transatlântico de Comércio e Investimento mais ou menos secreto, em que as exigências americanas podem provocar danos graves aos povos europeus, para os quais Rui Tavares  alerta, como historiador que diz ser.
Assim, ambos os textos exprimem dor e revolta, a começar pelos títulos, a que o ponto de interrogação apõe a marca da perplexidade e da angústia juvenis.
As pessoas mais idosas, como eu, já não se enervam tanto, a vida delas há muito atravessada, politicamente falando, por espantos de ordem vária ante a destruição sistemática mas inebriante de estruturas físicas e de valores morais. Em todo o caso, um interregno de quatro anos mostrou-nos um português e o seu staff decididos a erguer novamente, embora com muito esforço, o nosso país, do fosso em que fora enterrado, e isso melhorou para nós a sua imagem, pela manutenção da hombridade do “peito lusitano”.
É certo que outro português lhe cortou as voltas, quatro anos depois, favorecido pela prática de uma desonestidade de cepa antiga e cada vez mais em curso, apesar do “peito lusitano” – mas consta que não é só a nível nacional, por muito que eu ache que na trapaça damos sempre cartas, até pela enfermidade crónica da nossa preparação para a cidadania. Usurpou-lhe o cargo, prometeu reformas – as que João Miguel Tavares aponta e outras – e prossegue, sorridente, sem que os tais «totós» ergam a voz contra a trapaça, amolentados nas expectativas  com que os seus cantos da sereia os favorecem.
Mas ontem ouvi que o nosso actual primeiro ministro - sereia da nossa tentação sem amarras, reconhecendo o falhanço das suas falcatruas  nas contas e promessas, vai tentar ressarcir as dívidas propondo a criação de um fundo monetário europeu para nos acudir, etc, etc. e a outros como nós, sem amarras de sensatez. Mais um coelho das suas prestidigitações sorridentes.
Rui Tavares desse não fala, que lhe deve pertencer de corpo e alma. Interessa-lhe mais falar nos seus saberes, que, de toda a maneira, ajudam a educar-nos. Mas João Miguel Tavares fala. E eu conservo a esperança de que um dia, qualquer dia, mais um aprendiz de feiticeiro da nossa sina possa ser pontapeado para longe, por algum feiticeiro mais consciente, apesar dos muitos seus contrários...

Foi para isto que se fez o 26 de Novembro?
Público05/05/2016
Com a inconsciência própria de quem nada aprende com o que lhe acontece, o país recebe as novas previsões de crescimento como se fossem um facto normal. Aparentemente já ninguém se lembra que o crescimento era o alfa e o ómega do regoverno de António Costa, e que sem ele toda a estratégia económica do PS desaba como um castelo de cartas. Se o país não crescer, ou se crescer o mesmo do que em 2015 mas com mais despesa pública (crescimento em 2015: 1,5%; actuais previsões de Bruxelas para 2016: 1,5%), onde está essa espectacular mudança de estratégia económica e política que António Costa trazia consigo?  Onde está o “tempo novo” que justificou a tomada de posse de 26 de Novembro, depois de o PS ter sido vergonhosamente derrotado nas eleições?
Esqueçam o défice, o investimento, as importações, o desemprego. Esqueçam a tese de que crescer à custa do consumo interno iria desequilibrar a balança comercial. Esqueçam tudo isso e concentrem-se nas contas de Primeiro Ciclo que António Costa não se cansava de nos vender: 1) o Estado gasta mais, 2) o Estado coloca mais dinheiro no bolso dos portugueses, 3) os portugueses compram mais, 4) o país produz mais, 5) o PIB aumenta, 6) o desemprego cai, 7) o Estado cobra mais impostos, 8) todos ficamos mais felizes, porque aquilo que se recebe compensa (os célebres multiplicadores) aquilo que se investe. Este projecto de keynesianismo para totós era tudo o que António Costa tinha para nos prometer – mas prometia com grande empenho, e muitas vezes. Recordo apenas uma de infindáveis frases, dita a este jornal a 5 de Fevereiro de 2015: “Essa ideia peregrina de que é possível relançar a economia sem haver um aumento significativo do investimento público é uma ideia absolutamente fracassada.”
António Costa não queria fracassos e os números do programa eleitoral do PS acompanhavam o seu optimismo. Peritos socialistas garantiam que com as medidas propostas o PIB iria crescer 2,4% em 2016 e 3,1% em 2017. Ora, um ano depois, em que ponto é que nós estamos? O próprio governo prevê um crescimento de 1,8% tanto em 2016 como em 2017 (um pequeno desvio de 72% nas previsões, sem que nada de especial tenha acontecido no mundo), enquanto Bruxelas acaba de agravar as suas estimativas de 1,6% para 1,5% este ano, e de 1,8% para 1,7% em 2017. Lembram-se da mensagem de Natal de António Costa? Eu lembro-me: vinha aí “um tempo novo” que iria trazer “prosperidade e crescimento”. Passados cinco meses, onde raio está esse “tempo novo”? Vestiu-se de tempo velho: austeridade para quase todos, alívio para alguns e estagnação económica. Que o país pareça tão conformado com mais esta fraude política, económica e intelectual, eis o que nunca deixará de me espantar.
P.S.: – Estando eu aqui a pregar o rigor nas contas, convém que corrija os meus próprios erros. Na semana passada afirmei que “existem em Portugal mais de 3,6 milhões de pensionistas”. Como Francisco Louçã salientou no blogue Tudo Menos Economia, e bem, esse é o número de pensões que são pagas pelo Estado – pensionistas são só 2,5 milhões. É certo que haver 1,1 milhões de pensões pagas em acumulação a 2,5 milhões de pensionistas ainda é um facto mais escandaloso do que aquele que eu referi, mas nem por isso deixa de ser um erro da minha parte, pelo qual peço desculpa aos leitores. Aproveito também para agradecer a Francisco Louçã a dedicada atenção com que lê os meus textos.

Como foi isto acontecer?

Situação típica em Portugal: enquanto as coisas podem ser alteradas e até detidas, enterrá-las a golpes de "ninguém se interessa", "é demasiado complicado para explicar", "está toda a gente a falar de outra coisa". Quando elas já se tornaram irreversíveis, encontrar aí tema para a nossa vitimização, propondo planos para voltar com o tempo atrás. De repente, já toda a gente se sente especialista e sempre se enchem mais umas horas de comentário.
Foi o que aconteceu com o euro. Foi o que aconteceu com a entrada da China na Organização Mundial do Comércio. E é o que está a acontecer com o tratado transatlântico conhecido por TTIP (ou "Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento"). Na Alemanha fazem-se manifestações a apelar à sua rejeição. No Reino Unido é assunto de primeira página. Em Portugal um ou outro bravo jornalista lá consegue levar o assunto a uma página interior na secção de economia.
Nem todos os casos são equivalentes. Portugal poderia ter evitado entrar no euro, pelo menos naquele momento ou naquelas condições, mas não teria certamente conseguido impedir a China de chegar à globalização. Mas poderia sempre ter-se preparado melhor. E, no caso do TTIP, pode pelo menos exigir mais informação e melhor debate.
Ficou mais fácil saber o que está em causa a partir do momento em que a Greenpeace libertou dezenas de documentos das negociações secretas entre UE e EUA. Se os EUA ganharem nas suas exigências, acabam os subsídios para agricultores, baixam as regras de proteção laboral, acaba o princípio da precaução em matéria ambiental e talvez fique limitado o nosso regime de proteção de dados pessoais. Parece suficiente para nos despertar o interesse? Pelos vistos, não.
Nos mesmos documentos secretos agora vindos a público encontram-se também as exigências europeias, umas boas e outras más, que vão desde uma exceção para o setor do audiovisual e da cultura até à inclusão dos sistemas de contratação pública. O texto ainda pode melhorar, piorar ou não passar disto mesmo. O que é certo é que nós, — como trabalhadores, consumidores, empresários ou seres saudáveis — seremos todos afetados se as regras escolhidas para um mercado de 800 milhões de pessoas forem mesmo estas.
E aí bate outro ponto — que não é português mas europeu. Por que tinham de ser estas negociações secretas? Na altura em que foram votadas no Parlamento Europeu foi derrotada pelos grandes partidos uma proposta para que o resultado das rondas de negociação fosse sempre público. Isto teria retirado poder aos lóbis, nomeadamente do setor automóvel, que parecem ser os grandes beneficiários daquilo que está em cima da mesa.
Manter tudo secreto e complexo sempre foi um vício da Comissão Europeia, apoiada pelos governos nacionais da UE — e depois espantam-se que as pessoas se indignem. Não estimular o interesse público nem ajudar a formar o debate foi sempre o vicio das elites portuguesas — e depois espantam-se que o país esteja mal preparado.
Daqui a uns anos diremos todos: como foi isto acontecer?

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