segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Pedro Afonso, bom escalpelizador social


Percorrendo a grossa lista de crónicas deste “médico psiquiatra”, tenho pena de não ter acompanhado há mais tempo a sua leitura, pela pertinência com que aborda temas sociais tão relevantes nestes tempos de uma evolução cada vez mais a descambar para a perda da sanidade mental e moral, com os meios televisivos responsáveis pela provocação desordeira e viciosa, como essa dos «reality shows” que ele refere e mais ainda a do acesso à pornografia de que são veículo.
É certo que, numa sociedade de fartura e imoderação como é a nossa – fartura alimentar, exposta nas prateleiras dos múltiplos supermercados, fartura de instrumentos do nosso conforto e vaidades, fartura de “casus belli” e de provocações “tribais” que a mesma televisão difunde – quer se trate de disputas clubísticas, políticas, ou outras de transgressões várias – e que os meios informáticos multiplicam poderosamente, numa abundância cada vez mais alienante, apesar de tanta riqueza informativa que paralelamente veicula, fartura de observação, em suma, num mundo cada vez mais encurtado na sua aproximação visual, que a invenção tecnológica progressivamente possibilita – e a irracionalidade comportamental, a que a ”fartura” liberalizadora igualmente conduz, sem a necessária disciplina mental e moral – tais características de excessos fatalmente desvinculam os humanos da contenção e do bom senso.
Provam-no os textos seguintes de Pedro Afonso, médico psiquiatra que brilhantemente analisa os fenómenos que os respectivos títulos sintetizam: «TELEVISÃO - Reality shows: lamaçais televisivos» e «A adição à pornografia nos adolescentes», e cujas frases cimeiras, que cito, dão uma vísão rápida e sumária da riqueza de todo o seu conteúdo.

«As televisões transformaram-se em predadores de audiências. Já há muito tempo que os limites do respeito pela pessoa humana foram ultrapassados por motivações económicas.»

«A educação sexual tem sido baseada numa visão libertária, à moda dos anos 60, e em procurar diminuir os riscos associados às relações sexuais. Mas a sexualidade humana vai muito mais além disto.»

Reality shows: lamaçais televisivos
PEDRO AFONSO
OBSERVADOR, 3/2/2018

As televisões transformaram-se em predadores de audiências. Já há muito tempo que os limites do respeito pela pessoa humana foram ultrapassados por motivações económicas.
Os reality shows foram introduzidos pela TVI no nosso país em 2000, através da primeira edição do Big Brother. Apesar das audiências terem caído com o tempo, a verdade é que à semelhança de outros países, os canais portugueses continuam a apostar neste tipo de programas, embora com formatos um pouco diferentes. Mais recentemente surgiu uma enorme polémica em torno do programa SuperNanny apresentado pela SIC. Mas afinal quais são os problemas evidenciados por este tipo de programas?
O primeiro problema está associado ao culto do voyeurismo. A curiosidade de saber a intimidade da vida dos outros é uma característica tipicamente humana, embora não seja propriamente uma virtude. A fórmula televisiva inspirada na bisbilhotice da vida privada continua a ser utilizada abundantemente com algum sucesso, e nem os programas de entretenimento escapam a esta tendência. Nos vários canais televisivos somos confrontados com a exposição pública da intimidade de pessoas — frequentemente humildes e ingénuas — que sorriem para a câmara, atraídas pela fama efémera, alimentando deste modo uma produção permanente de lixo televisivo. Este “nudismo biográfico” é servido a granel, como se fosse uma ração diária para os espectadores, numa lógica de mercado: o espectador tem uma necessidade voyeurista e as televisões satisfazem esse hedonismo vicioso, mantendo as audiências.
Dificilmente, através desta fórmula televisiva, ficarão gravadas na nossa memória mensagens importantes. As vidas alheias exibidas através de uma câmara, sem um tratamento jornalístico sério e ponderado, não passam de tédio televisivo. Também nunca serviu como terapia em psiquiatria o consolo obtido pelo conhecimento pormenorizado da desgraça e miséria alheia. O mesmo se poderá dizer relativamente à contemplação da futilidade de algumas dessas existências humanas que são injustificadamente idolatradas neste tipo de programas.
O segundo problema está relacionado com a desinformação. Os meios de comunicação social ­— e a televisão em particular — podem ser utilizados para manipular as pessoas, tratando-as como se fossem mentecaptos. Por exemplo, o SuperNanny falseia a realidade, através de uma visão enviesada e demasiado simplificada. O programa televisivo apresenta-nos uma perspetiva redutora das alterações dos comportamentos das crianças, como se não houvesse a necessidade de um diagnóstico clínico, familiar e social. Estes casos necessitam habitualmente da intervenção de uma equipa multidisciplinar experiente, constituída por pediatras, pedopsiquiatras, psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, professores, etc. É preciso que as pessoas saibam que, perante situações desta natureza, devem recorrer a uma ajuda profissional. O Estado tem várias respostas que podem e devem ser utilizadas.
Convém referir que alguns destes programas têm como participantes profissionais de saúde, que são recrutados numa tentativa de procurar dar uma maior credibilidade a este tipo espetáculos televisivos. Os profissionais de saúde devem resistir à tentação da popularidade fácil e recusar participar em programas televisivos de pacotilha, sempre que estes violem princípios éticos fundamentais. As ordens profissionais (dos médicos e psicólogos) têm um papel pedagógico importante, devem esclarecer a sociedade e, se for necessário, intervir disciplinarmente.
Finalmente, chegamos ao problema da defesa da dignidade humana, que é válida para as crianças e também para os adultos. As televisões transformaram-se em predadores de audiências. Já há muito tempo que os limites do respeito pela pessoa humana foram ultrapassados por motivações económicas. Mas, não há maior crueldade do que a de quem se aproveita das pessoas que sofrem para delas obter lucro ou proveito. Por isso, se não forem impostos limites éticos, estes programas de televisão, que expõem casos concretos de adultos e crianças, num espetáculo circense deplorável, irão espalhar-se como se fosse uma gangrena; como se fossem lamaçais de degradação humana expostos a céu aberto.

A adição à pornografia nos adolescentes
PEDRO AFONSO
OBSERVADOR, 25/2/2018
A educação sexual tem sido baseada numa visão libertária, à moda dos anos 60, e em procurar diminuir os riscos associados às relações sexuais. Mas a sexualidade humana vai muito mais além disto.
Recentemente uma professora referiu-me que tinha sido vítima de assédio sexual por parte de um aluno.  Um adolescente, com 14 anos de idade, abordou-a e pediu-lhe para ter sexo. Perante a indignação e a recusa perentória da professora, o rapaz insistiu: «Então, nesse caso, tenha pelo menos dois minutos de sexo comigo».  Não se tratava obviamente da negociação da duração do ato sexual, mas da desadequação do pedido, e da forma estranhamente educada como este foi realizado. Investigado o caso, veio a saber-se que o adolescente consumia pornografia de forma compulsiva, passando largas horas diariamente a ver conteúdos pornográficos. Ao mesmo tempo, o rendimento escolar tinha caído significativamente.
Através da internet e das novas tecnologias, as crianças e os adolescentes têm um acesso muito facilitado e precoce à pornografia. Com a generalização da internet nos dispositivos móveis, a supervisão parental torna-se muito difícil, senão quase impossível.  Atualmente, a primeira exposição à pornografia ocorre em idades cada vez mais jovens e de forma frequentemente involuntária. Este fenómeno é preocupante, dado que uma exposição precoce a este tipo de imagens pode ser traumática, conduz a uma visão distorcida da sexualidade humana, e aumenta o risco para a adição à pornografia em indivíduos suscetíveis.
A realidade mostra-nos que a adição à pornografia existe, atingindo adolescentes, jovens e adultos. Este é um assunto tabu devido ao preconceito e à questão moral associada. Mesmo na psiquiatria, esta é uma matéria raramente debatida e pouco estudada. Porém, independentemente dos aspetos morais, interessa-nos discutir a dimensão relacionada com a saúde mental. Curiosamente, em 2013, a Associação Americana de Psiquiatria reconheceu como provável doença a perturbação de jogos de internet, mas não incluiu a adição à pornografia na internet, apesar destas perturbações terem sintomas e mecanismos fisiopatológicos semelhantes.
Por sua vez, contrastando com esta omissão, a Sociedade Americana de Medicina de Adição, veio clarificar o fenómeno da adição. Na sua definição, a adição é considerada uma doença do cérebro, com base neurobiológica, que afeta os sistemas da recompensa, motivação, memória e circuitos relacionados. Esta sociedade acrescenta ainda que a adição pode estar associada à comida, sexo, álcool e outras drogas.
Estranhamente poucos se interrogam por que razão se promove apenas o tratamento especializado para a adição em jogos de internet e não se incentiva também o tratamento para a adição à pornografia. Não serão ambas adições comportamentais? Isto acontece provavelmente por vergonha e estigma social. Além disso, prevalece uma visão sectária da sexualidade humana, na qual tudo é possível, não existindo lugar para o autocontrolo e domínio dos impulsos sexuais.
Nos últimos tempos, a educação sexual tem sido baseada numa visão libertária — como se ainda estivéssemos nos anos 60 — e numa perspetiva redutora que procura apenas a diminuição de riscos associados às relações sexuais. Mas a sexualidade humana vai muito mais além disto. Importa educar os adolescentes e os jovens para terem responsabilidade, respeito ao outro, e para uma sexualidade madura ligada ao amor.  Ainda hoje me surpreende que tenha sido aprovada no nosso país uma Lei sobre educação sexual na qual não consta uma única vez a palavra “amor”.  Desvalorizar este aspeto é promover uma sexualidade superficial, promíscua e sem pensamento.

Com base em testemunhos pessoais, tem-se observado cada vez mais casos de adição à pornografia nos adolescentes e jovens. Esta adição provoca uma visão perturbada da sexualidade humana, uma redução no rendimento escolar, dificuldades no relacionamento interpessoal, um aumento do risco de comportamentos sexuais agressivos e uma incapacidade para se alcançar uma vivência da sexualidade plena e gratificante. É tempo para se discutir e estudar este assunto, já que não se reduz ao campo da educação, trata-se também de uma matéria de saúde pública que não pode ser ignorada.

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