Nos meus tempos do liceu, chegávamos
a casa esfomeadas, a minha irmã e eu e devorávamos a sopa e os guisados ou o
peixe frito tão saborosos que a nossa mãe cozinhava. O nosso pai já tinha
almoçado, mas esperava religiosamente por nós, para contarmos da escola, antes
de ir “passar pelas brasas”, dez minutos que fossem, antes de partir para o “serviço”.
Não me lembro de críticas aos professores, para ele os professores eram “sagrados”,
reconhecia-lhes a importância numa sociedade que o estudo ajuda a elevar. E não
foram todos tão bons, os meus professores, mas cada um dava o seu contributo
para a nossa formação e alguns preservo na memória e no respeito. Neles e nos
livros e nos meus pais aprendi a ser. Não o supra sumo, mas alguém com valores,
como somos todos, neste processar de uma marcha de repetição e renovação
contínuas, átomo que ocupa o seu espaço e deu origem a outros átomos
renovadores. Tudo tão simples, afinal, de entender, na voracidade dos mundos,
em que nada somos e somos tudo, revendo-nos nos versos de Reinaldo Ferreira,
até mesmo aqueles que parecem nada querer da vida mas o afirmam e se afirmam ao
dizê-lo: Mínimo sou, / Mas quando ao Nada empresto / A minha
elementar realidade, / O Nada é só o resto.
O
nosso mundo português deu um trambolhão, é certo, e mesmo no ensino, e mesmo na
educação, que as teorias libertadoras ajudaram a complicar, dificultando o
trabalho dos professores, não apoiados pela disciplina anterior – a qual não
foi toda tão severa como se quer fazer crer, para justificar o radicalismo das
mudanças, que não corresponderam a uma efectiva responsabilização, mas antes ao
ruído e ao caos. Por isso os professores
merecem mais do que nunca respeito e
apoio, julgo, dadas as condições deprimentes
de um ensino degradado na disparidade das suas muitas frentes de
trabalho e competências. Por isso não
compreendi o azedume de Alberto Gonçalves neste seu artigo «A escola do crime».
Mas talvez seja esse o motivo.
O facto de não ter filhos nem vocação para os ter que produziu um tão
dilacerante grito de ódio. Por tudo e por todos. Como gosto da sagacidade
crítica com que geralmente descodifica os motivos e as contradições que movem
os cordelinhos da política, senti pena por este texto de escândalo imprudente
para si próprio. Tão superior se julga que não aceita as fraquezas alheias? Mas
também isso é fraqueza. Quanto à questão dos colégios, são contos largos, que,
se não justificam as piscinas com os apoios do Estado, em termos ideais poderão
significar uma maior ordem e disciplina para os pais que as desejam, e nos seus
impostos contribuem para estabelecer esses contratos de apoio estatal.
Também nisso, o meu pai era a
favor do ensino público, mais rigoroso na aferição das capacidades, os colégios
não tão rigorosos nessa aferição, porque acima de tudo lhes importava o
dinheiro dos pais. Embora isso sejam águas passadas, os colégios, sem apoio
estatal, eram só para quem os podia pagar, o que não traduzia, como agora se
pretende, necessariamente um mérito de excelência.
A escola do crime
Por
falta de vocação, não tenho filhos. Se tivesse filhos, gostaria que estudassem
em países menos carnavalescos. Se tivesse filhos e não tivesse meios para
pô-los lá fora, em princípio ensinava-os em casa. Se não tivesse vagar para
ensiná-los, se calhar deixava-os à solta, ranhosos e ilegais, que quase tudo é
preferível a submeter crianças à aquisição de "valências" e à lavagem
cerebral que aqui passa frequentemente por ensino público - aliás o único que
conheço, da primeira classe à tese de licenciatura.
Resultado?
Descontada a esforçada dona Julieta da "primária" e talvez meia dúzia
de docentes do liceu, nenhum professor me "transmitiu" grande coisa,
excepto a impressão de que por ali não ia longe, ou a importância do autodidactismo.
E agora é de certeza pior: principalmente na área das "humanidades"
(nas ciências "duras" os charlatães penetram com maior dificuldade,
pelo que certos bioquímicos se mudam para a política), um mocinho é capaz de
concluir a "secundária" convencido de que Mia Couto é um escritor, de
que a globalização é responsável pela pobreza na Terra e de que os graffiti são
uma expressão artística.
Há
alternativas? Há o ensino particular propriamente dito, presumivelmente mais
competente e mais caro. E há as escolas privadas com "contratos de
associação". Ou havia, até ao momento em que o senhor ministro do ramo
descobriu uma piscina olímpica num colégio na Vila da Feira e resolveu acabar
com a brincadeira. Num instante, hordas de indivíduos apaixonados pelo ensino
público e que inscrevem a descendência no privado levantaram-se para aplaudir.
De seguida, a título de verdades incontestáveis, desataram a repetir uma série
de incontestáveis aldrabices: ao financiar as escolas privadas com
"contratos de associação", o Estado prejudica as escolas públicas; as
escolas privadas com "contratos de associação" ficam caríssimas ao
contribuinte por comparação com o ensino gratuito; as escolas privadas com
"contratos de associação" exibem sinais exteriores de riqueza, ao
passo que as escolas públicas se limitam ao essencial; as escolas privadas com
"contratos de associação" são para ricos e egoístas em geral,
enquanto as escolas públicas são para os pobres e as pessoas com consciência
social; ao contrário da iniciativa privada, cega pela vertigem do lucro, o
Estado vela pelo bem comum; etc.
Uma
pessoa ouve estas erudições e pergunta-se se os respectivos autores as cometem
por idiotia terminal ou má-fé. Na primeira hipótese, convinha averiguar qual o
tipo de ensino que frequentaram, de maneira a encerrá-lo com urgência. Na
segunda, convinha determinar clinicamente o perigo de semelhantes sociopatas
para a comunidade. Em qualquer dos casos, até dói ter de lembrar duas ou três
evidências.
Desde
logo, o ensino gratuito custa um dinheirão, pago à força pelo contribuinte, que
não só não consegue decidir o destino dos seus impostos como, de brinde, está
proibido de decidir o destino da sua prole (o "quem quer que pague" é
de facto o "paga quem não quer"). Depois, abundam por aí provas de
que, para o Estado, o gasto por aluno nas escolas privadas em causa é inferior
ao de um aluno nas escolas públicas. Do mesmo modo, o luxo repugnante do
colégio que "atraiu a atenção" do intrépido ministro traduz-se na
qualidade das instalações (salas de informática e multimédia, laboratórios,
campo de squash e a tal piscina), construídas ao longo de 25 anos mediante
financiamentos similares aos de um liceu comum - a atenção de governantes sem
distúrbios hormonais teria sido atraída pelos sinais exteriores de desleixo dos
estabelecimentos estatais: onde foram parar as verbas? De resto, se somadas, as
despesas com os "contratos de associação" arrancam decisivos 0,11% do
orçamento do ME. Por fim, a ideia de um Estado quimicamente puro, imune a grupos
de pressão, chantagem e cobiça, não merece comentários.
No
fundo, a questão deveria ser simples. Se cabe ao Estado alguma intervenção no
assunto - matéria também discutível - será a de facilitar a escolha das
famílias, aquelas que não conseguem chegar às escolas desejadas sem ajuda. É
absurdo, além de dispendioso, que se patrocinem escolas privadas e públicas em
vez de se patrocinar os cidadãos. Sucede que a preocupação dos devotos da
escola pública não é, obviamente, o dinheiro. Nem a educação das criancinhas. Nem
a justiça, a igualdade, a moral e demais conceitos assim impecáveis.
Materialmente,
há que consagrar o poder dos sindicatos no ensino, que há muito se sobrepõe à
tutela e hoje dispensa-a por completo. Ideologicamente, é importante controlar
a ascensão social, e domesticar as almas de modo a subjugá-las às demências
vigentes. Sobretudo importa arrasar qualquer vestígio de respeito pela
liberdade alheia, e mostrar quem manda. Nisto, manda um "professor"
com estágio no despotismo e carreira no ressentimento. Em sectores diferentes
do país inteiro, mandam ou candidatam-se a mandar tiranetes diferentes, todos
juntinhos num projecto totalitário que o Dr. Costa acha "claro, coerente e
estável". E o pior é que tem razão. O melhor é que não tenho filhos: o
crime em curso não carece de novas vítimas.
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