quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Onde é que eu já ouvi isto?



Foi no meu estágio cá, quando vim recambiada duma das colónias. Eu dera sempre razoável conta de mim, como professora, as explicações que aí dava de línguas e literaturas portuguesa e francesa, faziam que melhor associasse as escolas literárias, em cujos autores me aventurava com cada vez mais empenhamento, que já os tempos do liceu e da faculdade possibilitavam, frequentadora assídua que era das respectivas bibliotecas.
Dediquei-me no estágio, com afinco, a entender as novas metodologias que marginalizavam bastante o professor, na insistência sobre essas baboseiras do “aprender a aprender”, objectivo primordial do ensino, ou do “todos os saberes se equivalem” que destacavam a participação do aluno em perguntas da sua “criatividade”, segundo se pretendia - as mais das vezes da sua inanidade na minha opinião reaccionária, empenhada, acima de tudo, em difundir as luzes do meu saber, parco que fosse, mas passível de colher, mais esclarecidamente, as respostas àquilo que me impunham os programas das disciplinas – de português e francês especificamente – na convicção de que os alunos melhor poderiam ser motivados para uma participação de reflexão e autenticidade com os esclarecimentos adequados, a criatividade ou o engenho só podendo provir do “honesto estudo” e não do blablabla oco, se não impertinente. Fui maltratada no estágio, a nota de curso reduzida em força, mas não desisti, por ter uma vasta família a meu cargo, e necessitava a todo o custo de reiniciar uma carreira sob a garantia de um Estado que, sem esse estágio, me reduziria a uma condição de maior precariedade económica.
Em apoio dos sábios argumentos de NUNO CRATO, sobre a vacuidade dessas propostas pedagógicas, que já vão parecendo cediças, afinal, ou definitivamente destruidoras do bom senso, se não cada vez mais impulsionadoras do “saber safar-se por conta do padrinho” – eu diria antipedagógicas e aviltantes da racionalidade humana - não quero deixar de exemplificar uma dessas aulas vazias, onde se destacava a “modéstia” (nada humilde) da professora, quase sempre silenciosa e apagada – apesar da sua localização fronteira, de pé, no estrado que ainda não fora retirado, e que mais a elevava, impondo-se no seu prestígio de orientadora - tal como a Lenkazinha do programa do Fernando Mendes, discreta mas extremamente sedutora, mesmo sem estrado, e consciente do seu glamour.
Trata-se de um texto de “Anuário – Memórias Soltas” (1999):
«Leitura Silenciosa»
Aula de Francês do 2º Complementar diurno – ex-sétimo ano do liceu, actual décimo primeiro do Ensino Secundário – lecionada pela orientadora de estágio, para esclarecimento dos seis professores em estágio, sentados ao fundo, a tomar notas. Ano de 1976. A orientadora veio de saco cheio – quatro ou cinco dicionários unilingues de francês, que distribuiu por quatro ou cinco alunos na turma.
Trata-se de uma aula de leitura de obra integral - “Lettres de mon Moulin” – do Alphonse Daudet, que também já estudara nos meus tempos de liceu, pois as conquistas do 25 de Abril ainda não atingiram os sectores do ensino quanto às leituras integrais e de resto esta obra é muito bela e não merece ser posta de lado.
Aula de leitura silenciosa, interrompida de quando em quando por um braço no ar e uma tímida interpelação de aluno mais consciencioso, emperrado num qualquer vocábulo menos conhecido.
Logo pára a leitura silenciosa e se erguem as cabeças, para, imediatamente, um dos alunos manipuladores do dicionário rebuscar, neste, o sentido do termo desconhecido, transcrito logo a seguir no quadro pela professora, inocentemente esquecida dos alunos que já teriam ultrapassado o vocábulo e dos que o não teriam ainda atingido.
De novo as cabeças baixam sobre a obra em estudo, de novo todas sobem na sequência de mais um braço erguido numa interrupção de ignorância vocabular, desta feita colmatada por outro manejador do dicionário, e seguida da transcrição no quadro pela professora, indiferente aos ritmos de leitura.
Os dicionários vão passando de mão em mão, para que todos – ou a maioria – tenham a oportunidade de aprender a usá-lo, e de se enriquecerem assim na prática dos manejos.
Os seis estagiários acompanham interessados o movimento oscilatório das cabeças - ora de descida, após a escrita no quadro, ora de subida, após a erguida de um braço - analisam o grau de concentração pelo silêncio de obediência e respeito às estratégias propostas – leitura silenciosa, aprendizagem de consulta do dicionário.
Trata-se do conto da cabrinha Blanquette que não sobreviveu à sua travessura de fuga estouvada do bom trato caseiro para a liberdade da montanha, apesar da luta valente com o lobo mau.
A contingência da falta de elasticidade do tempo não permite que a leitura do conto chegue ao fim – aliás não se chegou a testar se algum aluno avesso a leituras, quer nacionais quer estrangeiras, não tenha passado do seu princípio.
Com efeito, as próprias linhas gerais do conto não puderam ser decifradas nesta aula devido, à mesma contingência temporal, mas com boa vontade, há sempre uma aula seguinte. Nesta, o que contou principalmente foram os movimentos oscilatórios das cabeças para baixo e para cima na sequência das dinâmicas já apontadas, e a consulta dos dicionários que, como alunos de responsabilidade etária, calculava que já dominariam, mas não tenho bem a certeza e a orientadora de estágio também não a devia ter, pois veio de saco cheio de dicionários para os ensinar. Porém isso não foi necessário.
Senti muita frustração, pois achava que fora uma aula perdida, mas a orientadora ficou satisfeita com ela, como referiu em reunião posterior, pontuando a questão da humildade docente, a não saliência do professor, o espírito de fraternidade e companheirismo apenas orientador nas dúvidas, com a colaboração – se possível – dos alunos, como, neste caso, dos manipuladores dos dicionários.
Senti muita surpresa, pois achava que os alunos não podiam ter dúvidas daquilo que, à partida, desconheciam, e que, por conseguinte, se deveria transmitir antes de se poder colher, como nas searas. Mas essa posição só comprova a minha ignorância de estratégias e a minha ausência de humildade e de companheirismo, para mais com vocação preferencial para o fenómeno agrícola, implícita na minha anterior figura de retórica.
O professor posto ao nível dos seus alunos, eis a grande conquista na educação no pós-25 de abril. Para isso se retiraram das salas de aulas a maioria dos estrados, para que aquele não tenha intenções desniveladoras, estratégia que, de resto, já o rei Artur aplicara mas que nem mesmo Cristo, temos de reconhecer, conhecia ainda nas suas ceias de pão e vinho.
A humildade, a modéstia, sempre foram virtudes muito bonitas, até decretadas na doutrina cristã, e fora das salas de aula não há muita ocasião de as comprovarmos, mesmo na plena democracia em que vivemos. Por isso devem aí ser difundidas, quanto mais não seja para prestígio da classe docente que ascenderá, deste modo, à categoria beatificante de mártir dos novos tempos, pois os alunos não se eximirão a aproveitar bem o seu estatuto de igualdade social com o seu professor, para o tratarem em camaradagem livre de preconceito.
Nem sempre isso sucede, porém. Creio que depende um pouco do magnetismo do professor.
Nesta aula, pelo menos, não sucedeu, que a professora não admite leviandades e com a leitura silenciosa não deu mesmo oportunidade a quaisquer veleidades de rebeldia ou mesmo às tosses da época hibernal, manietados como ficaram os alunos ao livro que tinham na carteira e aos movimentos oscilatórios das suas cabeças, sob o olhar coruscantemente sorridente da professora, imóvel aquando das cabeças para baixo, mais flexível, conquanto discretamente, aquando das cabeças para cima, para designação do consultor lexical e para transcrição pessoal no quadro – talvez para não pôr em causa o desconhecimento possível da escrita de outros alunos colaboradores, o que provocaria uma inoportuna perturbação na disciplina e na demonstração.
Contudo, acho que assim daria uma prova de mais cabal humildade e isso não aconteceu porque a sua figura, elegantemente enigmática e sempre de pé e fronteira, é que se destacou durante a aula, quer enquanto designava os leitores dos dicionários, sempre sentados, quer enquanto escrevia no quadro os significados que aqueles afanosamente tentavam ali pescar.
Continuo perturbada, passados todos estes vinte anos, sem saber como proceder nestes casos.
Pode-se ‘aprender a aprender’ sem aprender coisa alguma?
NUNO CRATO                   OBSERVADOR, 27/2/2018
A partir de experiências clássicas desenvolvidas nas últimas décadas, a psicologia cognitiva concluiu que as capacidades não podem ser adquiridas independentemente das matérias concretas estudadas.
Por ocasião do seu doutoramento honoris causa na Universidade de Lisboa, António Guterres fez um discurso que teve grande eco na imprensa. Mas entre aquilo que foi destacado nas notícias e nos títulos apareceram afirmações sobre educação que julgo deverem ser lidas com algum sentido crítico. Disse, por exemplo, que “o que fundamentalmente hoje interessa nas universidades e no sistema educativo não é tanto o tipo de coisas que aí se aprende, mas a possibilidade de aí se aprender a aprender”.
Será que isto se pode dizer, e de forma tão geral? Na realidade, o “tipo de coisas que se aprendem” tem a sua importância. Muita importância!
Gostaria algum de nós de ser tratado por um médico que, na universidade, tivesse aprendido Literatura Germânica, não tivesse prestado grande atenção à Anatomia nem à Histologia, mas que tivesse sido fantástico a “aprender a aprender”? Gostaria algum de nós de andar num avião mantido por uma equipa de mecânicos que, na sua escola de formação técnica, tivessem estudado Anatomia Patológica, nada sobre motores nem sobre aeronáutica, mas que fossem extraordinários a “aprender a aprender”?
Exagero? Pensemos na mensagem que, no limite, se está a transmitir aos estudantes: aprendam a aprender, não interessa tanto o que aprendem. Não parece uma mensagem feliz.
Mais à frente, Guterres afirmou que tem netas com menos de dez anos e disse que “o seu êxito dependerá essencialmente das oportunidades de educação que vão ter, da capacidade que lhes derem para serem capazes de se adaptar à mudança, de desenvolver novas formas de intervenção na sociedade, novas atividades profissionais.”
Julgo que todos estamos de acordo. Mas em seguida acrescentou: “seguramente, os conteúdos concretos que vão ter na escola vão estar completamente ultrapassados quando exercerem as suas atividades profissionais ou outras formas de intervenção na sociedade.”
Ser-me-á permitido discordar? Façamos então um pequeno exercício mental: pensemos no que aprendemos na escola (no meu caso há várias décadas…), ou pensemos no que hoje se aprende: aritmética, geometria, história de Portugal, história mundial, português, inglês, geografia, ciências, etc., etc. De tudo isto, qual é a fração que será ultrapassada? 99%? 50%? 10%? Eu arriscaria dizer que, mesmo que 50% estivessem ultrapassados, valeria a pena ter estudado para saber os outros 50%. Mas arrisco mais: direi que talvez apenas 1% do conhecimento que adquirimos na escola estará ultrapassado; “completamente ultrapassado”, talvez nem metade disso.
Repito: não devemos passar nenhuma mensagem de desprezo pelos “conteúdos concretos”.
Vou citar Larry Sanger, fundador da Wikipedia, certamente alguém à frente do seu tempo: “as capacidades específicas necessárias para o mundo do trabalho eram, e em larga medida continuam a ser, aprendidas no próprio emprego. Então vejamos, o que terá sido para mim mais útil aprender em 1985, quando tinha 17 anos: todos os processos e truques do WordPerfect [processador de texto então em voga] e do BASIC [linguagem de programação muito usada na altura] ou a História dos Estados Unidos? Não há que haver dúvidas: o que aprendi sobre história mantém-se aproximadamente o mesmo, sujeito a algumas correções; as competências de WordPerfect e de BASIC deixaram de ser necessárias”.
A conclusão é simples: há matérias – “conteúdos concretos” – que perduram. E quanto mais universais e mais antigas mais deverão perdurar. Ou seja, quando eu tiver a sorte de ter netos, que espero vir a ter, vou dizer-lhes “aprendam matemática, aprendam história, aprendam geografia, aprendam literatura, aprendam línguas, pois esses conteúdos concretos não vão estar ultrapassados quando exercerem as vossas atividades profissionais ou outras formas de intervenção na sociedade”.
Mas o problema é muito mais vasto. Prometo a mim mesmo uma outra crónica para breve. Adianto apenas dois resultados científicos sobre a aprendizagem.
Primeiro. Não existe capacidade sem conhecimento específico, ou seja, as ditas “competências gerais” são essencialmente uma invenção. Por exemplo, para a leitura crítica de um texto é essencial ter um vocabulário rico, conhecer o tema discutido – política? história? ciência? arte? – e beneficiar de conhecimento de textos semelhantes ou sobre temas semelhantes. Como diz o educador norte-americano E. D. Hirsch, “a capacidade de leitura, de comunicação, de leitura crítica e tudo o mais são intrinsecamente conhecimento específico. Mais ainda: se tivermos conhecimento do tema em causa e nos faltar apenas a proficiência técnica, teremos mesmo assim um desempenho melhor (na análise do texto e na sua crítica) do que alguém proficiente, mas a quem falte o conhecimento relevante.”
Segundo. A partir de uma série de experiências clássicas iniciadas nos anos 40 do século passado e desenvolvidas nas últimas décadas, a psicologia cognitiva concluiu que as capacidades não podem ser adquiridas independentemente das matérias concretas estudadas. O pensamento crítico, o “aprender a aprender”, a capacidade de análise lógica, não existem independentemente dos “conteúdos concretos”. Como explica o cientista cognitivo Daniel T. Willingham, “o pensamento crítico (tal como o pensamento científico e outro pensamento específico) não é uma capacidade. Não há um conjunto de capacidades de pensamento crítico que possam ser adquiridas e utilizadas independentemente da sua aplicação.”
Conclusão: ‘aprender a aprender’ em vez de aprender, é o caminho direto para nada aprender, nem sequer ‘aprender a aprender’.

ALGUNS COMENTÁRIOS “PRÓ”
João Junqueira
Sou politicamente de esquerda, mas os meus parabéns ao Nuno Crato. Dizia Einstein que só no dicionário é que o Sucesso vem antes do Trabalho. Infelizmente agora toda a gente quer aprender brincando. Perguntem aos melhores alunos de cada ano no Ensino Secundário e aos melhores profissionais em cada área se aprenderam brincando ou trabalhando. Aprender brincando é uma utopia, é como ser campeão olímpico brincando. Tontos...
Amora Bruegas
Bom artigo, com substrato..., pena que as cabeças do facilitismo, da bandalheira escolar, não irão compreender este texto!
maria costa      à josé maria (que condena NC)
Espírito crítico e reflexão sem conhecimentos básicos? Espírito crítico e reflexão sobre o quê?
É como tirar sumo de um limão seco - não se tira!
João Lemos
Pelo amor da santa! Ninguém aprende matemática sem conhecer os algarismos. Ninguém aprende anatomia sem saber os nomes dos órgãos. A capacidade de o cérebro raciocinar é inata, mas se não puserem lá dados ele vai raciocinar sobre o quê?
Sandra Varela
Além do meu reconhecimento pelo Professor Nuno Crato, tenho também uma admiração imensa pelo Engenheiro António Guterres, que ia dar explicações de matemática grátis a alunos do Bairro da Quinta do Mocho, inseridos num contexto social nem sempre propício a quem valoriza o aprender. Pois, nunca o ouvi gabar-se disso, mas ia, duas vezes por semana, dar aulas aos alunos de 12°, ajudá-los a prepararem-se para os exames. Nesse aspecto também daria, como não poderia deixar de ser, importância às matérias de facto importantes. Um muito obrigada aos dois.


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