segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Instabilidade ocidental


Dois curiosos textos de João Carlos Espada, de política apreensiva pelas nuvens que pairam sobre o ocidente europeu devido a vários factores de instabilidade - o Brexit e a desintegração da democracia europeia pela incidência dos nacionalismos, no primeiro texto, a Rússia e a China ameaçadoras da paz e da economia, do segundo texto.
Mas, para além do tom apreensivo, de que os festejos, sem euforia, da Queda do Muro de Berlim mostraram a relevância, no primeiro texto – «DEMOCRACIA: Celebrando a queda do Muro de Berlim» - refere-se uma reunião de trabalho de várias universidades em Oxford, sobre “Populism, Nationalism and Brexit”, em que tudo se discursou com muita cortesia, apesar das discordâncias de pontos de vista. Um texto cómico, que salienta educação - ou talvez hipocrisia - bem diferentes dos nossos aguerridos debates por aqui.
Quanto ao segundo texto «UNIÃO EUROPEIA Em defesa da aliança euro-americana» - mostra a preocupação do Reino Unido e dos EUA pelas potencialidades russa e chinesa nos domínios militar e económico, incitando a uma união com a Europa, que, indiferente, combate os nacionalismos próprios, em favor das bondades democráticas defensoras dos invasores desamparados das vizinhanças.


Celebrando a queda do Muro de Berlim
OBSERVADOR, 12/2/2018
Estarão as democracias ocidentais em perigo? Por que motivo crescem os partidos populistas e declinam os partidos centrais?
Na última terça-feira, 6 de Fevereiro, passaram 10316 dias após a queda do Muro de Berlim. Dado que o Muro existiu durante 10315 dias (entre 1961 e 1989), terça-feira marcou o dia em que o período pós-Muro ultrapassou o período da sua existência.
A data não foi, no entanto, assinalada com a euforia que seria expectável. Nuvens de apreensão pesam sobre as democracias na Europa e no mundo. Crescem velhas e novas ameaças externas — do já conhecido fundamentalismo islâmico ao mais recente e muito pouco denunciado expansionismo colectivista e materialista chinês.
Mas cresce sobretudo um novo e indefinível mal-estar interno: os eleitores dão sinais de descrença nos grandes partidos clássicos em que as democracias têm assentado; novos movimentos e partidos populistas atraem inesperados apoios populares.
Estarão as democracias ocidentais em perigo? Por que motivo crescem os partidos populistas e declinam os partidos centrais? Estes foram os temas de uma reunião de trabalho em Oxford precisamente na terça e quarta-feiras da semana passada. Promovida pelo Europaeum — um consórcio que reune doze das mais antigas universidades europeias — a reunião foi subordinada ao tema ‘Challenges to building consensus: Old problems, New Times?’.
Foi uma intensa discussão académica, que não seria possível reproduzir neste espaço. Mas uma experiência particularmente intrigante merece talvez um breve relato. Tratou-se de uma sessão aberta ao público sobre ‘Populism, Nationalism and Brexit’, com dois proeminentes ‘brexiteers’ e um proeminente ‘remainer’.
O que eles disseram não foi propriamente novo, de um lado ou do outro. O que foi absolutamente surpreendente foi o tom cordial, cortês — quase doce — em que toda a sessão decorreu. Não houve um insulto, um azedume, um sequer ligeiro elevar do tom de voz. Polidamente, na verdade atenciosamente, cruzaram argumentos simplesmente opostos sobre o futuro do Reino Unido e da União Europeia. E apresentavam esses argumentos opostos com a desconcertante compostura de quem estivesse num evento social a pedir desculpa por discordar do anfitrião.
O único momento (parcialmente) dissonante foi quando um elemento da assistência — um vigoroso ‘brexiteer’ — fez uma intervenção inflamada a favor do ‘Brexit’ e contra os ‘traidores ao povo’ que querem impedir a concretização da vontade popular. Respondeu-lhe suavemente Gisela Stuart, que foi a líder oficial (trabalhista) da campanha pelo Brexit: ‘Receio que a sua intervenção tenha revelado mais sobre a sua mente do que sobre algum problema real que a nossa democracia esteja a enfrentar’. E prosseguiu tranquilamente com os seus argumentos.
Depois desta sessão pública, o grupo de académicos europeus do Europaeum regressou à sua reunião de trabalho. Havia um silêncio entre nós. O primeiro a falar foi um idoso professor emérito de Bolonha, com as maneiras distintas da velha e adorável Itália. Disse ele:
‘Estou muito impressionado com o tom educado do debate a que acabámos de assistir. E fez-me lembrar as palavras do grande historiador francês da Inglaterra do século XIX, Élie Halévy. Ele descreveu um jantar no Clube Athenaeum, em Londres, entre um Bispo católico, um Bispo anglicano e um deputado agnóstico: cada um deles ouvia os outros atentamente e suspendia o que estava a dizer para que os outros pudessem discordar.’
Houve um prolongado e respeitoso silêncio entre nós. Após alguns minutos, atrevi-me a acrescentar que Élie Halévy cunhara a expressão ‘milagre inglês’: o ‘milagre’ de a Inglaterra ‘ter feito todas as revoluções — industrial, económica, social, política, cultural — sem nunca ter de recorrer à Revolução’.
No final dos trabalhos, fomos jantar na High Table do colégio. E, como há muitos séculos acontece em Oxford, começámos por pedir a Deus a benção para a nossa refeição: ‘Benedictus benedicat’. No fim do jantar, como há muitos séculos acontece em Oxford, agradecemos a Deus a nossa refeição: ‘Benedicto benedicatur’.

Em defesa da aliança euro-americana
OBSERVADOR, 29/1/2018
Vamos ser claros: ideia de substituir a aliança euro-americana por uma aliança euro-chinesa não é apenas uma completa loucura — seria uma submissão.
A semana passada começou com uma chocante primeira página do Telegraph de Londres, logo na segunda-feira de manhã: ‘Army can’t keep up with Russia’. Não se tratava da opinião de um comentador avulso. Era a declaração do chefe das Forças Armadas britânicas, General Sir Nick Carter, denunciando o gigantesco investimento militar russo e a actual incapacidade britânica de lhe fazer frente.
Na semana anterior, o Pentágono acabara de publicar uma nova ‘Estratégia de Defesa Nacional’. O documento define a Rússia e a China como as ameaças mais sérias para os EUA e o mundo ocidental — mais do que o terrorismo islâmico.
E a semana passada terminou com uma capa surpreendente de uma revista britânica: ‘The Next War’ era o título em letras garrafais de The Economist. No editorial de abertura, a revista alerta:
‘Se a América permitir que a China e a Rússia estabeleçam hegemonias regionais — quer inconscientemente, quer porque a política americana se tornou demasiado disfuncional para conseguir gerar uma resposta — então [a América] estará a dar-lhes [à China e à Rússia] luz verde para prosseguirem os seus interesses pela força bruta.’
Entretanto, nestas mesmas duas últimas semanas, nas capitais europeias — incluindo parcialmente em Davos — estes temas eram superiormente ignorados. As capitais europeias continuam magnamente ocupadas com a campanha contra o chamado ‘nacionalismo’.
O termo ‘nacionalismo’ tornou-se elástico: inclui justamente a condenação de atitudes xenófobas, racistas e proteccionistas; mas também inclui a gratuita condenação da inofensiva oposição patriótica de inúmeros eleitorados de nações europeias (sobretudo da Europa central e de Leste) contra maior integração supranacional da União Europeia — designadamente, contra a definição supranacional das políticas de imigração de cada país, que sempre foram matéria dos Parlamentos nacionais.
Precisamente a este propósito, também esta semana uma outra revista britânica alertou para a dissonância cognitiva que ameaça o debate europeu. John O’Sullivan (antigo conselheiro da Sra. Thatcher, que estará de novo entre nós no próximo dia 10 de Fevereiro), escreveu o artigo que deu a capa da Spectator.
Chama-se ‘The fight for Europe’. Ainda que eu não subscreva inteiramente as opiniões de John O’Sullivan (um frequente participante nas sessões do Estoril Political Forum do IEP-UCP, sempre obviamente ignorados pelos ‘media’ politicamente correctos nacionais), creio que os alertas dele devem pelo menos ser tidos em conta. Por exemplo:
‘Estes europeus do centro e do leste entendem-se a si próprios como a verdadeira Europa. Uma Europa que valoriza o estado-nação, a família, políticas prudentes, a religião cristã, e a democracia maioritária — e vêem estes padrões como ecos mais autênticos da tradição europeia. Por isso, os seus conflitos com Bruxelas não são acerca de eles serem anti-europeus, mas acerca do que significa ser europeu.’
Concordemos ou não com O’Sullivan, creio que o seu olhar recomenda pelo menos prudência. E a prudência recomenda que o projecto europeu não deve ambicionar desenhos utópicos supranacionais — sob pena de podermos ficar com ‘mais Europa e… com menos europeus’.
Mas receio que este nem sequer seja agora o problema principal. O problema principal é que a obsessão de alguns sectores euro-federalistas contra o chamado ‘nacionalismo’ pode estar a gerar uma tentação fatal: a tentação de substituir a aliança entre a Europa e os EUA pela aliança euro-asiática… se preciso for com a China comunista!
O argumento começa a surgir em várias vozes. Ouvi recentemente um alto funcionário europeu citar positivamente a China três vezes numa intervenção pública de 20 minutos — em que insistentemente condenou o ‘nacionalismo’ dentro da Europa e na América de Trump. Inúmeros jornais europeus citam frequentemente a China como um parceiro desejável, ou pelo menos possível — sobretudo contra o que designam por ‘nacionalismo’ da América de Trump.
Vamos ser claros: a ideia de substituir a aliança euro-atlântica por uma aliança euro-chinesa não é apenas uma completa loucura — seria uma submissão.



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