Ainda bem que António Costa defende Mário Centeno, acho que desta vez Alberto
Gonçalves exagera, condenando tão drasticamente Mário Centeno, por causa de
dois bilhetes de futebol, ainda que embrulhados num favorzinho prestado, não
sei se o foi. No fundo, trata-se de
chicana, tal como a questão da condenação dos piropos masculinos pelas mulheres
vestidas de dignidade, que Alberto Gonçalves também condena, achando excessiva
tempestade num copo de água, o que a questão dos bilhetes de Centeno também me parece
a mim e, sobretudo, a António Costa, mas a ele não. Desta vez estranho mesmo tal
severidade draconiana. É certo que o texto de Rui Ramos, a seguir, o
apoia, explicando que se trata mesmo de corrupção, que impregna tudo: «Poderá
o nosso regime funcionar sem cumplicidades, sem favores, sem arranjos, sem
ganhos ilegais? Ou é aquilo a que chamamos "corrupção" a única
maneira de o regime existir?»
Acho que não devemos ser tão severos na questão dos bilhetes. Por esse
andar, ninguém pode prestar um favorzinho, por mínimo que seja. Quando estive
na aldeia, em casa das minhas primas, verifiquei que as pessoas são esmoleres,
têm vizinhos que lhes levam fruta e tomates e legumes, suponho que a troco de
ajudas simpáticas da minha prima, que até injecções ia dar, de insulina, outras
vezes de comer, às pessoas acamadas. E eu achava isso encantador. Não sei como
é agora, que também passou por lá a fogueira… Mas o caso dos bilhetes,
parece-me mesquinho. “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio …”
Quem se mete com o PS
OBSERVADOR, 3/2/18
Não espanta que o dr. Costa achasse o episódio do dr. Centeno
“ridículo”, como não espanta a inquietação dos avençados do regime, a começar
pelos que sobrevivem no futuro semanário Diário de Notícias.
Por falta de informação e de interesse, não comento a trapalhada
judicial que envolve o presidente de um clube da bola, um membro do prestigiado
clã Rangel e célebres personalidades de que nunca ouvi falar. Prefiro comentar
as ligações que, pelo menos durante uns dias, ligaram de forma tangencial o dr.
Centeno à trapalhada, e o escândalo que isso suscitou.
Eis os factos: o dr. Centeno pediu ao Benfica bilhetes de futebol para
ele e para o filho. Eis as suspeitas: o favor seria uma gratificação por
favores recíprocos e ilícitos. O Ministério Público abriu um inquérito que,
entretanto, fechou. Mas pelo meio, de archotes ao alto, irromperam multidões
ofendidas com uma Justiça tão iníqua que chega a desconfiar de um homem digno.
De passagem, convém lembrar que o homem digno é o mesmo que levou um
cachecol da selecção nacional para uma reunião em Bruxelas, que mantém relações
políticas e pessoais com gente seríssima e que, à vaga aproximação de uma
maçada, costuma mentir o necessário para escapar airosamente. Perante isto, as
reacções não espantam.
Não espanta, desde logo, que o dr. Costa achasse o episódio “ridículo” e
jurasse que “em circunstância alguma” o dr. Centeno sairia do governo. Somos
assim informados de que, ainda que o dr. Centeno ceda a um amigalhaço o
controlo do território marítimo português ou atropele deliberada e
comprovadamente três velhinhas, o emprego dele está garantido. O PS não pactua
com a precaridade laboral.
Não espanta a inquietação dos avençados do regime, a começar pelos que
sobrevivem no futuro semanário “Diário de Notícias”. Mas, como é habitual em
democratas, existiram divergências de fundo. Uns acharam que colocar a simples
possibilidade de o dr. Centeno vender a honra por um par de lugares no camarote
da Luz mostra que a Justiça é “burra”. Outros garantiram que a Justiça é
“estúpida”. Na televisão onde disserta, o interessante comentador José Miguel
Júdice intitulou o caso “uma estupidez sem nome”.
E não espanta a fúria do PS, que lançou sobre a investigação todos as
maldições acima e mais algumas. Não espanta a aflição do actual “PSD”, que se
aliou ao PS, ao PCP e ao BE e mandou Paulo Rangel à Europa certificar-se de que
a “imagem” do país e do ministro não arriscavam abalos. Não espanta a revolta
dos peritos, os estudiosos da bola que desfilam em programas da especialidade e
que correram a chamar coisas feias aos que, em péssima hora, ousaram duvidar da
verticalidade do dr. Centeno. Por fim, não espanta o desassossego dos
benfiquistas fiéis, embora aqui menos por amor às Finanças do que ao clube.
Na verdade, nada espanta. Por falta de provas ou de substância, o
processo em questão morreu depressa. Se não tivesse morrido, o gemido dos
defensores oficiosos do dr. Centeno haveria de prolongar-se por semanas ou
meses ou o tempo suficiente para que a PGR caísse em mãos amigas. Não é de hoje
que os socialistas gozam de vasta impunidade, e que cada beliscão a tão
honestas almas constitui uma “cabala” destinada a punir o Bem. Hoje sucede
apenas que a capacidade de farejar “cabalas” é maior, e que a capacidade de as
demolir “a priori” é omnipotente. Pé ante pé, a impunidade tende para o absoluto. Aos poucos, Joana Marques Vidal e
respectivos colaboradores tornam-se corpos estranhos neste regime de sentido e
pensamento únicos. A lei da natureza prevê que, cedo ou tarde, sejam
expurgados. E a lei que restar não será habitável.
Notas de rodapé
1. Pelos vistos, não bastava um governo que, em prol da nossa
saúde, proíbe ou condiciona dois terços da cadeia alimentar. Também a oposição
está empenhada em ajudar-nos a escolher aquilo que comemos, contanto que aquilo
que comemos não seja escolha nossa. “Oposição”, no contexto, é força de
expressão. Falo do senhor do PAN, que assinou na “Sábado” uma crónica a
decretar o leite – segurem-se bem – “um dos maiores embustes do século XX”.
O senhor do PAN, que não faz as coisas por menos, podia optar pela
denúncia do comunismo. Ou
dos nacionalismos. Ou dos concertos de beneficência. Ou dos partidos criados
para entreter maluquinhos. Mas não: o alvo do senhor do PAN é o leite.
Porquê? Porque, se percebi correctamente, as vaquinhas, à semelhança das
estrelas de Hollywood, são vítimas de violação ou assim. Há, porém, a hipótese
de eu não ter percebido nada, já que o senhor do PAN faz jus à identificação
com os bichos e escreve pouco melhor do que a minha cadela Falcatrua. Em
qualquer dos casos, fica decidido que, cito, “um cidadão informado não bebe
leite”. Se, depois do aviso, você beber tamanha mistela, você é um imbecil,
um patego e o único animal de que o PAN não gosta.
Para não dar a impressão de que o senhor do PAN só se excita com
proibições, admito que, há quinze dias, a criatura rabiscara um texto a
defender a liberalização da canábis – para fins medicinais, que como se sabe é
o principal objectivo do “pothead” médio. Ou seja, se trocarmos o cappuccino
pela erva, a probabilidade de ficarmos iguais ao senhor do PAN aumenta exponencialmente. Sei de muita gente
que vai rever prioridades – e investir na Agros.
2. Como é próprio das crianças imitar as celebridades do cinema e
da televisão, não admira que, aos poucos, os portugueses comecem a confessar o
assédio sexual de que foram alvo. Esta semana, três ou quatro figuras públicas
que não conheço ou conheço mal, tocaram corajosamente no assunto (embora,
sempre corajosamente, não referissem nomes). Aproveito o embalo para confessar
que cresci em Matosinhos, onde, ao tempo da minha adolescência, as empregadas
das inúmeras conserveiras ocupavam a pausa de almoço com piropos
indecentíssimos aos rapazes que passavam. Até os mais suaves avanços são
irreproduzíveis aqui. Basta dizer que sofri muito, e que sinto um enorme alívio
ao partilhar o sofrimento. Também gostava de ver outras vítimas saírem à rua a
denunciar as pervertidas em causa. Mas as fábricas fecharam há anos e na rua já
as pervertidas estão. À cautela, proteste-se em casa. #MeToo, meus caros.
#MeToo.
O último refúgio dos arguidos?
OBSERVADOR, 2/2/2018
Poderá o nosso regime funcionar sem cumplicidades, sem favores, sem
arranjos, sem ganhos ilegais? Ou é aquilo a que chamamos "corrupção"
a única maneira de o regime existir?
A pouco e pouco, nada escapa: governantes, presidentes de câmara, altos
funcionários, professores (suspeitos de violar o segredo dos exames),
banqueiros, gestores de grandes empresas, dirigentes dos maiores clubes de
futebol, presidentes de associações de solidariedade, juízes, magistrados… Há alguma classe ainda fora da lista dos
arguidos?
Perante a subida da maré, com a água pelos joelhos, a oligarquia deita a
mão a tudo o que promete flutuar. Há os que se escondem atrás das costas largas
do “populismo”, queixando-se muito da suposta aliança entre o activismo da
justiça e o sensacionalismo da imprensa. Mas que querem? Se houve quebra da
lei, a justiça não deve actuar? Se a justiça actua, a imprensa deve
conservar-se silenciosa?
Há ainda os que preferem escarnecer: uns bilhetes de futebol, por amor
de Deus. Pois, uns bilhetes de futebol. Mas uns bilhetes de futebol a troco de
quê? As autoridades têm a obrigação de investigar. Pequenos favores podem ser a
impressão digital de grandes promiscuidades, isto é, de um regime em que a lei não é igual
para todos, por exemplo, para aqueles que podem usar bilhetes de futebol para
acelerar processos. Mário Centeno, depois da sua imprudência, terá certamente
sido o primeiro interessado em que tudo fosse esclarecido.
Percebemos porque o regime anda tão nervoso. Para além das
prevaricações que possam ter ocorrido e ser provadas em tribunal, o que começa
a ficar à mostra é a rede opaca de contactos, de cumplicidades, de jeitos e de
favores que une entre si a oligarquia do regime. Chamamos-lhe “corrupção”, e
com essa palavra, pensamos em gente a enriquecer ilegalmente. Mas — e se esta
for também, para além de quaisquer ganhos ilegais, a maneira de o regime
funcionar? E se tivermos aqui, nos arranjos e nas amizades que ligam os seus
figurantes uns aos outros, a relojoaria profunda do regime, sem a qual não pode
existir?
Talvez esta rede seja a explicação para esse facto bizarro, que é os
políticos proporem e aprovarem leis que depois os apanham. Julgarão porventura
que, graças ao sistema de que fazem parte, nunca estarão sob o seu alcance? Que
haverá sempre uma toga amiga a cobrir eventuais processos? Compreendemos também
assim como, quando lhes acontece terem subitamente de enfrentar um magistrado,
alegam com tanta convicção que estão a ser perseguidos. De facto, num regime em
que toda a gente anda geralmente protegida, que outra razão poderia haver para
alguém ser suspeito e acusado, a não ser uma perseguição?
Nas situações mais desesperadas, há um ultimo recurso: as tribunas
televisivas e eleitorais.
No Brasil, Lula da Silva dá o exemplo: condenado por unanimidade em última
instância, com provas que a defesa não conseguiu refutar, ei-lo decidido a ir a
votos, como se a democracia tivesse sido inventada para livrar políticos
corruptos de expiar as culpas. Talvez resulte, porque o povo já uma vez
escolheu Barrabás. Mas isto, segundo os mestres de moral, já não é “populismo”:
populismo é denunciar e investigar a corrupção, não é usar eleições para fugir
à prisão. Por cá, Marques Mendes prevê que José Sócrates possa ser tentado pelo mesmo expediente. Veremos. O Dr.
Johnson disse que o patriotismo era o último refúgio dos canalhas. Estará a
democracia, em certos países, destinada a ser o último refúgio dos arguidos e
dos condenados?
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