Eis o texto da minha filha Paula,
lido depois da segunda intervenção – a da Isabel Teixeira, feita logo
após a gentil apresentação do representante da Chiado Editora - Luís Raimundo:
- Um texto sóbrio e sensível, de elegância
expositiva, como eu esperava da Paula, de uma presença atenta e responsável nas
facetas múltiplas da sua participação na vida, de que não é menor a da sua
expressão literária:
Apresentação (Paula)
Comecemos pelo fim, que é
uma forma, como qualquer outra, de começar!
A ideia veio caminhando
lentamente, ao longo do tempo e, antes que o Tempo abrisse com o Amor as asas
ao vento, e tudo dissipasse, urgia segurá-la.
Espalhadas pelo blog
PorAmaisB, as fábulas antigas aqui presentes, espreitando o nosso país em
convulsão interna, acenavam, em alegre apelo e com leveza, o seu valor
pedagógico e literário.
Quando o desejo surgiu, de
publicar, sugeri que do blog nascesse esta “Permanência”. Para ficar, ligando
passado, presente e futuro, porque de uma árvore de sentidos se trata e de um
caldeirão de histórias, à sua sombra, em que apetece mergulhar. Uma árvore
cheia de frutos e de uma sombra produtiva, contrária aos reflexos e ilusões,
nas fábulas onde se corre loucamente para o nada e, pela aparência, se perde a
realidade, como diz João de Deus na sua versão de “O Cão e a Presa”.
Não se constitui este livro
apenas como um trabalho de tradução (Esopo, La Fontaine, Fedro, Florian, Du
Bellay) ou esporádica transcrição de outras vozes (Sá de Miranda, Bocage, João
de Deus, Gil Vicente), o que, só por si seria já um ato meritório. O dia a dia
nele inscrito flui, cronologicamente, entre dezembro de 2009 e dezembro de
2015, em atividade mais constante até 2012 e menos assídua depois, e constrói o
desenho de Portugal entre essas duas datas: tempo de atribulações políticas, de
alterações no poder, abandonos, desgaste e perda, da dependência instalada do
exterior, da agitação social vivida nesses seis anos, da mudança posterior (em
2015), que encerra o ciclo das fábulas e se encontra visível na última fábula
do livro “O Burro condutor de Relíquias”, nas expressões alheias de divertido
repúdio – “Minha nossa!” / “Isto só visto!”: adivinhem de quem se trata!
As fábulas ligam-se a
provérbios, sentenças populares, a ditados, nas lições que oferecem (alguns
destes surgem mesmo aqui renovados – “de bons amigos está o Inferno cheio”,
“amigos da Lebre”, “silêncio de lata”), todos lançando regras de irrepreensível
comportamento moral que visam uma maior harmonia nas relações humanas, pela
criação de uma situação - exemplo alegórica. Com raízes na Natureza, em todos
os seus Reinos, somos transferidos para um universo em que os defeitos se podem
diluir, pela lição da metáfora; em que o Bem se sobrepõe e germina a virtude,
em que o Amor ajuda os homens a traçar o caminho da Perfeição.
Pinceladas de amor à
Natureza, princípio de respeito ecológico surgem já na Antiguidade, ganhando
maior relevo e sentido neste presente em que o nosso planeta constantemente nos
revela, em queixas e avisos, os excessos contra ele praticados. Na fábula “A
Floresta e o Lenhador”, este conceito mistura-se mesmo com o do oportunismo e
traição contra quem nos envolve e tão bem protege, nos dá a vida, mas acaba por
nos fornecer a matéria-prima para os instrumentos com que tão ingratamente a destruímos.
Também a dor da Águia é mais comovente ao ser atingida pela seta do Caçador
feita das suas próprias penas.
Saltam-nos ao caminho toda
a espécie de animais, símbolos personificantes: pavões, gaios, rãs, lobos e
cabritos espertalhões, cães e galos, as raposas; o castor sábio que compreende
que não temos outra vida, o milhafre e a gaivota; a serpente, dividida entre a
cauda e a cabeça, em simbologia de governação que tudo no universo, afinal,
espelha, quer nos sóis e seus satélites, quer na rainha mestra dos enxames e as
suas obreiras; o leão, a andorinha e os pardais e os mitos clássicos da transformação
humana para rouxinol e andorinha, reproduzido com graça no jogo fónico e no
encadeamento de outras histórias de mitos em que a crueldade feminina vingativa
serviram de referência; ratos e elefantes; o gato, o morcego astuto; doninhas,
coelhos e lebres; o carneiro ramalhudo, ovelhas; grilos e borboletas, moscas e
um ouriço; os macacos; um atum e um golfinho; corvos imitando águias, a hiena,
veados doentes, pegas e pombas, caranguejos e peixes, machos, mulas, e
finalmente o burro.
Espelham lutas e vaidades:
a beleza do pavão dilui-se perante a argumentação sábia do gaio que lhe critica
a ausência de poder e sabedoria, embora este último passe também por situações
que o desvalorizam, no mundo destas fábulas; a arrogância da rã explode, minada
pela sua incapacidade física [33]; a maior parte das vezes o temível lobo cai
na esparrela de quem se mostra mais esperto do que ele: contudo também é ele
que, confrontado com uma vida farta e sossegada, sem sobressaltos, mas feita de
correntes e lisonja, prefere a liberdade dos campos.
E muitos outros
comportamentos se sucedem: atos de resignação contra ambições várias (“Perdiz
entre Galos” [20], “O Sapateiro e o Financeiro” [24], “Os dois Machos” [65], “O
Castor” [67], “O Grilo e a Borboleta” [117]); aduladores com as suas manhas e
oferendas; abelhas que nos dão lições de política; a exaltação do esforço, do
trabalho, da amizade, da partilha, da sabedoria [98], da nossa responsabilidade
em cada pequeno ato da existência (“O Mar e o Náufrago”); a ingenuidade de
algumas figuras poderosas contra a argúcia de quem sente que lhes vai cair nas malhas
(“O Cabrito e o Lobo que tocava flauta” [68], “O Cão, o Galo e a Raposa” [74]);
uma Fortuna que nos dá lições de conduta perante acusações irresponsáveis que
sempre lhe são dirigidas quando nos encontramos “à beira do poço” [76];
mudanças de estatuto social para melhor, que não corrigem, obrigatoriamente,
quem delas desfruta (“Zeus e a Raposa” [79]); ou, em contrapartida, os papéis
pesados de alguns que, porque mais carregam, mais comem e a tal têm direito (“O
Burro e a Mula” [81]); o peso da relatividade da nossa frágil natureza (a lebre
filósofa que se confronta com os seus medos, em “As Rãs e a Lebre” [93], o
Burro teimoso que embica para o abismo [101] ou as constatações do Grilo
perante o talento e a beleza da Borboleta [117]); discussões sobre o meu e o
teu [86], lutas entre riqueza e ciência, caudas e cabeças, a fome e a arte
[141] – “estou em jejum e vens falar-me de música?”, “ventre esfomeado não tem
orelhas”, diz o milhafre ao rouxinol antes de o devorar; opõem-se verdade e
mentira, através de máscaras e embustes [146], a palavra e o silêncio…
Constatamos perseguições; justificações que acabam por convencer o próprio
inimigo que nos espreita, perigoso, e nos mostram o valor de uma boa capacidade
de argumentação; passos à frente e recuos prudentes (“O Cão atrás do Leão”);
retratos de subserviência e fingimento; a agonia de quem tudo quer e tudo perde
(“Atum e Golfinho” [133], “O Corvo que quis imitar a Águia” [137]); a festa dos
animais saudáveis à custa dos que estão doentes (“ O Veado Doente” [138]); a
capa de suavidade com que se instala a ambiguidade, em duplicidades de carácter
e comportamento (“A Hiena e a Raposa” [143]); tentativas de sobrevivência,
momentos de enganosa fantasia, todo um mundo de negociatas, charlatanice, maus
tratos e desconsiderações, no final, através de figuras humanas animalizadas,
nos conduz, mais uma vez, à situação de um país em convulsão, que discute
imobilidades e mudanças, inscrito que está num mundo em que a adversidade naturalmente
sempre espreita o que acontece. Mas onde o tecido de textos sonha progresso
moral superior.
É um Portugal real que se
ergue assim, nos caminhos deste Fabulário, por semelhança ou pela diferença,
criando novas morais, em demonstrações e conselhos trágicos, mas sempre
cómicos, que fazem rir e dão que pensar.
Apesar, contudo, do
carácter específico que a preocupação faz canalizar para o país em particular,
o livro visa igualmente, tais como as fábulas alheias de que partiu, o homem de
todos os quadrantes, contendo, pois, a dose de universalidade específica do
género humano - os exemplos da especificidade de um país, constituído por
homens e mulheres, facilmente cabendo na tessitura da massa humana de outro
qualquer país, pesem embora diferenças de educações e de qualidade económica,
responsável esta, a maioria das vezes, por aquelas.
Mas é um livro de um humor
facilmente perceptível, num discurso de preferência argumentativo, por vezes
refutador dos próprios conceitos fabulísticos, e onde a simplicidade formal
joga com os efeitos fónicos do próprio ritmo frásico, deslizando em jeito de
travessa ironia.
E porque “quem canta morre
de fome”, de que é exemplo típico a Cigarra de La Fontaine, para nos cingirmos
ao narrado neste livro, e quem não o faz estala de fartura, como nos diz a
fábula alimentícia de Miguel Torga, explorando o mesmo assunto na sua “Fábula
da Fábula” – e enquanto os Burros transportam as suas relíquias, queimemos
incenso com o refrão da canção de Pedro Barroso e cantemos o Hino da Criação:
«Viva quem
canta,
Que quem
canta é quem diz,
quem diz o
que vai no peito
no peito
vai-me um país.»
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