Também me parece estranho. Digamos que repugnante. Mas
o mundo é estranho, está cada vez mais estranho, e aquilo que também já me
repugnou – a adopção de filhos por casais do mesmo sexo – fez lei
e hoje isso é possível, e os tais pruridos, que têm a ver mais com a sensibilidade
desses filhos, ao crescerem e compararem o seu caso com o dos colegas ou ao estudarem
nas ciências o fenómeno da procriação, os tais pruridos não são, afinal,
relevantes. Como tudo o mais. Sofrimentos, revoltas, são pecha de todos, e
esses “filhos” condenados a serem mascotes de estranha origem até podem ter
sido salvos de condições de vida menos
afortunada. O tempo passa, esses filhos crescem, as dúvidas ou os pudores, se os
tiverem, poderão ser dissipadas ou minimizadas, nos conceitos de um non-sens ou
de um absurdo geral, afinal despidos de importância, como tudo o resto - menos
a trafulhice, que está na ordem do dia, sobretudo para quem só o dinheiro conta
como aferidor de critérios de honestidade.
O artigo do médico e professor universitário Ricardo
Baptista Leite esclarece sobre o seu não às barrigas de aluguer,
com dados científicos. A mim, basta-me a repugnância - pelos pais que
promoveram o negócio, pela dona da barriga que se prestou ao negócio, a criança
apenas joguete de tal conluio, pelo Estado que instituiu tal lei.
Mas os filhos
de pais heterossexuais também os atacam quando são repreendidos – quer de forma
prosaica - “Tu é que me geraste! É tua a culpa!” – quer mais
artisticamente, e arrogantemente, à maneira de António Gedeão:
Fala do Homem
nascido
Venho da terra assombrada
do ventre de minha mãe
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém
Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci….
quer em lamentos
artísticos à Reinaldo Ferreira, de uma
dor e revolta inenarráveis:
Ai de mim!
Que não pedi p’ra
nascer
E sou forçado a
viver! («Linhas Cruzadas”)
o que prova que, em matéria de sofrimentos, não há
grandes distinções, quer os filhos provenham de aluguer de barrigas alheias,
quer das barrigas maternas próprias, que
tão protectoras foram, num diálogo íntimo de perfeito amor, como toda a
natureza exprime.
Mas desçamos ao “negócio” das barrigas de aluguer, que
desrespeita a vida humana:
Não às barrigas de aluguer
Ricardo Baptista Leite
Médico, Professor Universitário e Deputado do PSD
Público, 12/05/2016 Tópicos
“Manter o mais alto
respeito pela vida humana, desde sua conceção”, este foi o compromisso que
assumi como médico. Sou, por isso, contra o projeto de lei que prevê a
possibilidade de procriação por recurso à maternidade de substituição sob a
forma de um negócio jurídico não oneroso.
Mas vamos por pontos, começando pela ética.
Ignora-se, pura e simplesmente, a instrumentalização do corpo da mulher, atribui-se
sem discussão superioridade ao laço genético sobre o laço afectivo de 9 meses
de gestação e, ainda mais controverso, a criança é tratada como uma “coisa”,
mero prolongamento do progenitor, argumento que não se ouve desde a escravatura.
No plano político, por sua vez, ignoram-se os limites da liberdade
individual, seguindo-se uma via, que considero falaciosamente simples, de
conversão de desejos em direitos. Numa sociedade onde as dificuldades de
conceção se apresentam em crescendo e onde a vontade de ter filhos dificilmente
deixa alguém indiferente, julgo que esta é uma discussão que deve ser feita com
mais cautela.
No plano jurídico, estamos no quadro de uma prestação de serviços,
onde o corpo humano passa a ser objeto de direito, confundindo-se liberdade
de procriar, com direito de procriar. Mais, estamos perante um contrato
de contornos muito imprecisos que prejudica os importantes princípios da
certeza e da segurança jurídica, desconsiderando em particular os direitos
da criança, da mulher portadora e da própria comunidade. Parece-me evidente
que embora o feto exista dentro do corpo da mãe, ele não é património que
se alugue, se doa ou se venda. E atenção, a generosidade invocada
pelos proponentes é uma ilusão. Nos EUA, a mãe alojadora é tipicamente não
licenciada, subsídio-dependente ou vive com um salário mínimo, em contraste com
a mãe contratante que é tipicamente de alto rendimento e licenciada.
E não ficamos por aqui. A lei deixa em aberto muitas
outras perguntas que têm de ter resposta, concorde-se ou não. O projeto prevê
que possam ser pagos à mãe portadora todas as necessidades no âmbito da
gravidez da parte dos progenitores. Como se controla? Como se resolve
se a mãe portadora no final da gravidez quiser ficar com a criança? O
que acontece à criança no caso de falecimento dos progenitores? E se os
progenitores, por algum motivo (como, por exemplo, no caso de uma malformação
congénita), não quiserem ficar com a criança? Como se resolve a
conjugação da maternidade de substituição com a aplicação da lei da interrupção
voluntária da gravidez? Pode o contrato jurídico ser renunciado a meio da
gravidez (por exemplo, aos 6 meses de gestação)? Ou seja, no campo jurídico
ignora-se tudo quanto pode correr mal.
Não podemos baixar os braços. Devemos ser coerentes na
defesa da vida e da ética. Devemos defender de forma intransigente uma correta
aplicação das leis em vigor – como são os casos das leis da Interrupção
voluntária da gravidez e da Procriação Medicamente Assistida. Devemos apoiar
medidas de promoção da natalidade, reconhecendo que existem barreiras
financeiras, sociais e profissionais à procriação, assim como de clarificação
dos processos de adoção, numa visão que deve ser não apenas individual, mas
também global perante a preocupante situação demográfica e social do país.
Especificamente quanto à maternidade de substituição,
o projeto pode ter o mérito de lançar um debate que ainda está por se realizar
no seio da sociedade portuguesa. Neste momento, perante as enormes dúvidas e
inquietações suscitadas, sou contra.
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