segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Memória 2


Eis o texto da minha filha Paula, lido depois da segunda intervenção – a da Isabel Teixeira, feita logo após a gentil apresentação do representante da Chiado Editora -  Luís Raimundo:
-  Um texto sóbrio e sensível, de elegância expositiva, como eu esperava da Paula, de uma presença atenta e responsável nas facetas múltiplas da sua participação na vida, de que não é menor a da sua expressão literária:
Apresentação (Paula)
Comecemos pelo fim, que é uma forma, como qualquer outra, de começar!
A ideia veio caminhando lentamente, ao longo do tempo e, antes que o Tempo abrisse com o Amor as asas ao vento, e tudo dissipasse, urgia segurá-la.
Espalhadas pelo blog PorAmaisB, as fábulas antigas aqui presentes, espreitando o nosso país em convulsão interna, acenavam, em alegre apelo e com leveza, o seu valor pedagógico e literário.
Quando o desejo surgiu, de publicar, sugeri que do blog nascesse esta “Permanência”. Para ficar, ligando passado, presente e futuro, porque de uma árvore de sentidos se trata e de um caldeirão de histórias, à sua sombra, em que apetece mergulhar. Uma árvore cheia de frutos e de uma sombra produtiva, contrária aos reflexos e ilusões, nas fábulas onde se corre loucamente para o nada e, pela aparência, se perde a realidade, como diz João de Deus na sua versão de “O Cão e a Presa”.
Não se constitui este livro apenas como um trabalho de tradução (Esopo, La Fontaine, Fedro, Florian, Du Bellay) ou esporádica transcrição de outras vozes (Sá de Miranda, Bocage, João de Deus, Gil Vicente), o que, só por si seria já um ato meritório. O dia a dia nele inscrito flui, cronologicamente, entre dezembro de 2009 e dezembro de 2015, em atividade mais constante até 2012 e menos assídua depois, e constrói o desenho de Portugal entre essas duas datas: tempo de atribulações políticas, de alterações no poder, abandonos, desgaste e perda, da dependência instalada do exterior, da agitação social vivida nesses seis anos, da mudança posterior (em 2015), que encerra o ciclo das fábulas e se encontra visível na última fábula do livro “O Burro condutor de Relíquias”, nas expressões alheias de divertido repúdio – “Minha nossa!” / “Isto só visto!”: adivinhem de quem se trata!
As fábulas ligam-se a provérbios, sentenças populares, a ditados, nas lições que oferecem (alguns destes surgem mesmo aqui renovados – “de bons amigos está o Inferno cheio”, “amigos da Lebre”, “silêncio de lata”), todos lançando regras de irrepreensível comportamento moral que visam uma maior harmonia nas relações humanas, pela criação de uma situação - exemplo alegórica. Com raízes na Natureza, em todos os seus Reinos, somos transferidos para um universo em que os defeitos se podem diluir, pela lição da metáfora; em que o Bem se sobrepõe e germina a virtude, em que o Amor ajuda os homens a traçar o caminho da Perfeição.
Pinceladas de amor à Natureza, princípio de respeito ecológico surgem já na Antiguidade, ganhando maior relevo e sentido neste presente em que o nosso planeta constantemente nos revela, em queixas e avisos, os excessos contra ele praticados. Na fábula “A Floresta e o Lenhador”, este conceito mistura-se mesmo com o do oportunismo e traição contra quem nos envolve e tão bem protege, nos dá a vida, mas acaba por nos fornecer a matéria-prima para os instrumentos com que tão ingratamente a destruímos. Também a dor da Águia é mais comovente ao ser atingida pela seta do Caçador feita das suas próprias penas.
Saltam-nos ao caminho toda a espécie de animais, símbolos personificantes: pavões, gaios, rãs, lobos e cabritos espertalhões, cães e galos, as raposas; o castor sábio que compreende que não temos outra vida, o milhafre e a gaivota; a serpente, dividida entre a cauda e a cabeça, em simbologia de governação que tudo no universo, afinal, espelha, quer nos sóis e seus satélites, quer na rainha mestra dos enxames e as suas obreiras; o leão, a andorinha e os pardais e os mitos clássicos da transformação humana para rouxinol e andorinha, reproduzido com graça no jogo fónico e no encadeamento de outras histórias de mitos em que a crueldade feminina vingativa serviram de referência; ratos e elefantes; o gato, o morcego astuto; doninhas, coelhos e lebres; o carneiro ramalhudo, ovelhas; grilos e borboletas, moscas e um ouriço; os macacos; um atum e um golfinho; corvos imitando águias, a hiena, veados doentes, pegas e pombas, caranguejos e peixes, machos, mulas, e finalmente o burro.
Espelham lutas e vaidades: a beleza do pavão dilui-se perante a argumentação sábia do gaio que lhe critica a ausência de poder e sabedoria, embora este último passe também por situações que o desvalorizam, no mundo destas fábulas; a arrogância da rã explode, minada pela sua incapacidade física [33]; a maior parte das vezes o temível lobo cai na esparrela de quem se mostra mais esperto do que ele: contudo também é ele que, confrontado com uma vida farta e sossegada, sem sobressaltos, mas feita de correntes e lisonja, prefere a liberdade dos campos.
E muitos outros comportamentos se sucedem: atos de resignação contra ambições várias (“Perdiz entre Galos” [20], “O Sapateiro e o Financeiro” [24], “Os dois Machos” [65], “O Castor” [67], “O Grilo e a Borboleta” [117]); aduladores com as suas manhas e oferendas; abelhas que nos dão lições de política; a exaltação do esforço, do trabalho, da amizade, da partilha, da sabedoria [98], da nossa responsabilidade em cada pequeno ato da existência (“O Mar e o Náufrago”); a ingenuidade de algumas figuras poderosas contra a argúcia de quem sente que lhes vai cair nas malhas (“O Cabrito e o Lobo que tocava flauta” [68], “O Cão, o Galo e a Raposa” [74]); uma Fortuna que nos dá lições de conduta perante acusações irresponsáveis que sempre lhe são dirigidas quando nos encontramos “à beira do poço” [76]; mudanças de estatuto social para melhor, que não corrigem, obrigatoriamente, quem delas desfruta (“Zeus e a Raposa” [79]); ou, em contrapartida, os papéis pesados de alguns que, porque mais carregam, mais comem e a tal têm direito (“O Burro e a Mula” [81]); o peso da relatividade da nossa frágil natureza (a lebre filósofa que se confronta com os seus medos, em “As Rãs e a Lebre” [93], o Burro teimoso que embica para o abismo [101] ou as constatações do Grilo perante o talento e a beleza da Borboleta [117]); discussões sobre o meu e o teu [86], lutas entre riqueza e ciência, caudas e cabeças, a fome e a arte [141] – “estou em jejum e vens falar-me de música?”, “ventre esfomeado não tem orelhas”, diz o milhafre ao rouxinol antes de o devorar; opõem-se verdade e mentira, através de máscaras e embustes [146], a palavra e o silêncio… Constatamos perseguições; justificações que acabam por convencer o próprio inimigo que nos espreita, perigoso, e nos mostram o valor de uma boa capacidade de argumentação; passos à frente e recuos prudentes (“O Cão atrás do Leão”); retratos de subserviência e fingimento; a agonia de quem tudo quer e tudo perde (“Atum e Golfinho” [133], “O Corvo que quis imitar a Águia” [137]); a festa dos animais saudáveis à custa dos que estão doentes (“ O Veado Doente” [138]); a capa de suavidade com que se instala a ambiguidade, em duplicidades de carácter e comportamento (“A Hiena e a Raposa” [143]); tentativas de sobrevivência, momentos de enganosa fantasia, todo um mundo de negociatas, charlatanice, maus tratos e desconsiderações, no final, através de figuras humanas animalizadas, nos conduz, mais uma vez, à situação de um país em convulsão, que discute imobilidades e mudanças, inscrito que está num mundo em que a adversidade naturalmente sempre espreita o que acontece. Mas onde o tecido de textos sonha progresso moral superior.
É um Portugal real que se ergue assim, nos caminhos deste Fabulário, por semelhança ou pela diferença, criando novas morais, em demonstrações e conselhos trágicos, mas sempre cómicos, que fazem rir e dão que pensar.
Apesar, contudo, do carácter específico que a preocupação faz canalizar para o país em particular, o livro visa igualmente, tais como as fábulas alheias de que partiu, o homem de todos os quadrantes, contendo, pois, a dose de universalidade específica do género humano - os exemplos da especificidade de um país, constituído por homens e mulheres, facilmente cabendo na tessitura da massa humana de outro qualquer país, pesem embora diferenças de educações e de qualidade económica, responsável esta, a maioria das vezes, por aquelas.
Mas é um livro de um humor facilmente perceptível, num discurso de preferência argumentativo, por vezes refutador dos próprios conceitos fabulísticos, e onde a simplicidade formal joga com os efeitos fónicos do próprio ritmo frásico, deslizando em jeito de travessa ironia.
E porque “quem canta morre de fome”, de que é exemplo típico a Cigarra de La Fontaine, para nos cingirmos ao narrado neste livro, e quem não o faz estala de fartura, como nos diz a fábula alimentícia de Miguel Torga, explorando o mesmo assunto na sua “Fábula da Fábula” – e enquanto os Burros transportam as suas relíquias, queimemos incenso com o refrão da canção de Pedro Barroso e cantemos o Hino da Criação:

«Viva quem canta,
Que quem canta é quem diz,
quem diz o que vai no peito

no peito vai-me um país.»

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