segunda-feira, 2 de maio de 2016

Um sociólogo a valer



Sem esmorecer, Alberto Gonçalves põe o dedo na ferida, na nossa ferida, de – julgo-o bem – tresloucados que se deixaram seduzir pelas patranhas de um abusivamente auto apelidado primeiro ministro, o qual, aproveitando-se de uma situação de alguma melhoria obtida penosamente, mas que poderia progredir, não fossem tantos desses forjadores de teses pretensiosas, por conta dos seus azedumes pessoais, ou mesmo só a passividade geral perante a falcatrua, quando esta é pintalgada de promessas de benfeitorias que a toleima dita, vai dançando e fazendo dançar na corda bamba da nossa tendência para a desgraça.
Não é, de facto, sedutora, a nossa comparação com a Venezuela, governada em tempos por um bazófias a quem o então rei de Espanha, Juan Carlos, mandou calar com eficácia. Mas tal não sucede aqui, não  existe um Juan Carlos I eficiente que mande calar o nosso primeiro ministro, e nem sequer as gentes politicamente correctas da U.E. por enquanto o fazem. Também ele não pode ser tão fanfarrão como o tal Hugo Chávez, por não poder escudar-se, como este, no seu petróleo, que sempre servirá aos venezuelanos para ajudar às actuais falhas na electricidade. Quanto a nós, espero que ao menos não nos falte o azeite para as candeias, no caso das nossas falhas eléctricas. É certo que teríamos de riscar as vibrações modernistas do nosso Álvaro de Campos, que ficariam sem efeito, relativamente aos acidentes e desastres que a civilização nos traz, pelo menos no que nos concerne: «Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto / Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,  /Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?».  Seria só mais um apagão num país a apagar-se.
Quanto ao nosso PR, faz-nos falta realmente um «Por qué no te callas?» real. Mas a realeza há muito que acabou por cá e o rei vizinho resignou.

A Venezuela é o futuro
Alberto Gonçalves, sociólogo
DN, 1/5/16
A fim de vislumbrar o que há-de vir, os ingénuos assistem na internet a conferências TED, compram revistas sobre gadgets ou viciam-se em ficção científica. Se os ingénuos habitarem entre o Minho e o Algarve, farão melhor em acompanhar a actualidade venezuelana. Na hipótese de isto correr conforme os pessimistas esperam, está lá o que nos espera.
É escusado recuar demasiado: apenas nos últimos dias, a miséria local subiu a níveis que fazem a austeridade da troika assemelhar-se ao conforto de Beverly Hills. Numa cedência à ecologia, a electricidade desaparece durante quatro horas diárias. Numa medida de elementar justiça social, os funcionários públicos trabalham apenas às segundas e terças de manhã. Numa medida de pedagogia experimental, as escolas fecham às sextas. Num gesto de incentivo à poupança, os centros comerciais abrem a meio gás. Numa prova de resistência ao consumismo, os cidadãos aguardam em filas a aquisição de luxos como roupa e comida. Numa afirmação dos valores colectivistas, o desodorizante é partilhado a quase dois euros por dose na axila. Num grito de revolta contra a ditadura dos relógios, o fuso horário desloca-se meia hora. Numa inquestionável vitória sobre o colonialismo, a língua oficial passa a ser o sueco.
Só a última mudança é uma graçola de Woody Allen. Mas o ímpeto da revolução bolivariana é tal que ninguém se surpreenderia. Infelizmente, julgo que muitos portugueses ainda se surpreendem face às comparações com o nosso caso (no sentido clínico). Aos cépticos, lembro que, pormenores à parte, em Caracas a coisa também começou assim, com o poder tomado por um bando de rústicos, nostálgicos do comunismo ou meros oportunistas de carreira. E também houve bazófia, proclamações de soberania, injúrias a imperialistas imaginários, juras de amor à liberdade, promessas de imparável progresso. E não faltou o anestesiado clima inicial, em que se tomou por normal e até simpática a consagrada receita do desastre. E não faltaram a fé, o foguetório e as subidas sucessivas do salário mínimo, que de salto em salto ronda hoje os treze dólares mensais. E não faltou a indigência, perdão, a diligência da "intelectualidade" internacional, que tipicamente apressou-se a venerar os rústicos: a Venezuela é o futuro, repetia-se aqui e ali num passado relativamente recente.
O resto será história, mais exactamente a história do costume sempre que o catequismo marxista ilumina os povos. Apesar de especificidades regionais, petrolíferas e monetárias, quando duas experiências principiam de igual modo, não é improvável que terminem de modo parecido. Para já, Portugal encontra-se na fase do fervor autonómico, na qual se recusa toda a ingerência externa que não consista em empréstimos incondicionais. Com um bocadinho de azar, e outro de impaciência estrangeira com malucos, chega-se não tarda ao desodorizante repartido, às velinhas ao serão e à atribuição de culpas à ingerência externa (excepto esmolas, por favor). De caminho, aprende-se pela enésima vez que a realidade não se estabelece por decreto.
Claro que tudo, incluindo a penúria, tem vantagens. Enquanto, aos poucos e a custo, a Europa reconhece a calamitosa ascensão do islamismo dito radical, a originalidade indígena arranjou uma calamidade para se desgraçar primeiro: uma aliança de lunáticos empenhados em afundar-nos no exotismo do Terceiro Mundo. Literalmente no fundo, talvez os terroristas não deem por nós. Pela Venezuela ninguém dá nada.
Sexta-feira, 29 de Abril
Primavera marcelista
Os obcecados por números talvez notem que o défice vai de vento em popa, que a dívida pública aumenta com galhardia e que o governo anunciou 120 medidas até 2020, quase todas destinadas a investir fortemente na despesa. Felizmente, um modelo de ponderação garantia que os portugueses não são números, mas pessoas. Pessoas como o dr. Costa, que quando não está a rir sabe-se lá do quê está a jurar que não admite (ouviram?) salários baixos. Pessoas como o ministro Centeno, que já riu mais. Pessoas como os dirigentes das duas agremiações comunistas que suportam o dr. Costa, que fingem contestar o poder enquanto de facto o ocupam. E pessoas como Sua Excelência, o Senhor Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa.
No discurso do 25 de Abril, o PR traçou um retrato fidelíssimo do país. Só que não do nosso. É um país onde as pessoas "estão a viver a saída de uma crise". Um país onde os cidadãos começam a "reacreditar (peço desculpa) no futuro". Um país onde todos "vivem já uma distensão, impensável há escassos meses". Só se for muscular, de tanto abrirem a boca perante as intervenções de Sua Excelência.
Porque é que o prof. Marcelo diz coisas assim? Há por aí inúmeras teses. Ele deseja a permanência do governo. Ele alimenta uma velha e discreta amizade com o dr. Costa. Ele não consegue despir (salvo seja) o fato de comentador. Ele sonha com a "descrispação" (peço desculpa) do clima político para evitar maçadas. Ele quer o povo unido e disponível para o aclamar em uníssono. Ele acredita de facto no que diz (e em unicórnios).
Até se perceber qual destas teorias resiste, uma outra teoria desabou com estrondo: a de que a "distância" do anterior presidente era nociva e condenável. Mal li que o prof. Marcelo tenciona visitar três mil freguesias, e previsivelmente aliviar-se de quinze mil opiniões extravagantes, pensei logo nos "silêncios" de Cavaco Silva, um santo homem.

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