Sabendo embora da vanidade destas afirmações
bombásticas de quem deseja a todos agradar – eu também ouvi o PR em Moçambique lançando
a atoarda de que o assunto do AO1990 lhe estava nos propósitos -
provavelmente para o eliminar, se não na íntegra, pelo menos parcialmente – e com
isso agradar aos Moçambicanos que ainda o não ratificaram, que nisso mostram, tal como
os Angolanos, uma superioridade de desprezo pelas decisões de um
país minúsculo, que esfarrapa abjectamente a sua própria língua, por imposição
grave da saloiice pseudo intelectual de uns tantos, como, suponho, jamais se
viu em países que se respeitam) – conhecendo, pois, quão frágeis são essas
afirmações não ditas com seriedade e rigor, vou vivendo na esperança destes
artigos sérios que apontam o erro e desmascaram intenções, embora sem força
para destruir, ou de encaminhar.
E este artigo de um jovem – Francisco Miguel
Valada - foi mais um a querer destruir ou encaminhar: sério, sereno, educado,
envergonhado. Por isso o transcrevo, enquanto daqui imploro – ciente da inanidade
do pedido minúsculo - às nações Angola e Moçambique, muito maiores do
que esta, e onde se falou bem o Português, que aguentem firmes no seu critério
de não ratificação de um AO
absurdo.
Afinal,
rastejando em torno da língua brasileira, que há muito evoluiu por vias
divergentes do português, esquecemos que Angola e Moçambique foram bem
posteriores nesses caminhos de transformação, e têm todo o direito de não se
acobardarem, como nós, a uma escrita que há muito seguiu os seus próprios
trâmites, coniventes com a sua fonética, morfologia e sintaxe.
Seria
uma obra de misericórdia para com esta nação, que foi pátria delas, e que tão
malbaratada é por tantos de nós, nos
seus princípios… para não sei que fins.
Sr. Presidente, faça isso que prometeu! Escute os velhos e
escute estes novos que nos dão o exemplo, e os tais países que deram ao mundo
gente que falou e escreveu bem, na nossa língua.
Marcelo
Rebelo de Sousa e o Acordo Ortográfico de 1990
Francisco Miguel Valada
Público, 18/05/2016
Há algumas semanas, soube que Marcelo Rebelo de Sousa, pouco
depois de ter tomado posse como Presidente da República, decidira reabrir o
debate sobre o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90). De facto, a confirmar-se tal
informação, tratar-se-ia de atitude, além de merecedora de várias ovações de
pé, em absoluta harmonia com um artigo publicado no Expresso, dias antes da
tomada de posse, no qual Rebelo de Sousa não adoptara o AO90. Entretanto,
notícias na comunicação social têm confirmado essa vontade de reavaliar o ponto
da situação ortográfica.
Contudo,
neste contexto, “reabrir o debate” não será a opção mais feliz, pois existe um
prefixo a mais. Salvo iniciativas pontuais (uns colóquios aqui, umas audições
ali, umas audiências acolá), o debate sobre o AO90 nunca foi aberto, por isso é
um erro mencionar-se uma reabertura. Aquilo que houve foi uma
imposição. Aliás, a consequência imediata da escassez de sessões de
esclarecimento e da abundância de propaganda é uma maior permeabilidade de
leitores de português europeu em relação a opiniões, digamos, peculiares.
Por
exemplo, há quem afirme publicamente que “se disser Egito escreve sem ‘p’, mas
se disser Egipto escreve com ‘p’”; há quem divulgue a ideia de a “dupla grafia”
ser “recorrente na história da língua portuguesa” e apresente exemplos tão sui
generis como “regime”/“regímen”, “areia”/“arena”, “imprimido”/“impresso” ou
“olho”/“óculo”; há igualmente quem escreva agora ‘facto’ é igual a fato (de
roupa)”. Convém ter bastante cautela com estas opiniões e só um debate
esclarecedor dará a possibilidade de explicar o que está em causa — além de
permitir aos autores destas opiniões virem a terreiro defender-se ou
retractar-se.
Convém
igualmente que haja, por fim, um órgão de soberania a pôr os pontos nos ii em
relação a esta matéria e a tomar uma atitude responsável, sendo muito
provavelmente o Presidente da República o mais indicado, porque se sente
obrigado a praticar algo que não prega. Isto é, adopta uma grafia para inglês
ver. Depois da confidência de Cavaco Silva (com a agravante de ter culpas no
cartório) – "Todos os meus discursos saem com o acordo ortográfico mas eu,
quando estou a escrever em casa, tenho alguma dificuldade e mantenho aquilo que
aprendi na escola” –, temos agora Rebelo de Sousa a afirmar: "o
Presidente da República, nos documentos oficiais, tem de seguir o Acordo
Ortográfico. Mas o cidadão Marcelo Rebelo de Sousa escrevia tal como escrevem
os moçambicanos, que não é de acordo com o Acordo Ortográfico” .
Em
peça da RTP, é perceptível que esta afirmação de Rebelo de Sousa provocou o
riso de um dos interlocutores. Não percebi a piada. Isto é, o riso foi perceptível,
mas a piada não foi: porque existe uma relação entre perceptível e perceber,
porque perceptível é aquilo que pode ser percebido e percebido é o que se percebeu
e perceber é ter a percepção de algo. O mesmo acontece com o que pode ser recebido,
pois pode receber-se e receber é dar recepção. O mesmo acontece com concebido, conceber
e concepção. Por isso existe aquele ‘p’, de -pç-, em concepção, percepção e recepção
.
Por
isso e não só. Aquele ‘p’ também permite que se evite a vulgarização de desastres,
como a recente tradução portuguesa “a recessão de luz sobre os painéis
solares” do original francês “la réception de la lumière sur les
panneaux solaires”. Vindo ‘perceptível’ a talhe de foice, recordemos um factor
importante: com o AO90, no Brasil, ‘perceptível’ mantém-se; com o AO90, em
Portugal, ‘perceptível’ passa a ‘percetível’. Há quem lhe chame “unificação
ortográfica” ou “ortografia comum”.
Como
é sabido, a Assembleia da República não tem percebido – ou não tem querido
perceber: nesta matéria, como noutras, a doutrina diverge – as provas
apresentadas sobre a supremacia dos defeitos do AO90 em relação às suas
hipotéticas virtudes e as gritantes diferenças entre a quimera de um acordo
ortográfico em abstracto e o desastre AO90 em concreto. Aliás, os actos e
omissões deste órgão de soberania em relação a esta matéria podem ser apresentados
como um excelente exemplo de assimetria entre a vontade do eleitor e a atitude
do eleito.
O
Governo, pela voz do primeiro-ministro, não toma “a iniciativa de desfazer o
acordo ortográfico” e, garante o ministro dos Negócios Estrangeiros,
"aguarda serenamente" a ratificação do AO90 pelos restantes membros
da CPLP. Isto é, "aguarda serenamente" que outros tomem
iniciativas, em vez de se preocupar com as vítimas portuguesas que o desastre
vai produzindo. Por exemplo, no Diário da República de 4/5/2016, o
Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, da Universidade de Lisboa,
nos “parâmetros preferenciais” para a contratação de um professor associado,
determina o seguinte: “Ser titular do grau de Doutor em Estratégia ou História
dos Fatos Sociais” (12). Exactamente: História dos Fatos.
Aguardando
serenamente que outros ratifiquem aquilo que, atempadamente, membros da
comunidade científica portuguesa recomendaram que não fosse ratificado por
Portugal, o ministro dos Negócios Estrangeiros vai permitindo que, no Diário da
República, além de continuarem a adoptar grafias inadmissíveis em português
europeu, também deturpem a língua inglesa. Um excelente exemplo aparece
na edição de 6/5/2016, com “questões relacionadas com fatores [sic] humanos”
traduzido da seguinte forma: “human fator issues” . Fator issues?
Efectivamente: fator issues. Esperemos que nenhum inglês veja.
Seria
extremamente importante que a louvável iniciativa do Presidente da República
produzisse resultados palpáveis, ou seja, que a Assembleia da República e o
Governo abandonassem a gestão desta matéria nos termos actuais, prestando
atenção aos pareceres emitidos pela comunidade científica e à vontade
manifestada por diversos sectores da sociedade. Caso contrário, existe
sempre aquela alternativa que não nos agrada, mas da qual não devemos abdicar,
em caso de urgência: os representantes devolverem a palavra aos representados,
através de um referendo. Esperemos que não seja necessário. Esperemos que
Rebelo de Sousa resolva.
Versão
ligeiramente modificada de texto originalmente publicado no portal da
comunidade portuguesa na Bélgica
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