Uma análise muito interessante destes tempos de reviravolta,
com que Clara Ferreira Alves nos alerta para “o senhor que se segue” no comando
dos destinos das nações. Saturados do espezinhamento a que os submetem as políticas
dos governos que promovem a desonestidade e fecham os olhos às falcatruas que vão
alastrando imparáveis, na indiferença pelos males que causam, coarctada a
juventude nas suas legítimas ambições de comer da mesma gamela, ou apenas de realizar a missão que deseja cumprir na Terra, o entusiasmo em
roda desses que lhes prometem a gamela ou a realização da missão, vai em crescendo como bichas de rabear.
É certo que já se viveu tudo isso por cá. Um 25 de
Abril amassando as classes, retirando as classificações, querendo enfiar todos
no mesmo cesto. Realmente conseguiu-se muito disso, a massificação
generalizou-se, a manta poderosa da democracia estendeu-se e ampliou-se - entre
nós com o auxílio económico alheio - que fez que os que tiveram em mãos esse
auxílio, usassem devotamente do “venha a nós o vosso reino” em termos pessoais.
E por eles e os seus apaniguados o reino se distribuiu, ficando “the little
people”, “a gentinha”, a ver navios, na margem de cá. Por isso esses apoiam com
entusiasmo os partidos da gente nova que
espalha a fé, a esperança e a caridade … na mira da ascensão própria. Quando lá
chegarem – se chegarem – farão exactamente o mesmo que os predecessores – “venha
a nós o vosso reino”. Ou a vossa gamela. Até mesmo o Donald Trump o ambiciona, embora não
precise de Wall Street. Facilmente entrará na mesma engrenagem que faz, afinal,
ter sempre que moderar quem se lhe atravesse no caminho, igual aos demais. Poder
é sempre poder, e o lugar da gentinha é sempre o de protestar, pelo menos em
democracia e os novos poderosos não são diferentes dos antigos, em mandá-los
calar. Só que, pela parte que nos toca, há muito que faliu o nosso Walt Street
de empréstimo. Não julgo que resulte o artifício da escolha dos novos
dirigentes. Pelo menos para as massas – ou a gentinha – confiantes na viragem a
seu favor, quais gladiadores em revolta. Lá fora, não sei o que será - nem, de resto, cá dentro - mas
também a Doris Day o desconhecia a respeito do destino.
O que seria de facto, interessante, é que a tal
gentinha, "the little people", segundo designação da tal Leona Helmsley, – novos e menos novos – pensassem mais em termos de enriquecimento
espiritual, até para não se deixaram
envolver tanto nas patranhas dos ambiciosos astutos.
Pluma Caprichosa
TEMPOS INTERESSANTES
Clara Ferreira Alves
E, 23/4/16
Muita
gente pensou que a gentinha pagaria a conta de Wall Street e do subprime, a
conta das especulações dos casinos financeiros, sem um protesto. À parte as
manifestações coloridas dos movimentos Occupy, que tiveram o destino dos
movimentos e protestos antiglobalização, descritos pelas potestades como “um
bando de hippies e vagabundos a fumar erva”, nada se opôs, no início, aos
resgates públicos e a uma varredela espiritual dos mais pobres, descritos como
inúteis ao sistema, da baixa classe média, descrita como um proletariado
convencido da pertença ao escalão superior, e dos jovens e desempregados,
descritos como um bando de parasitas do Estado social. Todos,
evidentemente, carecidos do gene do empreendedorismo. “The little people”, a
gentinha, como lhes chamava Leona Helmsley, a dona dos hotéis Waldorf
Astoria, que não pagava impostos e gastava o tempo a pentear os caniches,
parecia estar disposta a roer gafanhotos para manter à tona as jangadas da
política e da finança.
Este
suave estado de alma, ajudado pelo desgaste histórico da social-democracia do
pós-guerra, durou. As pessoas tinham medo, porque lhes foi dito que um dia iam
ao multibanco e estava vazio, ou iam passar fome, ou iam perder o que tinham. Quando
a profecia se materializou, e muitas pessoas perderam casas e empregos,
perderam privilégios e garantias, quando os filhos dessas pessoas viram o seu
futuro endividado, a suavidade começou a perder-se . A gentinha ia ficando farta
de aturar os teóricos de bancada que prevêem tudo menos o que acontece.
Aconteceu, pasme-se, nos Estados Unidos da América, baluarte do
capitalismo e da iniciativa privada. Aconteceu no Reino Unido, aconteceu
em Espanha, aconteceu na Grécia, aconteceu nos países cujos povos
foram forçados a pagar a conta dos actos danosos que não tinham praticado. Os
“Panama papers” , e as suas repercussões na opinião pública, são um capítulo
desta tragédia. A direita convencional ainda não percebeu o que aconteceu. As
pessoas fartaram-se. No Reino
Unido, os trabalhistas elegeram um marxista, um espécime que julgávamos
extinto. Exit o blairismo e o seu prócere, exemplo macroscópio da sanguessuga
de bilionário. Na Grécia, um partido de extrema-esquerda ganhou todas as
eleições e dispôs-se a reformar o país. Na Espanha, o PP ficou sem
maioria e o Podemos elevou-se. Na França, o oportunista Hollande
dispôs-se a ganhar as presidenciais contra uma direita desunida e raivosa. E,
nos Estados Unidos, Bernie Sanders, um homem que fala em revolução e
cospe insultos a Wall Street, é maioritário nos jovens e abanou a powerhouse
dos Clinton. Tivesse Bernie menos trinta anos (como Trudeau Jr.) e Hillary
estaria em apuros. E Donald Trump, esse mesmo, é o candidato do protesto do
branco pobre americano contra o sistema que o defraudou. É, também, alguém que
não precisa de Wall Street.
Nos
países economicamente mais estáveis, partidos convencionais ainda têm maiorias,
mas a instabilidade causada pelos arrefecimentos das potências, as
flutuações dos preços e dos mercados e as derivas políticas para os extremos,
põem a Europa em perigo. Da Holanda à Polónia, da Alemanha à Finlândia, as
direitas e as esquerdas populistas organizam-se para mastigar o centro. Merkel
passa por uma humanista moderada. O seu partido vai defenestrá-la, por
razões de subserviência, tal como os conservadores fizeram a Margaret
Thatcher (é sempre mais fácil impugnar uma mulher, como se vê pelo grupo de
bandidos que, de repente, se assustou com a venalidade de Dilma Rousseff. The
little people vinga-se. Lentamente, deliberadamente, partidos fora do
sistema começam a integrar o sistema e a tornar-se reservas morais e uma severa
ameaça às oligarquias tradicionais. Os novos partidos começam a cativar
apoiantes e a formar quadros competentes. No caso português, o Bloco de
Esquerda, tal como o Syriza, é o exemplo. A ascensão do Bloco, e a inteligência
com que tem manipulado o seu quinhão de poder, o seu poder de atracção de
jovens qualificados, constitui uma ameaça aos outros partidos. O PCP está
condenado ao passado. O CDS percebeu e prepara (mais uma) conversão. E quanto
ao PS e PSD, não se percebe o que perceberam.
Vivemos,
como dizem os chineses, tempos interessantes.»
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