Apenas uma aula de história
política, este artigo de António Covas sobre a União Europeia,
com propostas para o futuro, artigo que sempre servirá de consulta, na floresta
de acontecimentos e respectivos comentários que os comentadores políticos nos vão
trazendo, fragmentados, a compasso dos acontecimentos que pulsam aqui e ali ao sabor
das intenções que por vezes as impertinências específicas dos cataclismos ou das
emoções reivindicativas ou acusatórias de cada parceiro político podem fazer
ruir. Sempre bom para retocar memórias, confirmando ou não os eventos que a
futurologia política faz prever. E não esqueçamos, nos cataclismos, para além
de rebentamentos nucleares insanos, o problema da água e do aquecimento global,
anulatório das potencialidades, pelo menos cá entre nós, e tornando Mário
Centeno a mezinha milagrosa para a actual política financeira europeia, como já
o fora, ao que parece, no nosso país. E só nos falta, a nós portugueses,
rendermo-nos definitivamente ao ministro António Costa e crer, sim, que dele
nos vem a salvação, qual Senhora de Fátima nos tempos desastrosos da primeira
república, qual D. Sebastião nos tempos de Alcácer Quibir, qual Santa Isabel
rainha esmoler, qual Cristo nos tempos primeiros de um vitorioso Ourique. Há
sempre algo ou alguém que virá, envolto em nevoeiro, trazer a mensagem
necessária. Boa sorte para Mário Centeno.
A Geopolítica Europeia
para 2018
OBSERVADOR, 30/1/!8
A perceção, sobretudo
para os países do leste e em especial o grupo de Visegrado, é a de “uma teoria
dos clubes” ressentida como discriminatória, uma espécie de balcanização do
projecto europeu.
A periodização do passado
recente
De forma breve, a
construção europeia passou por quatro fases. A primeira fase entre
1947 e 1957 é a fase heroica, de inspiração federal, que culminou com a
construção da comunidade europeia do carvão e do aço (CECA) no início
dos anos cinquenta. A segunda fase entre 1957 (tratado de Roma) e 1989
(queda do muro de Berlim) é a fase da prosperidade económica, mas,
também, da guerra fria e do mundo bipolar. A terceira fase entre 1989 e
2005 (tratado constitucional) é a fase mais voluntarista e
neo-institucional, que concretiza o grande alargamento ao leste europeu, mas
que termina com o chumbo do tratado constitucional. A quarta fase entre
2005 e 2017 é a fase do tratado de Lisboa, da grande crise de 2008, das
primaveras árabes, da crise dos refugiados, dos programas de resgate e do
terrorismo internacional, uma acumulação de linhas de fratura que conduziu à
situação que hoje vivemos. Apesar da recuperação económica a União Europeia
está muito longe de ter entrado numa fase de bonança. Uma reforma do projeto europeu
continua na ordem do dia.
A última década
(2007-2017)
O passado recente da
política europeia pode ser sintetizado do seguinte modo: a “políty europeia”
data de 2007 com a assinatura do Tratado de Lisboa que fica
imediatamente desatualizada e refém da grande crise de 2007/2008; a “policy
europeia” seguiu em modo de emergência e adaptou-se às necessidades da
conjuntura, das políticas de austeridade aos programas de resgate. A
“politics europeia” foi capturada pelo “directório
intergovernamental” com a cumplicidade declarada da alta burocracia de Bruxelas
e Frankfurt; dessa cumplicidade nasceram instrumentos regulatórios “fora dos
tratados”, uma espécie de “algoritmo macroeconómico europeu” que consagrou na
última década as políticas de austeridade como “rule of law”. Refiro-me ao
pacto de estabilidade e crescimento revisto, ao tratado orçamental de
estabilidade, coordenação e governança, ao mecanismo europeu de estabilização,
ao semestre europeu e aos chamados Six e Two Packs que, em conjunto, constituem
uma “teoria geral da condicionalidade macroeconómica”, um autêntico algoritmo
europeu para disciplinar as políticas nacionais.
O estado da arte da
política europeia
Na política europeia
está em plena laboração um paradoxo deveras interessante. De um lado, a perda
de centralidade do Estado-nação e a sua incapacidade para reconfigurar a
sociedade, por outro lado, a radicalização populista da política doméstica que
recupera o Estado central como se estivessemos “órfãos de Estado”. A
história, a geografia e os territórios estão, pois, de regresso. A
política europeia não gosta da geopolítica, mas é o que aí vem. Nesta matéria,
o estado da arte da política europeia apresenta-se do seguinte modo: no norte
da Europa, Putin e a Rússia ensaiam o regresso à política das áreas de
influência do velho império soviético; a leste, o Grande Médio Oriente anuncia
uma intensificação do conflito xiita versus sunita para além da política turca
autoritária do Presidente Erdogan; a sul, mantêm-se os estados falhados do
mediterrâneo e a crise dos refugiados alarga-se até à região do Sahel e,
finalmente, para rematar esta “tragédia dos comuns” temos na fachada atlântica
as hesitações sobre o Brexit e os imponderáveis da Trumpolitics, de onde
sobressai a suspensão dos grandes tratados de comércio livre, de consequências
imprevisíveis para a economia internacional.
A primeira
constatação, com implicações para 2018, é imediata: a
União Europeia não tem política externa de segurança e defesa para uma agenda
tão sobrecarregada, e tanto mais quanto o Reino Unido e os EUA optarem por uma
“política de contenção” transatlântica mais distante e menos empenhada, se
quisermos, por uma “política transatlântica low cost, de baixa intensidade
geopolítica e geoestratégica”. Por outro lado, cresce o “núcleo iliberal” no
interior da União Europeia e pela primeira vez foi acionado o artigo 7º do
Tratado da União Europeia que condena um Estado membro por violação reiterada
de direitos e regras fundamentais do estado de direito democrático.
A segunda constatação
é o compasso de espera em que se encontra o anunciado impulso reformista da
política europeia: os “cinco cenários” de Jean
Claude Juncker já lá vão, as propostas de Emmanuel Macron aguardam melhores
dias, a Alemanha está sem governo desde Setembro de 2017, a Itália tem eleições
marcadas para Março de 2018, o Eurogrupo tem um novo presidente de origem
portuguesa, as próximas presidências do Conselho não morrem de amores pela
União Europeia (Bulgária e Áustria). Para rematar, em 2019 haverá eleições para
o Parlamento Europeu e uma nova Comissão Europeia será nomeada.
O caso particular das
relações transatlânticas e do Brexit
Esta política de “contenção
de baixo custo e baixa intensidade geopolítica” tem uma consequência
imediata, a saber, o reaparecimento de alguma animosidade regional ou mesmo
de alguns conflitos regionais entre parceiros ou vizinhos desavindos. A
relação triangular entre o Reino Unido, a Espanha e Portugal pode ilustrar esta
situação. Fora da União Europeia, o Reino Unido pode provocar algumas
fissuras na política ibérica por causa do regionalismo separatista, por causa
de Gibraltar ou por causa de alguma discriminação positiva face a Portugal e
negativa face a Espanha. Esta dupla atitude pode causar mal-estar nas relações
peninsulares. O mesmo se diga em relação os Açores e ao futuro da base das
Lajes no que diz respeito às nossas opções: se a contenção americana implicar
uma retirada ou um longo compasso de espera em relação aos Açores, qualquer
outra opção geoestratégica pode envolver uma reação intempestiva por parte do
antigo parceiro.
A contenção americana
em relação à NATO pode ter efeitos similares, não
apenas por fazer apelo a uma maior participação financeira dos parceiros, mas,
também, por implicar uma reconfiguração logística do sistema operacional e da
geografia das bases militares. Mais uma vez, esta implicação geoestratégica e
militar tem alguma delicadeza no que diz respeito às relações peninsulares e
tanto mais quanto a NATO for obrigada a acorrer a conflitos graves em outras
latitudes mais a norte e a leste. Quer dizer, é
elevado o risco de uma desvalorização do fator euro-atlântico e,
consequentemente, do sudoeste peninsular face a uma ameaça com origem em outro
ponto mais crítico da fronteira europeia. Esta desvalorização não deixará de
perturbar a relação peninsular.
Mas é no plano
comercial e financeiro que os equívocos podem surgir com mais gravidade e maior
impacto nas relações peninsulares. Como sabemos, o
tratado transatlântico de comércio e investimento (TTIP) tem na sua base um
acordo de parceria entre a União Europeia e os Estados Unidos. Os objetivos
deste acordo de comércio entre as duas margens do Atlântico são bem conhecidos:
acesso livre ao mercado pela redução de barreiras e custos alfandegários, a
harmonização de normas internacionais em matéria de ambiente, saúde, segurança
do trabalho, a convergência das práticas regulatórias, a resolução
extrajudicial dos conflitos de concorrência, entre outros. Nesta nova
geografia política e económica mundial a pequena península euroasiática da
Europa seria um território de destino e provavelmente um ator político de 2ª
ordem e a península ibérica uma “simples plataforma logística” de acesso ao
mercado europeu. Sobre o continente europeu desembocaria uma gigantesca
vaga “TTP e TTIP” de fluxos de comércio, pessoas e investimentos, uma espécie
de “segunda vaga da globalização” com consequências inimagináveis sobre o
tecido económico e empresarial da sociedade europeia. Ora, tudo isto
está posto em causa pela Trumpolitics e, neste contexto, mesmo o Brexit pode
estar profundamente contaminado, uma vez que o Reino Unido deixou de ser o
centro de uma relação saudável e mutuamente vantajosa.
Quanto ao Brexit, em
especial, estamos, ainda, numa fase da coreografia política enquanto se aguarda
pela formação do governo alemão. Os temas mais controversos, de
momento, são: a liberdade de circulação de pessoas, os direitos correspondentes
e a respetiva jurisdição, o montante do envelope financeiro que o Reino Unido
terá de pagar à União para cumprir as obrigações que lhe incubem como membro de
pleno direito, finalmente, a linha de fronteira entre as duas Irlandas e os
problemas geopolíticos daí decorrentes. Talvez o mais importante nesta fase
(janeiro de 2018) seja delimitar as consequências e os danos eventuais de
natureza geopolítica e geoestratégica que esta decisão sempre implica e que
aqui registamos:
O frágil equilíbrio
geopolítico pós-guerra fria, em especial na metade leste do continente europeu,
Os frágeis
equilíbrios internos com a emergência de regimes iliberais e de separatismos e
independentismo regionalistas,
Os delicados
equilíbrios da política euroasiática, do Médio Oriente à Ásia Central e a
reputação da União Europeia como ator global,
Os delicados
equilíbrios dentro da NATO com a política de contenção americana,
Os delicados
equilíbrios da política energética no próximo futuro no quadro das alterações
climáticas,
As consequências
imprevisíveis derivadas da suspensão dos grandes tratados internacionais de
comércio e desenvolvimento e a crise do multilateralismo.
A revisão da polity europeia
A conjuntura política
europeia não é favorável a grandes revisões dos tratados, isto é, a convenções
e conferências intergovernamentais (CIG). É,
porém, neste contexto que devem ser apreciadas as propostas de revisão de
Emmanuel Macron. O presidente francês fala da realização de convenções
nacionais para preparar a reforma dos tratados europeus e de um orçamento para
a zona euro, preparado e validado por um parlamento para a mesma zona e
conduzido por um ministro das finanças europeu. Estão em causa dois objectivos
maiores: atribuir legitimidade política democrática a uma assembleia
parlamentar da zona euro e dar um passo na direção de uma verdadeira política
orçamental que esteja em condições de interagir mais intensivamente com a
política monetária do BCE e, nessa medida, possuir uma política económica da
zona euro muito mais efetiva.
A revisão da polity
europeia justifica-se, em minha opinião, por duas razões fundamentais. A
primeira razão tem a ver com uma dimensão externa muito alargada e muito pesada
em termos orçamentais que tem fortes implicações na política interna europeia e
em particular na reconfiguração da UEM. Não creio ser possível assumir
esta pesada responsabilidade sem ser acompanhada pelo alargamento dos recursos
próprios (uma eventual tributação europeia), a mutualização
parcial das dívidas soberanas, a criação de um fundo monetário europeu e uma
revisão global dos instrumentos financeiros europeus de apoio ao investimento e
à cooperação internacionais.
A segunda razão tem a
ver com os efeitos externos negativos da “extra-territorialidade europeia” em
matéria fiscal e financeira que está a causar danos irreparáveis na
legitimidade e no prestígio políticos do projeto europeu.
Neste sentido, a criação de uma procuradoria europeia com uma ênfase especial
para a criminalidade financeira é um bom sinal, conjuntamente com nova
legislação europeia em matéria de offshores, de combate à evasão e fraude
fiscais e mais e melhor harmonização fiscal.
Numa perspetiva mais
substantiva, uma revisão da polity europeia poderá seguir vários
alinhamentos. Em primeiro lugar, a União entra convictamente num
período pré-federal ou pré-constituinte em busca de “um sentido de ordem” para
a sua segunda modernidade e aproxima-se, mais claramente, de um figurino
estadual de divisão tripartida de poderes. Em segundo lugar, a União
adota um modelo dual de diretório para a cooperação política com várias
“cooperações estruturadas permanentes”, por um lado, e de administração
regulatória, multi-agências altamente especializadas, de baixa densidade ou
dotação orçamental, no plano da “low politics”, por outro lado. Em terceiro
lugar, a União pode ainda enquistar-se, paulatinamente, numa governança
intergovernamental e internacionalista a várias velocidades, com estruturas e
procedimentos muito complexos, uma espécie de “2ª OCDE” mais
sofisticada, mas, crescentemente, absorvida por sucessivas operações de
contingência e urgência, que as linhas vermelhas da sua orla fronteiriça não
deixarão de suscitar.
De resto, a revisão
da polity europeia terá de aguardar a formação do diretório europeu, pois sem
governo alemão constituído não saberemos qual o rumo a seguir. Seja como for, a
União Europeia necessita urgentemente de aumentar a sua legitimidade politica e
institucional sob pena de se desacreditar completamente aos olhos dos cidadãos
europeus. Julgo que uma abordagem política pela via de um governo dos “comuns
europeus” podia ser útil e conveniente nesta fase do projeto europeu.
Retomando algumas propostas já conhecidas, deixo aqui a minha proposta para uma
3ª via unionista da construção europeia e para um governo dos “comuns
europeus”:
Uma procuradoria
europeia, sobretudo para a grande criminalidade financeira,
Um espaço público
democrático europeu através da criação de um Congresso Europeu ou, em
alternativa, de uma União Interparlamentar com participação dos parlamentos
nacionais,
Um mecanismo europeu
para os grandes riscos e o combate às alterações climáticas,
Uma nova arquitetura
para a zona euro: as funções do BCE, o orçamento da zona euro, o tesouro e o
ministro das finanças da zona euro,
Um mecanismo europeu
para a gestão das dívidas soberanas (a criação do fundo monetário europeu),
Uma nova arquitetura
para a Europa da Segurança e Defesa europeias, a chamada cooperação estruturada
europeia (CEP),
Um mecanismo europeu
para a promoção das redes de regiões e cidades europeias (há aqui uma grande
margem de crescimento mais distribuído),
Um mecanismo europeu
para a promoção da sociedade digital e a economia colaborativa (para prevenir
os danos do mercado único digital europeu),
Uma proposta europeia
para a revisão dos instrumentos de cooperação e desenvolvimento (os alicerces
de uma união para o mediterrâneo),
Uma proposta europeia
para a revisão global dos instrumentos de suporte financeiro da União (há uma
crescente proliferação de instrumentos).
Notas Finais
Seja qual for o rumo
escolhido, há dois riscos políticos de fraturação que valerá a pena
acautelar. O primeiro risco político reporta-se ao Brexit e ao que
poderíamos designar “a teoria do precedente”, isto é, a escolha deliberada de
uma linha de negociação apenas com o intuito de impedir ou condicionar novos
pedidos de saída. O segundo risco político relaciona-se com a teoria da
“Europa a várias velocidades ou círculos concêntricos”, no que diz respeito,
por exemplo, ao mercado único, moeda única, segurança e defesa e imigração.
A perceção imediata, sobretudo para os países do leste europeu e em especial o
grupo de Visegrado, é a de “uma teoria dos clubes” ressentida por
eles como discriminatória, uma espécie de balcanização do projeto europeu.
Por isso, seria preferível uma via de “integração diferenciada e inclusiva” de o
ritmo e a vontade própria de cada Estado-membro. A proposta de um orçamento
para a zona euro deve acautelar, também, esta eventualidade.
No plano
jurídico-formal, entre uma abordagem de refundação do projeto europeu, à
maneira de Macron, e uma abordagem minimalista ou conservadora do mesmo
projeto, à maneira de Merkel, é conveniente, nesta conjuntura,
que sejam aproveitados os instrumentos dos próprios tratados europeus, a saber,
a revisão simplificada do artigo 48º, nº2, do TUE e as cooperações
reforçadas dos artigos 20º e 42º a 46º do TUE e os artigos 326º a 334º do TFUE,
já para não referir os acordos intergovernamentais realizados fora dos tratados
e que têm sido uma prática constante ao longo dos últimos anos. Por exemplo, as
convenções nacionais sugeridas por Macron poderiam conduzir à proposta de um
“Ato Único Europeu” e limitar, justamente, tantos acordos intergovernamentais
realizados fora dos tratados.
Finalmente, a
mobilização, pela primeira vez, dos artigos 50º (saída de um estado-membro) e
7º (violação de valores fundamentais do estado de direito democrático) do
Tratado de União Europeia será verdadeiramente uma marca impressiva da
geopolítica europeia do ano de 2018 de consequências imprevisíveis. Esperemos
que prevaleça o bom senso nos dois casos e que cheguemos a 2019 em boas
condições para realizar serenamente as eleições para o Parlamento Europeu e a
transição para uma nova Comissão Europeia.
Professor
da Universidade do Algarve
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