Já muitos cronistas referiram
a questão – da imutabilidade dos rictos e dos rituais presidenciais, a própria
Maria João Avillez o tem apontado em vão. Julgo que Marcelo não os lê,
assoberbado com a vida social que o seu gosto de projecção requer, e por isso
não muda, também atendendo ao provérbio sobre as línguas, inacessíveis, pelo
menos ao “burro velho”. Diz-se que é afável, como já o fora seu pai, e
naturalmente que o povo submisso o aceita, sobretudo nas ocasiões das lágrimas,
paizinho que se julga que vai ajudar e ser severo com o abandono de quem se
esperaria eficiência. Mas o certo é que pactuou antes, com um governo menos
sério, permitindo conivências e risos mediáticos, em função, talvez de uma
maior estabilidade governativa, embora esta seja feita de aparência, no
compadrio fornecido pelos grupos apoiantes, sinuosamente esmoleres, à esquerda
do PS, e sinceramente condenando o Passos Coelho dos despedimentos – que agora
também se fazem, mas que não são badalados com a iracúndia de antes.
Não, Maria João Avillez não
muda os caprichos do seu amigo Presidente, mas escreve coisas que temos “pudor
de contar seja a quem for”, devido também à inutilidade de tanto malhar.
Mas é inexcedível de elegância e arte a forma da sua escrita. Exemplifiquemos: Na
rendição apatetada do país ao Chefe do Estado, “demissões” não são pura e
simplesmente concebíveis. O perímetro feliz dos afectos e do afã non-stop,
expulsa-as automaticamente.
Marcelo Recelo de Sousa
Sobre o Presidente da República
0BSERVADOR, 13/2/2018,
Se amanhã fosse almoçar com
o Presidente da República a uma esplanada faria um livro a seguir, além do
bónus do divertimento, coisa raríssima entre nós. Mas a pátria não é isso.
1. “Dizes sempre
mal dele, que coisa”. Dizer mal “do Marcelo” é hoje algo de quase brutalmente
dissonante, entre o inadmissível e o absurdo. Não é suposto. Não se faz. Na
rendição apatetada do país ao Chefe do Estado, “demissões” não são pura e
simplesmente concebíveis. O perímetro feliz dos afectos e do afã non-stop,
expulsa-as automaticamente.
Ouço constatações
lamurientas “como é que eu não me canso”, envoltas em condescendência
falsamente tolerante: “não tens medo de ser injusta?”. Coisas assim, sem
importância.
Mas espanto-me sempre: o
ponto não é escrever o que escrevo, ou dizer publicamente o que digo, mas a
razão porque o faço. Não há embirração pessoal ou capricho –
dispensáveis, de resto, nos textos políticos: se há pessoa com quem tenha
passado bons bocados, vivido interessantes aventuras jornalísticas, rindo até
cair para o lado – e sabe Deus o formidável poder que tem o riso comum – foi
com Marcelo Rebelo de Sousa e foram muitos anos disso. Se amanhã fosse almoçar com
ele a uma esplanada faria um livro a seguir, além do bónus do divertimento,
coisa raríssima entre nós. Mas a pátria não é isso.
A verdade é que o observei,
vi-o agir, trabalhei com ele e para ele, conheço-lhe a excepcionalidade da
inteligência, tirei-lhe muitas fotografias com palavras, confessei-o, alcancei
a dimensão exacta da sua ambição, retive, para a vida, a certeza da sua
solidão. Sei quem ele é. E não gosto nada disso na política (mesmo
se feito com brilho e às vezes génio: só um imbecil não lhe reconhece o
génio na habilidade com que manuseia a política, os seus jogos, a sua intriga).
Em resumo, o que nele
aprecio – e indubitavelmente aprecio – não coincide com a forma como encarna
e pratica a função presidencial.
2. Ao abraçar
continuamente o país inteiro Marcelo está a fazer de Portugal um orfanato. Ao
distribuir afectos a eito, transforma-o num sítio de gente oficialmente infeliz
que necessita permanentemente de mimo e consolo. Ao fazer-se fotografar e
abraçar (cláusulas sempre incluídas nas deslocações) com quem lhe aparece à
frente, infantiliza o gesto e relativiza o símbolo do abraço. Nem o país está
moribundo, nem saiu duma guerra, nem necessita de ser constantemente redimido
ou consolado. Precisa disso, sim, quando é tempo disso, conforme testemunhámos
na tragédia do verão passado, mas o resto – o quotidiano que corre como as
marés, ora altas, ora baixas – não tem de ser celebrado, beijado ou consolado,
a cada instante.
Seja: admito que não haja
ainda “ângulo” para concordar com isto ou sequer “ver” o excesso disto face à
felicidade geral vigente. Mas no normal entendimento da função
presidencial a (divinizada) “proximidade” não será exactamente o patrocínio
de circuitos de omnipresença alicerçados numa fértil ubiquidade (beijando,
estando, selfizando, indo, abraçando, chegando, dançando, partindo, voltando)
como vimos até hoje. É certo que tudo isto lhe trazia um palco exclusivo –
prioridade número um – e assegurava tropas (para o que der e vier). Um
português feliz e selfizado é um soldado disponível. E não estão aí sondagens
iguais às da Coreia do Norte a comprovar o acerto presidencial? E não se
afirma que o Presidente da República faz o seu “melhor”? Faz. Do ponto de
vista dos seus desígnios políticos e da rota que escolheu para os alcançar, o
seu palco está seguríssimo – nunca ruirá –, as tropas, rentes, atrás dele (de
tal forma que o Presidente já pôde até meter a marcha atrás), mas e o país?
Ou não estamos perante algumas coisas que não deviam ou não poderiam ter
acontecido?
3. Marcelo praticou
demasiada cumplicidade governamental, elogiou demais, comentou demais,
enredou-se demais em questões que não eram “suas” e alertou de menos para
algumas opções – leis, reversões, cativações, decisões – que ele sabe que
objectivamente não podem deixar de vir a prejudicar o futuro nacional. Fê-lo,
disse ele, em nome da “estabilidade”: o seu custo compensará o prejuízo de
algumas opções tomadas e que poderiam não ter sido exactamente as mesmas?
Depois veio o Verão,
morreram cento e tal pessoas. O
confronto que daí resultou com o colossal falhanço do Estado e a leveza dos
governantes, avisou-o. O ciclo mudou e com ele o tom e o registo. O rosa virou
grisalho, os sorrisos amareleceram. Há semanas escrevi aqui que António Costa
passou a estar sob vigilância. O Presidente desmentirá, claro, e o
primeiro-ministro continuará a sorrir (mesmo a despropósito), mas hoje há
alertas nos discursos presidenciais, coisa que não havia (vigilância
produtiva?). Belém quer sinalizar ao país outra exigência face à governação,
gesto que de caminho (um dois-em-um) libertará o Chefe de Estado do remorso
político em caso de…
Mas sim, quanto tempo perdido em proximidades e cumplicidades. Enquanto
Belém e S. Bento se entretiveram em gracejos e festejos, comunistas e
bloquistas faziam-se lembrados: as respectivas listas de reivindicações nas
agendas – políticas e civilizacionais – de ambos desde o princípio desta
história, têm vindo a ser satisfeitas. Que pensará hoje Marcelo do seu
silêncio de ontem face ao retrocesso que tais cedências pressupõem hoje e do
quanto virão a custar ao país, à primeira subida das taxas de juro, ao primeiro
abanão no equilíbrio instável em que se vive hoje na Europa e no mundo? Como
avaliou ele a ávida cavalgada das cativações e dos seus nocivos efeitos, por
exemplo, na Saúde? O que se passa nalguns hospitais do Estado, penalizando
sempre os mais vulneráveis, devia pôr o país no encarnado. E levar o
Presidente, afoito no afecto, a “aterrar”, sem anúncio, nem comitiva – seria
capaz? – num hospital de Coimbra, no Algarve, em Lisboa. Inquirindo sobre o
tamanho das listas de espera, medicamentos em falta, dívidas só a subir, falta
de recursos humanos, materiais, técnicos. Não é por acaso que sobre este estado
de coisas há um oportuníssimo manto de silêncio mesmo que ele nem de longe
disfarce a realidade dos estragos de certas e cegas cativações.
4. Sim houve uma nítida marcha atrás na démarche do Presidente e no
desenho do seu mandato: melhor que ninguém sabe que o segundo acto será
diferente, mesmo que mais difícil e não totalmente previsível. Há outro mapa
político com a chegada de Rio ao leme de um PSD dividido e cansado; há o
calendário eleitoral que vai começar a apertar, alterando forçosamente o ritmo
e o rumo das coisas da político; há o aumento de nível de exigências da extrema
esquerda, acelerada pelo receio -real – de um bloco central. Em caso de
casamento ao centro, ao menos não se poderiam queixar da pródiga herança
socialista recebida. E há sobretudo um governo que mesmo que não pareça –
distraído como anda com o auto elogio permanente das suas performances – nos
surge meio bloqueado: escasseia o investimento público, nada se faz para
favorecer ou sequer incentivar o investimento privado; escasseia o trabalho
nalgumas áreas governamentais; escasseia – piora – a real procura de uma
economia sustentada: chega a ser absurdo o contentamento com o turismo como
fonte de riqueza quando não passa de produtor de empregos com baixa
qualificação. E há impostos a aumentar todos os dias, uma carga fiscal que
começa a ser tão desencorajadora quanto aterradora. Como pensa o Presidente da
República – agora menos azougado, mais tranquilo com o seu palco e as suas
tropas e por isso mais entretido com o “macronismo” à portuguesa – actuar face
a tudo isto no levantar do pano sobre o acto dois da sua peça presidencial?
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