Sempre se disse que nos faltava o génio dramático, mas houvesse uma educação
séria, de valores e conhecimento clássico, não se esbanjava tanto aparato de
vazio e abandalhamento deseducativos como os que cita P Gonçalo Portocarrero de
Almada em “Teatro: a verdade nua e crua”, texto infra. Já
nos anos oitenta escrevi um texto – “Latrinária” (in “Anuário – Memórias
Soltas”) – sobre a arte de Talma nos palcos da televisão da altura, que não se
coibiam de repetir monocordicamente os termos da obscenidade ou da malandrice,
ainda em tímida investida na modernidade, a dar os primeiros passos
provocatórios do bom senso e dos convencionalismos pudibundos, que os escritores da arte
narrativa já então largavam com lábia e sem pejo, escondidos, naturalmente, de
câmaras, e por isso mais afoitos e de boas vendas.
O que conta Portocarrero é grave, tão grave como o que se conta por aí
de corrupções, de incêndios, de poluições estrondosas de rios, de indisciplina
geral escolar, de escolas sem condições físicas para um ensino capaz, a chuva e
o frio enregelando corpos e almas… Os teatros idem, quaisquer pseudo-dramaturgos
com o atrevimento suficiente para, numa pseudo-intelectualidade de pura
ignorância e descortesia, criarem irrisórias palhaçadas despidas de ideias mas
não de intenções malévolas, totalmente despidas de nobreza, emporcalhadoras da
História nacional. Leia-se o texto de Portocarrero e medite-se – se tivermos
coragem – na tal “cultura nacional” de que damos prova, sem uma agulheta
correctora a limpar o pântano em que chafurdamos, pobre povo que somos.
Teatro: a verdade nua e crua
OBSERVADOR, 20/1/2018
Está explicada a crise do teatro nacional: é por falta de ‘maturidade do
público’ que esta nobilíssima arte não atrai mais espectadores!
Ainda não foi há muito tempo que, na iminência do encerramento de um
teatro, o país entrou em pânico: choveram os protestos, circularam os
abaixo-assinados, vociferaram os artistas, pronunciaram-se os políticos e até
interveio, in extremis, o chefe de Estado, bombeiro de todos os
fogos, até mesmo os naturais.
Com certeza que o teatro é importante para a cultura nacional e, nesse
sentido, é compreensível que o Estado incentive a sua prática. Mas não se
compreende por que carga de água os portugueses devem financiar, com os seus
impostos, certos projectos, que não só são deficitários como manifestamente
degradantes.
O belo é um transcendental, segundo São Tomás de Aquino, isto é, a
expressão sublimada do ser, da verdade e do bem: algo é belo na medida em que é
verdadeiro e bom. Não é arte uma obra que não expresse valores, por muito que a
estimem os seus autores ou o público, cuja preferência nem sempre coincide com
o que é artisticamente melhor.
Todos têm direito à criação e expressão artística, desde que não ofendam
ninguém, como é óbvio. Mas daí não decorre que qualquer manifestação artística
tenha que ser subsidiada pelo erário público. Se o autor de um romance não pode
pretender que o Estado subsidie a edição, que direito têm às subvenções
estatais as companhias de teatro?! Se forem de qualidade as suas
representações, com certeza que a crítica e o público corresponderão mas, se
não for o caso, porque devem os contribuintes financiar uma actividade que é
deficitária, precisamente porque é medíocre?!
Alguns exemplos da actualidade são mais do que suficientes para ilustrar
que não há exagero nesta crítica.
‘The Portuguese’ é
um musical que começou a ser preparado em 2015, foi estreado no passado dia
13 no auditório dos oceanos do Casino de Lisboa e que se prevê que ficará em
cena, com três representações semanais, pelo menos até ao final de Março. Segundo
o autor, cuja sinceridade deve ser elogiada, é um espectáculo “completamente
absurdo” e não serve “para pensar, não é nada intelectual, não é nada para a
parte de trás do cérebro” (sic). Que é então? “É uma grande maradice (sic) que
eu ainda não sei muito bem o que é”, nas palavras de uma das actrizes
intervenientes, Ana Brito e Cunha. Na realidade, é uma paródia à história de
Portugal, que é contada aos turistas de “forma sarcástica, cómica, às vezes
musical”. Por exemplo, a expansão marítima portuguesa é “representada
com banheiras sobre rodas a fazerem de caravelas e Fernando Pessoa”. Também há
uma “partida de póquer entre António de Oliveira Salazar e James Bond”, canções
dos Abba e das Spice Girls, que são, como é sabido, grupos tradicionais de
música portuguesa. Enfim, uma palhaçada …
Outro tanto se diga de ‘Actores’, “uma peça em que” – refere a
imprensa – “a repetição, a exaustão e a humilhação são atiradas para o
palco”. Segundo ampla reportagem, o encenador confessa que “queria que, nesta
navegação por estilhaços dos percursos individuais, o grupo atracasse (sic) em
momentos em que fosse a ficção a transbordar para o lado da realidade, em que
biografia e peças/telenovelas se vão intersectando, através de manifestações
físicas próprias das personagens que assaltam os actores”. Estamos entendidos,
não estamos?!
Mas não desanimem, que há ainda pior, nomeadamente no teatro municipal
Sá da Bandeira, em Santarém. Aí esteve recentemente em cena “um espectáculo em
que uma actriz apareceu nua e a dizer palavrões”. “Trata-se da adaptação e
encenação do romance O Mandarim, de Eça de Queiroz” – em que, por sinal, não
consta que haja mulheres nuas, nem palavrões – por Pedro Barreiro, o agora
demitido director artístico e programador desse teatro, que reconheceu que esta
história tinha assumido “um carácter um bocado circense”. A artista em causa,
Sandra Oliveira, “não tardou a reagir, considerando que ‘resumir esta peça a
uma gaja nua a dizer asneiras’ é de um desrespeito enorme pelo trabalho de
todos os envolvidos”, sobretudo – digo eu – o responsável pelo guarda-roupa.
Atente-se à pulcritude da linguagem da actriz, sintomática da elevação cultural
e evidente interesse artístico e educativo da peça.
E o público? Segundo as
contas da vereadora da cultura da Câmara Municipal de Santarém, ‘O Mandarim –
Apóstrofe e Paciência’ contou com “47 pessoas a assistir à estreia e (…) 70
euros de receita”! Outro dado significativo: 197 espectadores estiveram no
total das quatro representações da peça em Dezembro passado mas, como 127 eram
convidados, só 70 pessoas pagaram bilhete, ou seja, houve uma média de menos de
vinte presenças pagas por sessão.
Mas, claro, este insucesso não se deve à pouca qualidade das peças, mas
ao público que, pelos vistos, já nem de circo gosta. Como disse a vereadora da cultura, “é
importante ter espectáculos contemporâneos, mas não podemos ter tudo do mesmo,
sobretudo quando ainda não existe maturidade do público”. Portanto, a
culpa é do povo, que é imaturo, coitado! Fica explicada a crise do teatro
nacional, mas salva-se a honra de vereadores, autores, programadores,
directores, encenadores, actores, outros e outras dores: afinal, é por falta de
“maturidade do público” que esta nobilíssima arte não atrai mais especta-dores!
Ao invés destas indignas e ruinosas experiências, os musicais ‘Wojtyla’,
‘Calcutá’, ‘Partimos, vamos, somos’, entre outros, foram experiências de grande
êxito, graças à beleza de uma empolgante mensagem de fé, de amor e de
esperança.
Consta que George Bernard Shaw ofereceu a Winston Churchill dois
convites, para a estreia de uma sua peça teatral: um para o primeiro-ministro,
e o outro para um amigo dele … ‘se o tiver’! Churchill agradeceu os bilhetes,
desculpou-se por não poder ir à estreia, mas disponibilizou-se para uma segunda
representação … ‘se houver’! Moral da história: é preferível que uma má peça
se fique pela estreia, do que o Estado subsidiar, com dinheiros públicos, peças
medíocres e deficitárias a que ninguém vai assistir e que desprestigiam o país.
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