sábado, 3 de fevereiro de 2018

Lana caprina


Ainda bem que António Costa defende Mário Centeno, acho que desta vez Alberto Gonçalves exagera, condenando tão drasticamente Mário Centeno, por causa de dois bilhetes de futebol, ainda que embrulhados num favorzinho prestado, não sei se o foi.  No fundo, trata-se de chicana, tal como a questão da condenação dos piropos masculinos pelas mulheres vestidas de dignidade, que Alberto Gonçalves também condena, achando excessiva tempestade num copo de água, o que a questão dos bilhetes de Centeno também me parece a mim e, sobretudo, a António Costa, mas a ele não. Desta vez estranho mesmo tal severidade draconiana. É certo que o texto de Rui Ramos, a seguir, o apoia, explicando que se trata mesmo de corrupção, que impregna tudo: «Poderá o nosso regime funcionar sem cumplicidades, sem favores, sem arranjos, sem ganhos ilegais? Ou é aquilo a que chamamos "corrupção" a única maneira de o regime existir?»
Acho que não devemos ser tão severos na questão dos bilhetes. Por esse andar, ninguém pode prestar um favorzinho, por mínimo que seja. Quando estive na aldeia, em casa das minhas primas, verifiquei que as pessoas são esmoleres, têm vizinhos que lhes levam fruta e tomates e legumes, suponho que a troco de ajudas simpáticas da minha prima, que até injecções ia dar, de insulina, outras vezes de comer, às pessoas acamadas. E eu achava isso encantador. Não sei como é agora, que também passou por lá a fogueira… Mas o caso dos bilhetes, parece-me mesquinho. “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio …”

Quem se mete com o PS
OBSERVADOR, 3/2/18
Não espanta que o dr. Costa achasse o episódio do dr. Centeno “ridículo”, como não espanta a inquietação dos avençados do regime, a começar pelos que sobrevivem no futuro semanário Diário de Notícias.
Por falta de informação e de interesse, não comento a trapalhada judicial que envolve o presidente de um clube da bola, um membro do prestigiado clã Rangel e célebres personalidades de que nunca ouvi falar. Prefiro comentar as ligações que, pelo menos durante uns dias, ligaram de forma tangencial o dr. Centeno à trapalhada, e o escândalo que isso suscitou.
Eis os factos: o dr. Centeno pediu ao Benfica bilhetes de futebol para ele e para o filho. Eis as suspeitas: o favor seria uma gratificação por favores recíprocos e ilícitos. O Ministério Público abriu um inquérito que, entretanto, fechou. Mas pelo meio, de archotes ao alto, irromperam multidões ofendidas com uma Justiça tão iníqua que chega a desconfiar de um homem digno. De passagem, convém lembrar que o homem digno é o mesmo que levou um cachecol da selecção nacional para uma reunião em Bruxelas, que mantém relações políticas e pessoais com gente seríssima e que, à vaga aproximação de uma maçada, costuma mentir o necessário para escapar airosamente. Perante isto, as reacções não espantam.
Não espanta, desde logo, que o dr. Costa achasse o episódio “ridículo” e jurasse que “em circunstância alguma” o dr. Centeno sairia do governo. Somos assim informados de que, ainda que o dr. Centeno ceda a um amigalhaço o controlo do território marítimo português ou atropele deliberada e comprovadamente três velhinhas, o emprego dele está garantido. O PS não pactua com a precaridade laboral.
Não espanta a inquietação dos avençados do regime, a começar pelos que sobrevivem no futuro semanário “Diário de Notícias”. Mas, como é habitual em democratas, existiram divergências de fundo. Uns acharam que colocar a simples possibilidade de o dr. Centeno vender a honra por um par de lugares no camarote da Luz mostra que a Justiça é “burra”. Outros garantiram que a Justiça é “estúpida”. Na televisão onde disserta, o interessante comentador José Miguel Júdice intitulou o caso “uma estupidez sem nome”.
E não espanta a fúria do PS, que lançou sobre a investigação todos as maldições acima e mais algumas. Não espanta a aflição do actual “PSD”, que se aliou ao PS, ao PCP e ao BE e mandou Paulo Rangel à Europa certificar-se de que a “imagem” do país e do ministro não arriscavam abalos. Não espanta a revolta dos peritos, os estudiosos da bola que desfilam em programas da especialidade e que correram a chamar coisas feias aos que, em péssima hora, ousaram duvidar da verticalidade do dr. Centeno. Por fim, não espanta o desassossego dos benfiquistas fiéis, embora aqui menos por amor às Finanças do que ao clube.
Na verdade, nada espanta. Por falta de provas ou de substância, o processo em questão morreu depressa. Se não tivesse morrido, o gemido dos defensores oficiosos do dr. Centeno haveria de prolongar-se por semanas ou meses ou o tempo suficiente para que a PGR caísse em mãos amigas. Não é de hoje que os socialistas gozam de vasta impunidade, e que cada beliscão a tão honestas almas constitui uma “cabala” destinada a punir o Bem. Hoje sucede apenas que a capacidade de farejar “cabalas” é maior, e que a capacidade de as demolir “a priori” é omnipotente. Pé ante pé, a impunidade tende para o absoluto. Aos poucos, Joana Marques Vidal e respectivos colaboradores tornam-se corpos estranhos neste regime de sentido e pensamento únicos. A lei da natureza prevê que, cedo ou tarde, sejam expurgados. E a lei que restar não será habitável.

Notas de rodapé
1. Pelos vistos, não bastava um governo que, em prol da nossa saúde, proíbe ou condiciona dois terços da cadeia alimentar. Também a oposição está empenhada em ajudar-nos a escolher aquilo que comemos, contanto que aquilo que comemos não seja escolha nossa. “Oposição”, no contexto, é força de expressão. Falo do senhor do PAN, que assinou na “Sábado” uma crónica a decretar o leite – segurem-se bem – “um dos maiores embustes do século XX”.
O senhor do PAN, que não faz as coisas por menos, podia optar pela denúncia do comunismo. Ou dos nacionalismos. Ou dos concertos de beneficência. Ou dos partidos criados para entreter maluquinhos. Mas não: o alvo do senhor do PAN é o leite. Porquê? Porque, se percebi correctamente, as vaquinhas, à semelhança das estrelas de Hollywood, são vítimas de violação ou assim. Há, porém, a hipótese de eu não ter percebido nada, já que o senhor do PAN faz jus à identificação com os bichos e escreve pouco melhor do que a minha cadela Falcatrua. Em qualquer dos casos, fica decidido que, cito, “um cidadão informado não bebe leite”. Se, depois do aviso, você beber tamanha mistela, você é um imbecil, um patego e o único animal de que o PAN não gosta.
Para não dar a impressão de que o senhor do PAN só se excita com proibições, admito que, há quinze dias, a criatura rabiscara um texto a defender a liberalização da canábis – para fins medicinais, que como se sabe é o principal objectivo do “pothead” médio. Ou seja, se trocarmos o cappuccino pela erva, a probabilidade de ficarmos iguais ao senhor do PAN aumenta exponencialmente. Sei de muita gente que vai rever prioridades – e investir na Agros.
2. Como é próprio das crianças imitar as celebridades do cinema e da televisão, não admira que, aos poucos, os portugueses comecem a confessar o assédio sexual de que foram alvo. Esta semana, três ou quatro figuras públicas que não conheço ou conheço mal, tocaram corajosamente no assunto (embora, sempre corajosamente, não referissem nomes). Aproveito o embalo para confessar que cresci em Matosinhos, onde, ao tempo da minha adolescência, as empregadas das inúmeras conserveiras ocupavam a pausa de almoço com piropos indecentíssimos aos rapazes que passavam. Até os mais suaves avanços são irreproduzíveis aqui. Basta dizer que sofri muito, e que sinto um enorme alívio ao partilhar o sofrimento. Também gostava de ver outras vítimas saírem à rua a denunciar as pervertidas em causa. Mas as fábricas fecharam há anos e na rua já as pervertidas estão. À cautela, proteste-se em casa. #MeToo, meus caros. #MeToo.


O último refúgio dos arguidos?
OBSERVADOR, 2/2/2018
Poderá o nosso regime funcionar sem cumplicidades, sem favores, sem arranjos, sem ganhos ilegais? Ou é aquilo a que chamamos "corrupção" a única maneira de o regime existir?
A pouco e pouco, nada escapa: governantes, presidentes de câmara, altos funcionários, professores (suspeitos de violar o segredo dos exames), banqueiros, gestores de grandes empresas, dirigentes dos maiores clubes de futebol, presidentes de associações de solidariedade, juízes, magistrados…  Há alguma classe ainda fora da lista dos arguidos?
Perante a subida da maré, com a água pelos joelhos, a oligarquia deita a mão a tudo o que promete flutuar. Há os que se escondem atrás das costas largas do “populismo”, queixando-se muito da suposta aliança entre o activismo da justiça e o sensacionalismo da imprensa. Mas que querem? Se houve quebra da lei, a justiça não deve actuar? Se a justiça actua, a imprensa deve conservar-se silenciosa?
Há ainda os que preferem escarnecer: uns bilhetes de futebol, por amor de Deus. Pois, uns bilhetes de futebol. Mas uns bilhetes de futebol a troco de quê? As autoridades têm a obrigação de investigar. Pequenos favores podem ser a impressão digital de grandes promiscuidades, isto é, de um regime em que a lei não é igual para todos, por exemplo, para aqueles que podem usar bilhetes de futebol para acelerar processos. Mário Centeno, depois da sua imprudência, terá certamente sido o primeiro interessado em que tudo fosse esclarecido.
Percebemos porque o regime anda tão nervoso. Para além das prevaricações que possam ter ocorrido e ser provadas em tribunal, o que começa a ficar à mostra é a rede opaca de contactos, de cumplicidades, de jeitos e de favores que une entre si a oligarquia do regime. Chamamos-lhe “corrupção”, e com essa palavra, pensamos em gente a enriquecer ilegalmente. Mas — e se esta for também, para além de quaisquer ganhos ilegais, a maneira de o regime funcionar? E se tivermos aqui, nos arranjos e nas amizades que ligam os seus figurantes uns aos outros, a relojoaria profunda do regime, sem a qual não pode existir?
Talvez esta rede seja a explicação para esse facto bizarro, que é os políticos proporem e aprovarem leis que depois os apanham. Julgarão porventura que, graças ao sistema de que fazem parte, nunca estarão sob o seu alcance? Que haverá sempre uma toga amiga a cobrir eventuais processos? Compreendemos também assim como, quando lhes acontece terem subitamente de enfrentar um magistrado, alegam com tanta convicção que estão a ser perseguidos. De facto, num regime em que toda a gente anda geralmente protegida, que outra razão poderia haver para alguém ser suspeito e acusado, a não ser uma perseguição?
Nas situações mais desesperadas, há um ultimo recurso: as tribunas televisivas e eleitorais. No Brasil, Lula da Silva dá o exemplo: condenado por unanimidade em última instância, com provas que a defesa não conseguiu refutar, ei-lo decidido a ir a votos, como se a democracia tivesse sido inventada para livrar políticos corruptos de expiar as culpas. Talvez resulte, porque o povo já uma vez escolheu Barrabás. Mas isto, segundo os mestres de moral, já não é “populismo”: populismo é denunciar e investigar a corrupção, não é usar eleições para fugir à prisão. Por cá, Marques Mendes prevê que José Sócrates possa ser tentado pelo mesmo expediente. Veremos. O Dr. Johnson disse que o patriotismo era o último refúgio dos canalhas. Estará a democracia, em certos países, destinada a ser o último refúgio dos arguidos e dos condenados?


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