Sem esmorecer, Alberto Gonçalves
põe o dedo na ferida, na nossa ferida, de – julgo-o bem – tresloucados que se
deixaram seduzir pelas patranhas de um abusivamente auto apelidado primeiro
ministro, o qual, aproveitando-se de uma situação de alguma melhoria obtida penosamente,
mas que poderia progredir, não fossem tantos desses forjadores de teses
pretensiosas, por conta dos seus azedumes pessoais, ou mesmo só a passividade
geral perante a falcatrua, quando esta é pintalgada de promessas de
benfeitorias que a toleima dita, vai dançando e fazendo dançar na corda bamba da
nossa tendência para a desgraça.
Não
é, de facto, sedutora, a nossa comparação com a Venezuela, governada em tempos
por um bazófias a quem o então rei de Espanha, Juan Carlos, mandou calar com
eficácia. Mas tal não sucede aqui, não existe
um Juan Carlos I eficiente que mande calar o nosso primeiro ministro, e nem
sequer as gentes politicamente correctas da U.E. por enquanto o fazem. Também
ele não pode ser tão fanfarrão como o tal Hugo Chávez, por não poder
escudar-se, como este, no seu petróleo, que sempre servirá aos venezuelanos
para ajudar às actuais falhas na electricidade. Quanto a nós, espero que ao
menos não nos falte o azeite para as candeias, no caso das nossas falhas
eléctricas. É certo que teríamos de riscar as vibrações modernistas do nosso
Álvaro de Campos, que ficariam sem efeito, relativamente aos acidentes e
desastres que a civilização nos traz, pelo menos no que nos concerne: «Que
importa tudo isto, mas que importa tudo isto / Ao fúlgido e rubro ruído
contemporâneo, /Ao ruído cruel e
delicioso da civilização de hoje?». Seria só mais um apagão num país a apagar-se.
Quanto
ao nosso PR, faz-nos falta realmente um «Por qué no te callas?» real. Mas
a realeza há muito que acabou por cá e o rei vizinho resignou.
A Venezuela é o futuro
Alberto Gonçalves, sociólogo
DN, 1/5/16
A fim de vislumbrar o que há-de vir, os ingénuos
assistem na internet a conferências TED, compram revistas sobre gadgets ou
viciam-se em ficção científica. Se os ingénuos habitarem entre o Minho e o
Algarve, farão melhor em acompanhar a actualidade venezuelana. Na hipótese de
isto correr conforme os pessimistas esperam, está lá o que nos espera.
É escusado recuar demasiado: apenas nos últimos dias,
a miséria local subiu a níveis que fazem a austeridade da troika assemelhar-se
ao conforto de Beverly Hills. Numa cedência à ecologia, a electricidade
desaparece durante quatro horas diárias. Numa medida de elementar justiça
social, os funcionários públicos trabalham apenas às segundas e terças de
manhã. Numa medida de pedagogia experimental, as escolas fecham às sextas. Num
gesto de incentivo à poupança, os centros comerciais abrem a meio gás. Numa
prova de resistência ao consumismo, os cidadãos aguardam em filas a aquisição
de luxos como roupa e comida. Numa afirmação dos valores colectivistas, o
desodorizante é partilhado a quase dois euros por dose na axila. Num grito de
revolta contra a ditadura dos relógios, o fuso horário desloca-se meia hora.
Numa inquestionável vitória sobre o colonialismo, a língua oficial passa a ser
o sueco.
Só a última mudança é uma graçola de Woody Allen. Mas
o ímpeto da revolução bolivariana é tal que ninguém se surpreenderia.
Infelizmente, julgo que muitos portugueses ainda se surpreendem face às
comparações com o nosso caso (no sentido clínico). Aos cépticos, lembro que,
pormenores à parte, em Caracas a coisa também começou assim, com o poder tomado
por um bando de rústicos, nostálgicos do comunismo ou meros oportunistas de
carreira. E também houve bazófia, proclamações de soberania, injúrias a
imperialistas imaginários, juras de amor à liberdade, promessas de imparável
progresso. E não faltou o anestesiado clima inicial, em que se tomou por normal
e até simpática a consagrada receita do desastre. E não faltaram a fé, o
foguetório e as subidas sucessivas do salário mínimo, que de salto em salto
ronda hoje os treze dólares mensais. E não faltou a indigência, perdão, a
diligência da "intelectualidade" internacional, que tipicamente
apressou-se a venerar os rústicos: a Venezuela é o futuro, repetia-se aqui e
ali num passado relativamente recente.
O resto será história, mais exactamente a história do
costume sempre que o catequismo marxista ilumina os povos. Apesar de
especificidades regionais, petrolíferas e monetárias, quando duas experiências
principiam de igual modo, não é improvável que terminem de modo parecido. Para
já, Portugal encontra-se na fase do fervor autonómico, na qual se recusa toda a
ingerência externa que não consista em empréstimos incondicionais. Com um
bocadinho de azar, e outro de impaciência estrangeira com malucos, chega-se não
tarda ao desodorizante repartido, às velinhas ao serão e à atribuição de culpas
à ingerência externa (excepto esmolas, por favor). De caminho, aprende-se pela
enésima vez que a realidade não se estabelece por decreto.
Claro que tudo, incluindo a penúria, tem vantagens.
Enquanto, aos poucos e a custo, a Europa reconhece a calamitosa ascensão do
islamismo dito radical, a originalidade indígena arranjou uma calamidade para
se desgraçar primeiro: uma aliança de lunáticos empenhados em afundar-nos no
exotismo do Terceiro Mundo. Literalmente no fundo, talvez os terroristas não
deem por nós. Pela Venezuela ninguém dá nada.
Sexta-feira, 29 de Abril
Primavera marcelista
Os obcecados por números talvez notem que o défice vai
de vento em popa, que a dívida pública aumenta com galhardia e que o governo
anunciou 120 medidas até 2020, quase todas destinadas a investir fortemente na
despesa. Felizmente, um modelo de ponderação garantia que os portugueses não
são números, mas pessoas. Pessoas como o dr. Costa, que quando não está a rir
sabe-se lá do quê está a jurar que não admite (ouviram?) salários baixos.
Pessoas como o ministro Centeno, que já riu mais. Pessoas como os dirigentes
das duas agremiações comunistas que suportam o dr. Costa, que fingem contestar
o poder enquanto de facto o ocupam. E pessoas como Sua Excelência, o Senhor
Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa.
No discurso do 25 de Abril, o PR traçou um retrato
fidelíssimo do país. Só que não do nosso. É um país onde as pessoas "estão
a viver a saída de uma crise". Um país onde os cidadãos começam a
"reacreditar (peço desculpa) no futuro". Um país onde todos
"vivem já uma distensão, impensável há escassos meses". Só se for
muscular, de tanto abrirem a boca perante as intervenções de Sua Excelência.
Porque é que o prof. Marcelo diz coisas assim? Há por
aí inúmeras teses. Ele deseja a permanência do governo. Ele alimenta uma velha
e discreta amizade com o dr. Costa. Ele não consegue despir (salvo seja) o fato
de comentador. Ele sonha com a "descrispação" (peço desculpa) do clima
político para evitar maçadas. Ele quer o povo unido e disponível para o aclamar
em uníssono. Ele acredita de facto no que diz (e em unicórnios).
Até se perceber qual destas teorias resiste, uma outra
teoria desabou com estrondo: a de que a "distância" do anterior
presidente era nociva e condenável. Mal li que o prof. Marcelo tenciona visitar
três mil freguesias, e previsivelmente aliviar-se de quinze mil opiniões
extravagantes, pensei logo nos "silêncios" de Cavaco Silva, um santo
homem.
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