Percorrendo a grossa lista de crónicas deste “médico
psiquiatra”, tenho pena de não ter acompanhado há mais tempo a sua leitura,
pela pertinência com que aborda temas sociais tão relevantes nestes tempos de
uma evolução cada vez mais a descambar para a perda da sanidade mental e moral,
com os meios televisivos responsáveis pela provocação desordeira e viciosa,
como essa dos «reality shows” que ele refere e mais ainda a do acesso à pornografia
de que são veículo.
É certo que, numa sociedade de fartura e imoderação
como é a nossa – fartura alimentar, exposta nas prateleiras dos múltiplos
supermercados, fartura de instrumentos do nosso conforto e vaidades, fartura de
“casus belli” e de provocações “tribais” que a mesma televisão difunde – quer se
trate de disputas clubísticas, políticas, ou outras de transgressões várias – e
que os meios informáticos multiplicam poderosamente, numa abundância cada vez
mais alienante, apesar de tanta riqueza informativa que paralelamente veicula, fartura
de observação, em suma, num mundo cada vez mais encurtado na sua aproximação
visual, que a invenção tecnológica progressivamente possibilita – e a irracionalidade
comportamental, a que a ”fartura” liberalizadora igualmente conduz, sem a
necessária disciplina mental e moral – tais características de excessos
fatalmente desvinculam os humanos da contenção e do bom senso.
Provam-no os textos seguintes de Pedro
Afonso, médico psiquiatra que brilhantemente analisa os fenómenos que os respectivos
títulos sintetizam: «TELEVISÃO
- Reality shows: lamaçais televisivos» e «A adição à
pornografia nos adolescentes»,
e cujas frases cimeiras, que cito, dão uma vísão rápida e sumária da riqueza de
todo o seu conteúdo.
«As televisões transformaram-se em predadores de audiências. Já há muito
tempo que os limites do respeito pela pessoa humana foram ultrapassados por
motivações económicas.»
«A educação sexual tem
sido baseada numa visão libertária, à moda dos anos 60, e em procurar diminuir
os riscos associados às relações sexuais. Mas a sexualidade humana vai muito
mais além disto.»
Reality shows: lamaçais televisivos
PEDRO AFONSO
OBSERVADOR, 3/2/2018
As televisões transformaram-se em predadores de
audiências. Já há muito tempo que os limites do respeito pela pessoa humana foram
ultrapassados por motivações económicas.
Os reality shows foram introduzidos pela TVI no nosso país em
2000, através da primeira edição do Big Brother. Apesar das
audiências terem caído com o tempo, a verdade é que à semelhança de outros
países, os canais portugueses continuam a apostar neste tipo de programas,
embora com formatos um pouco diferentes. Mais recentemente surgiu uma enorme
polémica em torno do programa SuperNanny apresentado pela SIC. Mas afinal quais
são os problemas evidenciados por este tipo de programas?
O primeiro problema está associado ao culto do voyeurismo. A curiosidade de saber a intimidade da vida
dos outros é uma característica tipicamente humana, embora não seja
propriamente uma virtude. A fórmula televisiva inspirada na bisbilhotice da
vida privada continua a ser utilizada abundantemente com algum sucesso, e nem
os programas de entretenimento escapam a esta tendência. Nos vários canais
televisivos somos confrontados com a exposição pública da intimidade de pessoas
— frequentemente humildes e ingénuas — que sorriem para a câmara, atraídas pela
fama efémera, alimentando deste modo uma produção permanente de lixo
televisivo. Este “nudismo biográfico” é servido a granel, como se fosse uma
ração diária para os espectadores, numa lógica de mercado: o espectador tem uma
necessidade voyeurista e as televisões satisfazem esse hedonismo vicioso,
mantendo as audiências.
Dificilmente, através desta fórmula televisiva, ficarão gravadas na
nossa memória mensagens importantes. As vidas alheias exibidas através de uma
câmara, sem um tratamento jornalístico sério e ponderado, não passam de tédio
televisivo. Também nunca serviu como terapia em psiquiatria o consolo obtido
pelo conhecimento pormenorizado da desgraça e miséria alheia. O mesmo se poderá
dizer relativamente à contemplação da futilidade de algumas dessas existências
humanas que são injustificadamente idolatradas neste tipo de programas.
O segundo problema está relacionado com a
desinformação. Os meios de comunicação social — e a televisão em particular —
podem ser utilizados para manipular as pessoas, tratando-as como se fossem
mentecaptos. Por exemplo, o SuperNanny falseia a
realidade, através de uma visão enviesada e demasiado simplificada. O programa
televisivo apresenta-nos uma perspetiva redutora das alterações dos
comportamentos das crianças, como se não houvesse a necessidade de um
diagnóstico clínico, familiar e social. Estes casos necessitam habitualmente da
intervenção de uma equipa multidisciplinar experiente, constituída por
pediatras, pedopsiquiatras, psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais,
professores, etc. É preciso que as pessoas saibam que, perante situações desta
natureza, devem recorrer a uma ajuda profissional. O Estado tem várias
respostas que podem e devem ser utilizadas.
Convém referir que alguns destes programas têm como participantes
profissionais de saúde, que são recrutados numa tentativa de procurar dar uma
maior credibilidade a este tipo espetáculos televisivos. Os profissionais de
saúde devem resistir à tentação da popularidade fácil e recusar participar em
programas televisivos de pacotilha, sempre que estes violem princípios éticos
fundamentais. As ordens profissionais (dos médicos e psicólogos) têm um papel
pedagógico importante, devem esclarecer a sociedade e, se for necessário,
intervir disciplinarmente.
Finalmente, chegamos ao problema da defesa da dignidade humana, que é
válida para as crianças e também para os adultos. As televisões
transformaram-se em predadores de audiências. Já há muito tempo que
os limites do respeito pela pessoa humana foram ultrapassados por motivações
económicas. Mas, não há maior crueldade do que a de quem se aproveita das
pessoas que sofrem para delas obter lucro ou proveito. Por isso, se não forem
impostos limites éticos, estes programas de televisão, que expõem casos
concretos de adultos e crianças, num espetáculo circense deplorável, irão
espalhar-se como se fosse uma gangrena; como se fossem lamaçais de degradação
humana expostos a céu aberto.
A adição à pornografia nos adolescentes
PEDRO AFONSO
OBSERVADOR, 25/2/2018
A educação sexual tem sido baseada numa visão libertária, à moda dos
anos 60, e em procurar diminuir os riscos associados às relações sexuais. Mas a
sexualidade humana vai muito mais além disto.
Recentemente uma professora referiu-me que tinha sido vítima de assédio
sexual por parte de um aluno. Um adolescente, com 14 anos de idade,
abordou-a e pediu-lhe para ter sexo. Perante a indignação e a recusa perentória
da professora, o rapaz insistiu: «Então, nesse caso, tenha pelo menos dois
minutos de sexo comigo». Não se tratava obviamente da negociação da
duração do ato sexual, mas da desadequação do pedido, e da forma estranhamente
educada como este foi realizado. Investigado o caso, veio a saber-se que o adolescente
consumia pornografia de forma compulsiva, passando largas horas diariamente a
ver conteúdos pornográficos. Ao mesmo tempo, o rendimento escolar tinha caído
significativamente.
Através da internet e das novas tecnologias, as crianças e os
adolescentes têm um acesso muito facilitado e precoce à pornografia. Com a
generalização da internet nos dispositivos móveis, a supervisão parental
torna-se muito difícil, senão quase impossível. Atualmente, a primeira
exposição à pornografia ocorre em idades cada vez mais jovens e de forma
frequentemente involuntária. Este fenómeno é preocupante, dado que uma
exposição precoce a este tipo de imagens pode ser traumática, conduz a uma
visão distorcida da sexualidade humana, e aumenta o risco para a adição à
pornografia em indivíduos suscetíveis.
A realidade mostra-nos que a adição à pornografia existe, atingindo
adolescentes, jovens e adultos. Este é um assunto tabu devido ao preconceito e
à questão moral associada. Mesmo na psiquiatria, esta é uma matéria raramente
debatida e pouco estudada. Porém, independentemente dos aspetos morais, interessa-nos discutir a dimensão relacionada
com a saúde mental. Curiosamente,
em 2013, a Associação Americana de Psiquiatria reconheceu como provável doença
a perturbação de jogos de internet, mas não incluiu a adição à pornografia na
internet, apesar destas perturbações terem sintomas e mecanismos
fisiopatológicos semelhantes.
Por sua vez, contrastando com esta omissão, a Sociedade Americana de
Medicina de Adição, veio clarificar o fenómeno da adição. Na sua
definição, a adição é considerada uma doença do cérebro, com base
neurobiológica, que afeta os sistemas da recompensa, motivação, memória e
circuitos relacionados. Esta sociedade acrescenta ainda que a adição pode estar
associada à comida, sexo, álcool e outras drogas.
Estranhamente poucos se interrogam por que razão se promove apenas o
tratamento especializado para a adição em jogos de internet e não se incentiva
também o tratamento para a adição à pornografia. Não serão ambas adições comportamentais?
Isto acontece provavelmente por vergonha e estigma social. Além disso,
prevalece uma visão sectária da sexualidade humana, na qual tudo é possível,
não existindo lugar para o autocontrolo e domínio dos impulsos sexuais.
Nos últimos tempos, a educação sexual tem sido
baseada numa visão libertária — como se ainda estivéssemos nos anos 60 — e numa
perspetiva redutora que procura apenas a diminuição de riscos associados às
relações sexuais. Mas a sexualidade humana vai muito mais além disto. Importa
educar os adolescentes e os jovens para terem responsabilidade, respeito ao
outro, e para uma sexualidade madura ligada ao amor. Ainda hoje me
surpreende que tenha sido aprovada no nosso país uma Lei sobre educação sexual
na qual não consta uma única vez a palavra “amor”. Desvalorizar este
aspeto é promover uma sexualidade superficial, promíscua e sem pensamento.
Com base em testemunhos pessoais, tem-se
observado cada vez mais casos de adição à pornografia nos adolescentes e
jovens. Esta adição provoca uma visão perturbada da sexualidade humana, uma
redução no rendimento escolar, dificuldades no relacionamento interpessoal, um
aumento do risco de comportamentos sexuais agressivos e uma incapacidade para
se alcançar uma vivência da sexualidade plena e gratificante. É tempo para se
discutir e estudar este assunto, já que não se reduz ao campo da educação,
trata-se também de uma matéria de saúde pública que não pode ser ignorada.
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