quarta-feira, 18 de maio de 2016

Liberais até dizer chega



Também me parece estranho. Digamos que repugnante. Mas o mundo é estranho, está cada vez mais estranho, e aquilo que também já me repugnou – a adopção de filhos por casais do mesmo sexo – fez lei e hoje isso é possível, e os tais pruridos, que têm a ver mais com a sensibilidade desses filhos, ao crescerem e compararem o seu caso com o dos colegas ou ao estudarem nas ciências o fenómeno da procriação, os tais pruridos não são, afinal, relevantes. Como tudo o mais. Sofrimentos, revoltas, são pecha de todos, e esses “filhos” condenados a serem mascotes de estranha origem até podem ter sido salvos de condições de vida  menos afortunada. O tempo passa, esses filhos crescem, as dúvidas ou os pudores, se os tiverem, poderão ser dissipadas ou minimizadas, nos conceitos de um non-sens ou de um absurdo geral, afinal despidos de importância, como tudo o resto - menos a trafulhice, que está na ordem do dia, sobretudo para quem só o dinheiro conta como aferidor de critérios de honestidade.
O artigo do médico e professor universitário Ricardo Baptista Leite esclarece sobre o seu não às barrigas de aluguer, com dados científicos. A mim, basta-me a repugnância - pelos pais que promoveram o negócio, pela dona da barriga que se prestou ao negócio, a criança apenas joguete de tal conluio, pelo Estado que instituiu tal lei.
 Mas os filhos de pais heterossexuais também os atacam quando são repreendidos – quer de forma prosaica - “Tu é que me geraste! É tua a culpa!” – quer mais artisticamente, e arrogantemente, à maneira de António Gedeão:
Fala do Homem nascido
Venho da terra assombrada
do ventre de minha mãe
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém
Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci….
quer em lamentos artísticos  à Reinaldo Ferreira, de uma dor e revolta inenarráveis:
Ai de mim!
Que não pedi p’ra nascer
E sou forçado a viver! («Linhas Cruzadas”)
o que prova que, em matéria de sofrimentos, não há grandes distinções, quer os filhos provenham de aluguer de barrigas alheias, quer das  barrigas maternas próprias, que tão protectoras foram, num diálogo íntimo de perfeito amor, como toda a natureza exprime.
Mas desçamos  ao “negócio” das barrigas de aluguer, que desrespeita a vida humana:

Não às barrigas de aluguer
Ricardo Baptista Leite
Médico, Professor Universitário e Deputado do PSD
Público, 12/05/2016 Tópicos
Manter o mais alto respeito pela vida humana, desde sua conceção”, este foi o compromisso que assumi como médico. Sou, por isso, contra o projeto de lei que prevê a possibilidade de procriação por recurso à maternidade de substituição sob a forma de um negócio jurídico não oneroso.
Mas vamos por pontos, começando pela ética. Ignora-se, pura e simplesmente, a instrumentalização do corpo da mulher, atribui-se sem discussão superioridade ao laço genético sobre o laço afectivo de 9 meses de gestação e, ainda mais controverso, a criança é tratada como uma “coisa”, mero prolongamento do progenitor, argumento que não se ouve desde a escravatura.
No plano político, por sua vez, ignoram-se os limites da liberdade individual, seguindo-se uma via, que considero falaciosamente simples, de conversão de desejos em direitos. Numa sociedade onde as dificuldades de conceção se apresentam em crescendo e onde a vontade de ter filhos dificilmente deixa alguém indiferente, julgo que esta é uma discussão que deve ser feita com mais cautela.
No plano jurídico, estamos no quadro de uma prestação de serviços, onde o corpo humano passa a ser objeto de direito, confundindo-se liberdade de procriar, com direito de procriar. Mais, estamos perante um contrato de contornos muito imprecisos que prejudica os importantes princípios da certeza e da segurança jurídica, desconsiderando em particular os direitos da criança, da mulher portadora e da própria comunidade. Parece-me evidente que embora o feto exista dentro do corpo da mãe, ele não é património que se alugue, se doa ou se venda. E atenção, a generosidade invocada pelos proponentes é uma ilusão. Nos EUA, a mãe alojadora é tipicamente não licenciada, subsídio-dependente ou vive com um salário mínimo, em contraste com a mãe contratante que é tipicamente de alto rendimento e licenciada.
E não ficamos por aqui. A lei deixa em aberto muitas outras perguntas que têm de ter resposta, concorde-se ou não. O projeto prevê que possam ser pagos à mãe portadora todas as necessidades no âmbito da gravidez da parte dos progenitores. Como se controla? Como se resolve se a mãe portadora no final da gravidez quiser ficar com a criança? O que acontece à criança no caso de falecimento dos progenitores? E se os progenitores, por algum motivo (como, por exemplo, no caso de uma malformação congénita), não quiserem ficar com a criança? Como se resolve a conjugação da maternidade de substituição com a aplicação da lei da interrupção voluntária da gravidez? Pode o contrato jurídico ser renunciado a meio da gravidez (por exemplo, aos 6 meses de gestação)? Ou seja, no campo jurídico ignora-se tudo quanto pode correr mal.
Não podemos baixar os braços. Devemos ser coerentes na defesa da vida e da ética. Devemos defender de forma intransigente uma correta aplicação das leis em vigor – como são os casos das leis da Interrupção voluntária da gravidez e da Procriação Medicamente Assistida. Devemos apoiar medidas de promoção da natalidade, reconhecendo que existem barreiras financeiras, sociais e profissionais à procriação, assim como de clarificação dos processos de adoção, numa visão que deve ser não apenas individual, mas também global perante a preocupante situação demográfica e social do país.
Especificamente quanto à maternidade de substituição, o projeto pode ter o mérito de lançar um debate que ainda está por se realizar no seio da sociedade portuguesa. Neste momento, perante as enormes dúvidas e inquietações suscitadas, sou contra.

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