O certo é que o seu humor verrinoso paira acima de nós, certeiro e sem
tréguas, quer sobre os homens e as mulheres, quer sobre os casos, as
instituições e as penúrias noticiarísticas, uma graça feroz que não desculpa
nem se amedronta, superior no comentário, de uma mente rica provinda de outros
sóis, de outras culturas, de um alto comediógrafo a quem as nossas pequenas comédias
inspiram, e nos aligeira a mente, cada sábado, como uma bênção: Alberto
Gonçalves.
Quatro grandes questões do nosso tempo
OBSERVADOR, 10/2/2018
Não sei se o sr. Costa tem azar com as limitações de quem lhe escreve os
discursos, ou se ele escolhe deliberadamente burgessos. Sei que exaltar a
língua enquanto a torturamos com zelo tem a sua piada
Alterações climáticas
O aquecimento global? Faleceu. Agora o drama são as mudanças climáticas,
o que significa que graças à malévola acção do homem (o homem é o sr. Trump) a
temperatura tanto pode subir como descer. É um perigo em ambos os casos. No
primeiro, os noticiários são quase exclusivamente preenchidos com “reportagens”
imprescindíveis na praia, cada uma dedicada à opinião de dezassete banhistas
sobre a água do mar (“óptima!”), o sol (“queima!”) e o Verão em geral
(“espectacular!”). Há alertas imprescindíveis da Protecção Civil acerca dos
cuidados a ter com o calor (beber água, usar roupa fresca), revelados com a
solenidade adequada aos segredos do universo. E há fotografias imprescindíveis
dos termómetros dos automóveis, processo através do qual o cidadão comunica a
um mundo ansioso que na sua cidade estão 35º ou 38º.
No segundo caso, actualmente em curso, os perigos não diminuem. Os
“telejornais” são quase exclusivamente preenchidos com “reportagens”
imprescindíveis em praças do interior, cada uma dedicada à opinião de dezassete
transeuntes sobre a neve (“é normal”), a roupa (“é muita”) e o Inverno em geral
(“é isto”). Há alertas imprescindíveis da Protecção Civil acerca dos cuidados a
ter com o frio (não sair à rua em pelota, não se lançar para cima de
fogueiras). E há fotografias imprescindíveis dos termómetros dos automóveis,
processo através do qual etc., etc., etc. Nesta época, há ainda o risco
adicional de vermos o prof. Marcelo a perseguir pessoas sem casa, em princípio
infelicidade bastante.
Se o homem, leia-se o sr. Trump, não fosse egoísta e pensasse nas
gerações futuras, seríamos poupados a todas as calamidades acima descritas. A
única calamidade restante seria a falta de assunto de que o “jornalismo” pátrio
passaria a sofrer. Qualquer dia, os noticiários teriam de transmitir notícias.
Assédio sexual
Como sempre estimulados pelo exemplo do “estrangeiro”, os portugueses de
alguma fama desataram a confessar o assédio sexual de que foram alvo. Não
escrevi “as portuguesas” porque, numa subversão irónica do movimento #MeToo,
aqui parecem ser os homens a liderar o rol de queixinhas. E as queixinhas
chegam com travo típico: José Cid, uma das vítimas, foi assediado por um fadista;
António Lobo Antunes viu-se perseguido por um professor de Moral.
Nas denúncias indígenas de abuso não há produtores de cinema,
realizadores de prestígio, actores famosos ou um mero humorista digno do nome.
Os vilões referidos são fadistas, padres e, arrisco, barbeiros, beneficiários
do RSI, vereadores com pelouro e funcionários da conservatória do registo
predial. O nosso lastro histórico, por comparação à juventude dos EUA, também
pesa, já que, aparentemente, as poucas-vergonhas em causa aconteceram por volta
de 1951. E, embora tenham profissão, os pervertidos nunca têm nome (porque o
país é pequeno e toda a gente se conhece e tal). Contas feitas, o #MeToo
indígena reflecte as diferenças entre a Brandoa e Hollywood e, de serôdio, não
diverte tanto quanto o americano.
Este é uma galhofa pegada, principalmente desde que Cristina Garcia,
activista californiana incluída no artigo da “pessoa do ano” da “Time” (“As que
quebraram o silêncio”), é acusada de apalpões e propostas indiscretas pelo
assessor de um deputado (democrata, valha-nos Deus). Outro sujeito, um lobista
do mesmo estado, garante que a senhora tentou tocar-lhe nas partes baixas. É
possível que as delações sejam falsas, é possível que sejam verdadeiras, é
provável que sejam irrelevantes – aliás, à semelhança de muitas daquelas que
celebrizaram o #MeToo. Descontadas a violência e a opressão autênticas, que a
histeria em voga só desvaloriza, sobram a vida e os gestos ridículos com que as
pessoas frequentemente a levam. As pessoas do ano e as de todos os anos.
Identidade nacional
Portugal não se distingue pelos humoristas profissionais. Em
compensação, fervilha de humoristas amadores. Há os jurados do prémio Camões,
que o atribuíram a Manuel Alegre. Há Manuel Alegre, que aceitou o dito. E há
António Costa, que foi à cerimónia de entrega dissertar sobre a língua
portuguesa. Os jurados não sei quem são. O sr. Alegre é conhecido pelos textos
de promoção ao futebolista Figo e ao BPP. E, como se dizia nos programas de
variedades, o sr. Costa dispensa apresentações.
O que a alta comédia não
dispensa é a parlapatice com que o sr. Costa abrilhantou o “evento”: “Cada
língua representa um mundo e uma visão do mundo, é uma singularidade e uma
pluralidade, é uma fixação e um movimento, é um passado, um presente e um
futuro, é uma oportunidade e uma afirmação…” Quem fala assim não é gago. Nem,
infelizmente, mudo. E quem fala assado? “Quero, neste momento, reafirmar o
compromisso do Governo com a língua portuguesa, com os seus valores e as suas
valências, da mais simbólica e poética à mais prática e instrumental”. Nem as
“valências” faltaram (ainda que as sevilhas primassem pela ausência).
Não sei se o sr. Costa, já
de si um portento “inchticional”, tem azar com as limitações de quem lhe
escreve os discursos, ou se ele escolhe deliberadamente burgessos. Sei que
exaltar a língua enquanto a torturamos com zelo tem a sua piada. E terá as suas
consequências.
Bola
O presidente do Sporting,
que não parece regular bem, comete uns desabafos sobre os “três olhos” ou a
“mulher, gira ainda por cima” e os “media” precipitam-se a beber cada sílaba. O
presidente do Benfica, que parece um portento de criatura, embrulha-se em
incontáveis trapalhadas judiciais e, salvo excepções, os “media” nem tocam no
assunto. Por uma vez, permito-me parafrasear o comentador especializado Rui
Santos e perguntar, trémulo de aflição, para onde caminha o nosso futebol.
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