terça-feira, 10 de maio de 2016

«Que sera, sera»



Uma análise muito interessante destes tempos de reviravolta, com que Clara Ferreira Alves nos alerta para “o senhor que se segue” no comando dos destinos das nações. Saturados do espezinhamento a que os submetem as políticas dos governos que promovem a desonestidade e fecham os olhos às falcatruas que vão alastrando imparáveis, na indiferença pelos males que causam, coarctada a juventude nas suas legítimas ambições de comer da mesma gamela, ou apenas de realizar a missão que deseja cumprir na Terra, o entusiasmo em roda desses que lhes prometem a gamela ou a realização da missão, vai em crescendo como bichas de rabear.
É certo que já se viveu tudo isso por cá. Um 25 de Abril amassando as classes, retirando as classificações, querendo enfiar todos no mesmo cesto. Realmente conseguiu-se muito disso, a massificação generalizou-se, a manta poderosa da democracia estendeu-se e ampliou-se - entre nós com o auxílio económico alheio - que fez que os que tiveram em mãos esse auxílio, usassem devotamente do “venha a nós o vosso reino” em termos pessoais. E por eles e os seus apaniguados o reino se distribuiu, ficando “the little people”, “a gentinha”, a ver navios, na margem de cá. Por isso esses apoiam com entusiasmo os  partidos da gente nova que espalha a fé, a esperança e a caridade … na mira da ascensão própria. Quando lá chegarem – se chegarem – farão exactamente o mesmo que os predecessores – “venha a nós o vosso reino”. Ou a vossa gamela. Até mesmo o Donald Trump o ambiciona, embora não precise de Wall Street. Facilmente entrará na mesma engrenagem que faz, afinal, ter sempre que moderar quem se lhe atravesse no caminho, igual aos demais. Poder é sempre poder, e o lugar da gentinha é sempre o de protestar, pelo menos em democracia e os novos poderosos não são diferentes dos antigos, em mandá-los calar. Só que, pela parte que nos toca, há muito que faliu o nosso Walt Street de empréstimo. Não julgo que resulte o artifício da escolha dos novos dirigentes. Pelo menos para as massas – ou a gentinha – confiantes na viragem a seu favor, quais gladiadores em revolta. Lá fora, não sei o que será - nem, de resto, cá dentro - mas também a Doris Day o desconhecia a respeito do destino.
O que seria de facto, interessante, é que a tal gentinha, "the little people", segundo designação da tal Leona Helmsley, – novos e menos novos – pensassem mais em termos de enriquecimento espiritual, até para não se deixaram  envolver tanto nas patranhas dos ambiciosos astutos.

Pluma Caprichosa
TEMPOS INTERESSANTES
Clara Ferreira Alves
 E, 23/4/16
Muita gente pensou que a gentinha pagaria a conta de Wall Street e do subprime, a conta das especulações dos casinos financeiros, sem um protesto. À parte as manifestações coloridas dos movimentos Occupy, que tiveram o destino dos movimentos e protestos antiglobalização, descritos pelas potestades como “um bando de hippies e vagabundos a fumar erva”, nada se opôs, no início, aos resgates públicos e a uma varredela espiritual dos mais pobres, descritos como inúteis ao sistema, da baixa classe média, descrita como um proletariado convencido da pertença ao escalão superior, e dos jovens e desempregados, descritos como um bando de parasitas do Estado social. Todos, evidentemente, carecidos do gene do empreendedorismo. “The little people”, a gentinha, como lhes chamava Leona Helmsley, a dona dos hotéis Waldorf Astoria, que não pagava impostos e gastava o tempo a pentear os caniches, parecia estar disposta a roer gafanhotos para manter à tona as jangadas da política e da finança.
Este suave estado de alma, ajudado pelo desgaste histórico da social-democracia do pós-guerra, durou. As pessoas tinham medo, porque lhes foi dito que um dia iam ao multibanco e estava vazio, ou iam passar fome, ou iam perder o que tinham. Quando a profecia se materializou, e muitas pessoas perderam casas e empregos, perderam privilégios e garantias, quando os filhos dessas pessoas viram o seu futuro endividado, a suavidade começou a perder-se . A gentinha ia ficando farta de aturar os teóricos de bancada que prevêem tudo menos o que acontece. Aconteceu, pasme-se, nos Estados Unidos da América, baluarte do capitalismo e da iniciativa privada. Aconteceu no Reino Unido, aconteceu em Espanha, aconteceu na Grécia, aconteceu nos países cujos povos foram forçados a pagar a conta dos actos danosos que não tinham praticado. Os “Panama papers” , e as suas repercussões na opinião pública, são um capítulo desta tragédia. A direita convencional ainda não percebeu o que aconteceu. As pessoas fartaram-se.  No Reino Unido, os trabalhistas elegeram um marxista, um espécime que julgávamos extinto. Exit o blairismo e o seu prócere, exemplo macroscópio da sanguessuga de bilionário. Na Grécia, um partido de extrema-esquerda ganhou todas as eleições e dispôs-se a reformar o país. Na Espanha, o PP ficou sem maioria e o Podemos elevou-se. Na França, o oportunista Hollande dispôs-se a ganhar as presidenciais contra uma direita desunida e raivosa. E, nos Estados Unidos, Bernie Sanders, um homem que fala em revolução e cospe insultos a Wall Street, é maioritário nos jovens e abanou a powerhouse dos Clinton. Tivesse Bernie menos trinta anos (como Trudeau Jr.) e Hillary estaria em apuros. E Donald Trump, esse mesmo, é o candidato do protesto do branco pobre americano contra o sistema que o defraudou. É, também, alguém que não precisa de Wall Street.
Nos países economicamente mais estáveis, partidos convencionais ainda têm maiorias, mas a instabilidade causada pelos arrefecimentos das potências, as flutuações dos preços e dos mercados e as derivas políticas para os extremos, põem a Europa em perigo. Da Holanda à Polónia, da Alemanha à Finlândia, as direitas e as esquerdas populistas organizam-se para mastigar o centro. Merkel passa por uma humanista moderada. O seu partido vai defenestrá-la, por razões de subserviência, tal como os conservadores fizeram a Margaret Thatcher (é sempre mais fácil impugnar uma mulher, como se vê pelo grupo de bandidos que, de repente, se assustou com a venalidade de Dilma Rousseff. The little people vinga-se. Lentamente, deliberadamente, partidos fora do sistema começam a integrar o sistema e a tornar-se reservas morais e uma severa ameaça às oligarquias tradicionais. Os novos partidos começam a cativar apoiantes e a formar quadros competentes. No caso português, o Bloco de Esquerda, tal como o Syriza, é o exemplo. A ascensão do Bloco, e a inteligência com que tem manipulado o seu quinhão de poder, o seu poder de atracção de jovens qualificados, constitui uma ameaça aos outros partidos. O PCP está condenado ao passado. O CDS percebeu e prepara (mais uma) conversão. E quanto ao PS e PSD, não se percebe o que perceberam.
Vivemos, como dizem os chineses, tempos interessantes

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