Já falámos nisto várias vezes.
Mas hoje veio a propósito da queda minha filha, que nitidamente “voou” e se
estatelou, espalhando os livros, pisando os olhos e o nariz e os joelhos, e
ficando com as costas sem quase se poder mexer, ao tropeçar num paralelepípedo
solto da calçada à portuguesa, quando descia a calçada.
A nossa amiga também já tropeçara,
eu própria, várias amigas, sem esquecer o colo do fémur, das quedas na nossa
idade.
Por isso eu vou olhando para o
chão, de cada vez que me desloco, de buraco escancarado ou pedra solta, que
dificilmente é reposta, não sei se por falta de verba ou por um proverbial
desrespeito pelo cidadão que preferia o passeio cimentado.
- A calçada à portuguesa foi
uma herança diabólica – começa a nossa amiga, nos exageros expressivos a que nos acostumou.
- Mas é muito bonita, refuta
a minha irmã, liricamente recordada das imagens dos seus livros de arte e das
suas passeatas por Lisboa.
- Bonita mas malvada, responde com gana a nossa
amiga. Cai gente todos os dias que vai parar ao hospital. Cai-se no país
inteiro.
- A mim, - fui eu que falei - o que
mais me custa é não poder ver tão frequentemente, os sapatos de saltos em
agulha numas pernas elegantes das raparigas bonitas, como se vêem nos
pavimentos lisos, mas ainda há dias encontrei, lá na minha rua, uma moça alta e
arrojada, de tacão afilado, que me encheu os olhos de espanto e encanto, pela
coragem. Mas a contemplação foi curta, porque tive que desviar os olhos para o
chão que pisava, no meu sapato baixo, mas não isento de tropeçar.
-Veja lá donde é que veio esta
maldita ideia –
repete a minha amiga, que falou na calçada romana, creio que já tínhamos
procurado em tempos.
Transcrevo, pois, da Internet,
embora sem os exemplos nem as imagens, que ali se podem ver:
CALÇADA PORTUGUESA
A
pavimentação do espaço público em território luso remonta à colonização
romana, altura em que se construíram inúmeras vias empedradas.
Entretanto, passaram-se vários séculos até que a pavimentação das ruas fosse
retomada e ainda assim, de forma muito pontual e limitada.
O
Calceteiro
Foi
durante o período pombalino, mais precisamente com a reconstrução pós Terramoto
de 1755, que se retomou o hábito de “calçar” as ruas com paralelepípedos.
A
primeira Calçada Portuguesa nasceu apenas em 1842 e foi mandada fazer por Eusébio
Furtado, um engenheiro que era simultaneamente tenente general e governador
de armas do castelo de São Jorge, em Lisboa. A obra foi feita por presidiários
que pavimentaram a parada, até então de terra batida, com pedras de calcário
branco e basalto negro a formar um ziguezague.
O
resultado foi de tal forma surpreendente, que segundo relatam cronistas da
época, as pessoas se deslocavam propositadamente ao Castelo para verem a
Calçada.
Depois
deste sucesso, Eusébio Furtado foi incumbido de pavimentar o Rossio,
tarefa que empreendeu mais uma vez com os “grilhetas”, nome que os
alfacinhas davam aos prisioneiros. O desenho adotado para o rossio seguiu um
padrão de listas onduladas que ficou conhecido por “mar largo”.
Hoje,
a Calçada Portuguesa faz parte da imagem de marca do nosso país e constitui um
dos encantos das nossas cidades.
2º Texto:
Apesar
de os pavimentos calcetados terem surgido no reino por volta de 1500, a
calçada à portuguesa, tal como a entendemos hoje, foi iniciada em meados do
séc. XIX. A chamada "calçada à portuguesa", em calcário
branco e negro, caracteriza-se pela forma irregular de aplicação das
pedras. Todavia, o tipo de aplicação mais utilizado hoje, desde meados do
séc. XX, designado por "calçada portuguesa", é aplicado com cubos,
e tem um enquadramento diagonal. Calçada À portuguesa, e calçada
portuguesa são coisas distintas.
A
calçada começou em Portugal de forma diferente da que hoje é, mais
desordenada. São as cartas régias de 20 de Agosto de 1498 e de 8 de Maio de
1500, assinadas
pelo rei D. Manuel I de Portugal, que marcam o início do
calcetamento das ruas de Lisboa, mais notavelmente o da Rua Nova dos Mercadores
(antes Rua Nova dos Ferros). Nessa época, foi determinado que o material a
utilizar deveria ser o granito da região do Porto, que, pelo
transporte implicado, tornou a obra muito dispendiosa. O objetivo seria que a Ganga,
um rinoceronte
branco, ricamente ornamentada, não sujasse de lama com o calcar das suas
pesadas patas, o numeroso e longo cortejo, com figurantes aparatosamente
engalanados com as novas riquezas e adornos vindas do oriente, que saía à rua
em pleno inverno, aquando do seu aniversário a 21 de
Janeiro. A comitiva ficava manifestamente suja, daí a decisão de calcetar
as ruas do percurso como forma de dar resposta ao problema. Sendo a
única vez no ano em que o rei se mostrava à população vem daí a expressão:
"Quando o rei faz anos..."
O
terramoto de 1755, a consequente destruição e
reconstrução da cidade lisboeta, em moldes racionais mas de custos contidos,
tornou a calçada algo improvável à época. Contudo, já no século seguinte, foi
feita em Lisboa
no ano de 1842, uma
calçada calcária, muito mais próxima da que hoje mais conhecemos e continua a
ser utilizada. O trabalho foi realizado por presidiários (chamados
"grilhetas" na época), a mando do Governador de armas do Castelo de São Jorge, o tenente-general Eusébio Pinheiro Furtado.
O desenho utilizado nesse pavimento foi de um traçado simples (tipo zig-zag)
mas, para a época, a obra foi de certa forma insólita, tendo motivado cronistas
portugueses a escrever sobre o assunto. Em O Arco de Sant'Ana, romance de Almeida
Garrett, também essa calçada na encosta do mesmo castelo seria referida,
tal como em Cristalizações, poema de Cesário
Verde.
Após
este primeiro acontecimento, foram concedidas verbas a Eusébio Furtado
para que os seus homens pavimentassem toda a área da Praça do Rossio, uma das zonas mais conhecidas
e mais centrais de Lisboa, numa extensão de 8 712 m².
A
calçada portuguesa rapidamente se espalhou por todo o país e pelas colónias, subjacente a um ideal de moda e de bom
gosto, tendo-se apurado o sentido artístico, que foi aliado a um conceito de
funcionalidade, originando autênticas obras-primas
nas zonas pedonais. Daqui, bastou somente mais um passo, para que esta arte
ultrapassasse fronteiras, sendo solicitados mestres calceteiros portugueses
para executar e ensinar estes trabalhos no estrangeiro.
Em
1986, foi criada
uma escola para calceteiros (a Escola de Calceteiros da Câmara Municipal de Lisboa), situada na
Quinta do Conde dos Arcos.
Da autoria de Sérgio Stichini, em Dezembro de
2006, foi
inaugurado também um monumento ao calceteiro, sito na Rua da Vitória (baixa
Pombalina), entre as Rua da Prata e Rua dos Douradores.
A técnica
Vários tipos de aplicação de
calçada.
Os
calceteiros tiram partido do sistema de diaclases do calcário
para, com o auxílio de um martelo, fazerem pequenos ajustes na forma da pedra,
e utilizam moldes para marcar as zonas de diferentes cores, de forma a que repetem
os motivos em sequência linear (frisos) ou nas duas dimensões do plano (padrões). A geometria do
século
XX demonstrou que há um número limitado de simetrias possíveis no plano: 7
para os frisos e 17 para os padrões. Um trabalho de jovens estudantes
portugueses registou, nas calçadas de Lisboa, 5 frisos e 11 padrões, atestando
a sua riqueza em simetrias.
Destacam-se as técnicas de aplicação de calçada mais comuns:
a antiga calçada à portuguesa, que se caracteriza pela forma irregular
de aplicação das pedras; o malhete, semelhante mas com mais espaço entre
as pedras; a calçada portuguesa clássica, que tem uma aplicação em diagonal,
segundo um alinhamento de 45 graus com os muros ou lancis; a calçada à fiada,
com as pedras alinhadas em filas paralelas; a calçada circular; a calçada
sextavada; a calçada artística, que se caracteriza pela aplicação de
pedras com formatos específicos e/ou pelo contraste de cores; o Mar Largo;
o leque segmentado; o leque florentino; e o rabo de pavão.»
Mas tanta beleza construída pelos calceteiros, merece uma conclusão
de homenagem a esses. De um extraordinário “calceteiro” do verbo descritivo, que,
nos seus apontamentos “poliédricos” ordena impressões, e sensações, e sentimentos,
e reacções, em quadros humanos de extraordinário impacto, através de uma poesia
de profundas sugestões de uma realidade visualizada através das várias facetas
dos sentidos, na junção de sinestesias e aliterações, e animismo e comparações
e metáforas e contrastes, num jogo profuso entre um olhar atento ao real e
reflectindo o mundo próprio da sensibilidade à injustiça, no burilamento sequente
das suas frases cristalinas: Cesário Verde.
Cristalizações
Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,
Vibra uma imensa claridade crua.
De
cócoras, em linha, os calceteiros,
Com
lentidão, terrosos e grosseiros,
Calçam
de lado a lado a longa rua.
Como as elevações secaram do relento,
E
o descoberto sol abafa e cria!
A
frialdade exige o movimento;
E
as poças de ar, como em chão vidrento,
Reflectem
a molhada casaria.
Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,
Disseminadas,
gritam as peixeiras;
Luzem,
aquecem na manhã bonita,
Uns
barracões de gente pobrezita
E
uns quintalórios velhos com parreiras.
Não se ouvem aves; nem o choro duma nora!
Tomam
por outra parte os viandantes;
E
o ferro e a pedra - que união sonora! -
Retinem
alto pelo espaço fora,
Com
choques rijos, ásperos, cantantes.
Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços,
Cuja
coluna nunca se endireita,
Partem
penedos; cruzam-se estilhaços.
Pesam
enormemente os grossos maços,
Com
que outros batem a calçada feita.
A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!
Que
espessos forros! Numa das regueiras
Acamam-se
as japonas, os coletes;
E
eles descalçam com os picaretes,
Que
ferem lume sobre pederneiras.
E nesse rude mês, que não consente flores,
Fundeiam,
como a esquadra em fria paz,
As
árvores despidas. Sóbrias cores!
Mastros,
enxárcias, vergas! Valadores
Atiram
terra com largas pás.
Eu julgo-me no Norte, ao frio - o grande agente! -
Carros
de mão, que chiam carregados,
Conduzem
saibro, vagarosamente;
Vê-se
a cidade, mercantil, contente:
Madeiras,
águas, multidões, telhados!
Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria;
Em
arco, sem as nuvens flutuantes,
O
céu renova a tinta corredia;
E
os charcos brilham tanto, que eu diria
Ter
ante mim lagoas de brilhantes!
E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos,
Eu
tudo encontro alegremente exacto.
Lavo,
refresco, limpo os meus sentidos.
E
tangem-me, excitados, sacudidos,
O
tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!
Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem
De
tão lavada e igual temperatura!
Os
ares, o caminho, a luz reagem;
Cheira-me
a fogo, a sílex, a ferrugem;
Sabe-me
a campo, a lenha, a agricultura.
Mal-encarado e negro, um pára enquanto eu passo,
Dois
assobiam, altas marretas
Possantes,
grossas, temperadas de aço;
E
um gordo, o mestre, com um ar ralaço
E
manso, tira o nível das valetas.
Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!
Que
vida tão custosa! Que diabo!
E
os cavadores pousam as enxadas,
E
cospem nas calosas mãos gretadas,
Para
que não lhes escorregue o cabo.
Povo! No pano cru rasgado das camisas
Uma
bandeira penso que transluz!
Com
ela sofres, bebes, agonizas;
Listrões
de vinho lançam-lhe divisas,
E
os suspensórios traçam-lhe uma cruz!
De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,
Surge
um perfil direito que se aguça;
E
ar matinal de quem saiu da toca,
Uma
figura fina, desemboca,
Toda
abafada num casaco à russa.
Donde ela vem! A actriz que tanto cumprimento
E
a quem, à noite na plateia, atraio
Os
olhos lisos como polimento!
Com
seu rostinho estreito, friorento,
Caminha
agora para seu ensaio.
E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
Como
lajões. Os bons trabalhadores!
Os
filhos das lezírias, dos montados:
Os
das planícies, altos, aprumados;
Os
das montanhas, baixos, trepadores!
Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto,
Furtiva
a tiritar em suas peles,
Espanta-me
a actrizita que hoje pinto,
Neste
Dezembro enérgico, sucinto,
E
nestes sítios suburbanos, reles!
Como animais comuns, que uma picada esquente,
Eles,
bovinos, másculos, ossudos,
Encaram-na
sanguínea, brutalmente:
E
ela vacila, hesita, impaciente
Sobre
as botinhas de tacões agudos.
Porém, desempenhando o seu papel na peça,
Sem
que inda o público a passagem abra,
O
demonico arrisca-se, atravessa
Covas.
entulhos, lamaçais, depressa,
Com
seus pezinhos rápidos, de cabra!
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