quarta-feira, 25 de maio de 2016

«Trappola per topi»



Já falámos nisto várias vezes. Mas hoje veio a propósito da queda minha filha, que nitidamente “voou” e se estatelou, espalhando os livros, pisando os olhos e o nariz e os joelhos, e ficando com as costas sem quase se poder mexer, ao tropeçar num paralelepípedo solto da calçada à portuguesa, quando descia a calçada.
A nossa amiga também já tropeçara, eu própria, várias amigas, sem esquecer o colo do fémur, das quedas na nossa idade.
Por isso eu vou olhando para o chão, de cada vez que me desloco, de buraco escancarado ou pedra solta, que dificilmente é reposta, não sei se por falta de verba ou por um proverbial desrespeito pelo cidadão que preferia o passeio cimentado.
- A calçada à portuguesa foi uma herança diabólica – começa a nossa amiga, nos exageros expressivos a que nos acostumou.
- Mas é muito bonita, refuta a minha irmã, liricamente recordada das imagens dos seus livros de arte e das suas passeatas por Lisboa.
- Bonita mas malvada, responde com gana a nossa amiga. Cai gente todos os dias que vai parar ao hospital. Cai-se no país inteiro.
- A mim, - fui eu que falei - o que mais me custa é não poder ver tão frequentemente, os sapatos de saltos em agulha numas pernas elegantes das raparigas bonitas, como se vêem nos pavimentos lisos, mas ainda há dias encontrei, lá na minha rua, uma moça alta e arrojada, de tacão afilado, que me encheu os olhos de espanto e encanto, pela coragem. Mas a contemplação foi curta, porque tive que desviar os olhos para o chão que pisava, no meu sapato baixo, mas não isento de tropeçar.
-Veja lá donde é que veio esta maldita ideia – repete a minha amiga, que falou na calçada romana, creio que já tínhamos procurado em tempos.
Transcrevo, pois, da Internet, embora sem os exemplos nem as imagens, que ali se podem ver:

CALÇADA PORTUGUESA
A pavimentação do espaço público em território luso remonta à colonização romana, altura em que se construíram inúmeras vias empedradas. Entretanto, passaram-se vários séculos até que a pavimentação das ruas fosse retomada e ainda assim, de forma muito pontual e limitada.
O Calceteiro
Foi durante o período pombalino, mais precisamente com a reconstrução pós Terramoto de 1755, que se retomou o hábito de “calçar” as ruas com paralelepípedos.
A primeira Calçada Portuguesa nasceu apenas em 1842 e foi mandada fazer por Eusébio Furtado, um engenheiro que era simultaneamente tenente general e governador de armas do castelo de São Jorge, em Lisboa. A obra foi feita por presidiários que pavimentaram a parada, até então de terra batida, com pedras de calcário branco e basalto negro a formar um ziguezague.
O resultado foi de tal forma surpreendente, que segundo relatam cronistas da época, as pessoas se deslocavam propositadamente ao Castelo para verem a Calçada.
Depois deste sucesso, Eusébio Furtado foi incumbido de pavimentar o Rossio, tarefa que empreendeu mais uma vez com os “grilhetas”, nome que os alfacinhas davam aos prisioneiros. O desenho adotado para o rossio seguiu um padrão de listas onduladas que ficou conhecido por “mar largo”.
Hoje, a Calçada Portuguesa faz parte da imagem de marca do nosso país e constitui um dos encantos das nossas cidades.
2º Texto:
Apesar de os pavimentos calcetados terem surgido no reino por volta de 1500, a calçada à portuguesa, tal como a entendemos hoje, foi iniciada em meados do séc. XIX. A chamada "calçada à portuguesa", em calcário branco e negro, caracteriza-se pela forma irregular de aplicação das pedras. Todavia, o tipo de aplicação mais utilizado hoje, desde meados do séc. XX, designado por "calçada portuguesa", é aplicado com cubos, e tem um enquadramento diagonal. Calçada À portuguesa, e calçada portuguesa são coisas distintas.
A calçada começou em Portugal de forma diferente da que hoje é, mais desordenada. São as cartas régias de 20 de Agosto de 1498 e de 8 de Maio de 1500, assinadas pelo rei D. Manuel I de Portugal, que marcam o início do calcetamento das ruas de Lisboa, mais notavelmente o da Rua Nova dos Mercadores (antes Rua Nova dos Ferros). Nessa época, foi determinado que o material a utilizar deveria ser o granito da região do Porto, que, pelo transporte implicado, tornou a obra muito dispendiosa. O objetivo seria que a Ganga, um rinoceronte branco, ricamente ornamentada, não sujasse de lama com o calcar das suas pesadas patas, o numeroso e longo cortejo, com figurantes aparatosamente engalanados com as novas riquezas e adornos vindas do oriente, que saía à rua em pleno inverno, aquando do seu aniversário a 21 de Janeiro. A comitiva ficava manifestamente suja, daí a decisão de calcetar as ruas do percurso como forma de dar resposta ao problema. Sendo a única vez no ano em que o rei se mostrava à população vem daí a expressão: "Quando o rei faz anos..."
O terramoto de 1755, a consequente destruição e reconstrução da cidade lisboeta, em moldes racionais mas de custos contidos, tornou a calçada algo improvável à época. Contudo, já no século seguinte, foi feita em Lisboa no ano de 1842, uma calçada calcária, muito mais próxima da que hoje mais conhecemos e continua a ser utilizada. O trabalho foi realizado por presidiários (chamados "grilhetas" na época), a mando do Governador de armas do Castelo de São Jorge, o tenente-general Eusébio Pinheiro Furtado. O desenho utilizado nesse pavimento foi de um traçado simples (tipo zig-zag) mas, para a época, a obra foi de certa forma insólita, tendo motivado cronistas portugueses a escrever sobre o assunto. Em O Arco de Sant'Ana, romance de Almeida Garrett, também essa calçada na encosta do mesmo castelo seria referida, tal como em Cristalizações, poema de Cesário Verde.
Após este primeiro acontecimento, foram concedidas verbas a Eusébio Furtado para que os seus homens pavimentassem toda a área da Praça do Rossio, uma das zonas mais conhecidas e mais centrais de Lisboa, numa extensão de 8 712 .
A calçada portuguesa rapidamente se espalhou por todo o país e pelas colónias, subjacente a um ideal de moda e de bom gosto, tendo-se apurado o sentido artístico, que foi aliado a um conceito de funcionalidade, originando autênticas obras-primas nas zonas pedonais. Daqui, bastou somente mais um passo, para que esta arte ultrapassasse fronteiras, sendo solicitados mestres calceteiros portugueses para executar e ensinar estes trabalhos no estrangeiro.
Em 1986, foi criada uma escola para calceteiros (a Escola de Calceteiros da Câmara Municipal de Lisboa), situada na Quinta do Conde dos Arcos. Da autoria de Sérgio Stichini, em Dezembro de 2006, foi inaugurado também um monumento ao calceteiro, sito na Rua da Vitória (baixa Pombalina), entre as Rua da Prata e Rua dos Douradores.
A técnica
Vários tipos de aplicação de calçada.
Os calceteiros tiram partido do sistema de diaclases do calcário para, com o auxílio de um martelo, fazerem pequenos ajustes na forma da pedra, e utilizam moldes para marcar as zonas de diferentes cores, de forma a que repetem os motivos em sequência linear (frisos) ou nas duas dimensões do plano (padrões). A geometria do século XX demonstrou que há um número limitado de simetrias possíveis no plano: 7 para os frisos e 17 para os padrões. Um trabalho de jovens estudantes portugueses registou, nas calçadas de Lisboa, 5 frisos e 11 padrões, atestando a sua riqueza em simetrias.
Destacam-se as técnicas de aplicação de calçada mais comuns: a antiga calçada à portuguesa, que se caracteriza pela forma irregular de aplicação das pedras; o malhete, semelhante mas com mais espaço entre as pedras; a calçada portuguesa clássica, que tem uma aplicação em diagonal, segundo um alinhamento de 45 graus com os muros ou lancis; a calçada à fiada, com as pedras alinhadas em filas paralelas; a calçada circular; a calçada sextavada; a calçada artística, que se caracteriza pela aplicação de pedras com formatos específicos e/ou pelo contraste de cores; o Mar Largo; o leque segmentado; o leque florentino; e o rabo de pavão

Mas tanta beleza construída pelos calceteiros, merece uma conclusão de homenagem a esses. De um extraordinário “calceteiro” do verbo descritivo, que, nos seus apontamentos “poliédricos” ordena impressões, e sensações, e sentimentos, e reacções, em quadros humanos de extraordinário impacto, através de uma poesia de profundas sugestões de uma realidade visualizada através das várias facetas dos sentidos, na junção de sinestesias e aliterações, e animismo e comparações e metáforas e contrastes, num jogo profuso entre um olhar atento ao real e reflectindo o mundo próprio da sensibilidade à injustiça, no burilamento sequente das suas frases cristalinas: Cesário Verde.

Cristalizações

Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,
Vibra uma imensa claridade crua.
De cócoras, em linha, os calceteiros,
Com lentidão, terrosos e grosseiros,
Calçam de lado a lado a longa rua.

Como as elevações secaram do relento,
E o descoberto sol abafa e cria!
A frialdade exige o movimento;
E as poças de ar, como em chão vidrento,
Reflectem a molhada casaria.

Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,
Disseminadas, gritam as peixeiras;
Luzem, aquecem na manhã bonita,
Uns barracões de gente pobrezita
E uns quintalórios velhos com parreiras.

Não se ouvem aves; nem o choro duma nora!
Tomam por outra parte os viandantes;
E o ferro e a pedra - que união sonora! -
Retinem alto pelo espaço fora,
Com choques rijos, ásperos, cantantes.

Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços,
Cuja coluna nunca se endireita,
Partem penedos; cruzam-se estilhaços.
Pesam enormemente os grossos maços,
Com que outros batem a calçada feita.

A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!
Que espessos forros! Numa das regueiras
Acamam-se as japonas, os coletes;
E eles descalçam com os picaretes,
Que ferem lume sobre pederneiras.

E nesse rude mês, que não consente flores,
Fundeiam, como a esquadra em fria paz,
As árvores despidas. Sóbrias cores!
Mastros, enxárcias, vergas! Valadores
Atiram terra com largas pás.

Eu julgo-me no Norte, ao frio - o grande agente! -
Carros de mão, que chiam carregados,
Conduzem saibro, vagarosamente;
Vê-se a cidade, mercantil, contente:
Madeiras, águas, multidões, telhados!

Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria;
Em arco, sem as nuvens flutuantes,
O céu renova a tinta corredia;
E os charcos brilham tanto, que eu diria
Ter ante mim lagoas de brilhantes!

E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos,
Eu tudo encontro alegremente exacto.
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.
E tangem-me, excitados, sacudidos,
O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!

Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem
De tão lavada e igual temperatura!
Os ares, o caminho, a luz reagem;
Cheira-me a fogo, a sílex, a ferrugem;
Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.

Mal-encarado e negro, um pára enquanto eu passo,
Dois assobiam, altas marretas
Possantes, grossas, temperadas de aço;
E um gordo, o mestre, com um ar ralaço
E manso, tira o nível das valetas.

Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!
Que vida tão custosa! Que diabo!
E os cavadores pousam as enxadas,
E cospem nas calosas mãos gretadas,
Para que não lhes escorregue o cabo.

Povo! No pano cru rasgado das camisas
Uma bandeira penso que transluz!
Com ela sofres, bebes, agonizas;
Listrões de vinho lançam-lhe divisas,
E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!

De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,
Surge um perfil direito que se aguça;
E ar matinal de quem saiu da toca,
Uma figura fina, desemboca,
Toda abafada num casaco à russa.

Donde ela vem! A actriz que tanto cumprimento
E a quem, à noite na plateia, atraio
Os olhos lisos como polimento!
Com seu rostinho estreito, friorento,
Caminha agora para seu ensaio.

E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
Como lajões. Os bons trabalhadores!
Os filhos das lezírias, dos montados:
Os das planícies, altos, aprumados;
Os das montanhas, baixos, trepadores!

Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto,
Furtiva a tiritar em suas peles,
Espanta-me a actrizita que hoje pinto,
Neste Dezembro enérgico, sucinto,
E nestes sítios suburbanos, reles!

Como animais comuns, que uma picada esquente,
Eles, bovinos, másculos, ossudos,
Encaram-na sanguínea, brutalmente:
E ela vacila, hesita, impaciente
Sobre as botinhas de tacões agudos.

Porém, desempenhando o seu papel na peça,
Sem que inda o público a passagem abra,
O demonico arrisca-se, atravessa
Covas. entulhos, lamaçais, depressa,
Com seus pezinhos rápidos, de cabra!

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