Como sempre, um texto de Maria
João Avillez que pareceu contrapor-se aos que ultimamente têm assinalado tanta
indignidade que por cá acontece. Este de M.J.A. foi copo de água cristalina a
embalar-nos a alma, sedenta de bom senso e boas atitudes. Médicos e mais
pessoas dedicadas aos outros, num heroísmo de voluntariado que ela descreve, e muitos
outros há, do voluntariado anónimo, ao serviço dos sem-abrigo por exemplo,
contrariando cansaços dos seus próprios afazeres, tudo isso nos encanta e se
agradece, todos esses que Maria João Avillez refere e mais os outros muitos, incógnitos,
próprios de um povo bastante generoso, como é o nosso.
E no entanto…
Leio o comentário negativo,
entre os vários de apoio, o qual transcrevo, num susto, a que acrescento a Sinopse
de um livro - HIPERACTIVIDADE E DÉFICE DE
ATENÇÃO de Pedro Strecht, que
retiro da Internet.
E o mal-estar retoma, apesar
da simpatia. Que futuro teremos, com tanta dependência de drogas desde a
infância, que a falta de educação, o excesso de mimo e as facilidades
conduziram, tantas vezes, à incapacidade parental e docente de dominarem os
desvios à norma dos nossos filhos ou dos filhos deles, numa perspectiva social
de delinquência ou depressão progressivos?
Se as pessoas soubessem…
OBSERVADOR, 6/2/2018
Há uns 3 anos chegou o
convite para integrar o Conselho Consultivo do Centro Hospitalar Psiquiátrico
de Lisboa. Convite perturbante, um desafio de voluntariado singular na
exigência que me iria impor.
1. Foi uma das mais inesperadas e
estimulantes experiências que me foi – é — dado viver. Há cerca de três anos,
tocou o telefone, era um convite para integrar o Conselho Consultivo que iria
ser criado no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL), instalado no
antigo Júlio de Matos.
“Porquê eu?” Porque sim,
iria “ajudar”. Convite perturbante, um desafio de voluntariado
consideravelmente singular na exigência do confronto que me iria impor.
Vinte e dois hectares (!)
ajardinados com ruas e alamedas em plena Avenida do Brasil, vida, doença,
árvores, pavilhões em rosa ou branco, excelente arquitectura, asseio.
Um mundo. Ignorado,
estigmatizado, disfarçado e, no entanto, haveria de descobrir eu, tão fértil
nos milagres que a boa vontade dos seus profissionais ali produzem e tão
carente no seu desamparo: a relutância do “cá fora” em relação ao “lá dentro”
parece inamovível, circulando entre um receio constrangido e uma hostilidade
envergonhada. Durante meses ouvi dizerem-me: “Mas vais trabalhar com os
malucos? Vê lá…”
A verdade é que fui. Até
hoje.
O Conselho Consultivo, então
presidido por José Tolentino de Mendonça, foi, entretanto, extinto com a
entrada do novo governo, veio nova a administração presidida por Teresa
Sustelo, mas persistem as boas relações e o que lá faço, que é modesto,
continua como até aqui. Guardo sim uma natural saudade do Conselho Consultivo
de muito diversa composição – entre outros, de Ricardo França Jardim –,
e guardo particular lembrança da capacidade de liderança da antiga
administradora, Isabel Paixão e da sua autoridade sorridente gerindo aquele
grande mundo. Uma maestra para muitas partituras.
2. Fui conhecendo
serviços e directores/as. Aqueles 22 hectares intimidam qualquer um mas
valeu-me uma doce cicerone, Dora Conceição. Antropóloga de formação,
é Técnica Superior, prestadora de serviços, na área da reabilitação,
responsabilizando-se pela Comunicação. É, diz ela, “uma espécie de ponte” para
as áreas culturais e sociais, e que bem faz tudo isto, digo eu agora.
A razão que me faz aliás
escrever este texto é isso mesmo: testemunhar. “Nada acontece até ser
contado” disse um dia Virginia Woolf, frase da minha eleição. É preciso
contar a dedicação, a disponibilidade, a criatividade que testemunho em
abundância mas que poucos contam.
3. O curriculo impressiona, António Bento
impressiona mais. O sorriso, o saber chegar a todos, a urgência de pôr o seu
conhecimento a render, o pioneirismo, a capacidade de liderar e organizar com
serenidade.
Médico psiquiatra,
António Bento é, desde 2001, Chefe de Serviço de Psiquiatria, diretor do
Serviço de Psiquiatria Geral e Transcultural (Serviço com Acreditação de
Qualidade ACSA) do CHPL. É responsável por cerca de 400 internamentos e 20.000
consultas por ano, incluindo o tratamento e acompanhamento de cerca de 300
doentes psiquiátricos em situação de sem-abrigo.
“Tenho 63 anos, a noite
passada andei na rua. Fui com dois elementos da minha equipa e com a Equipa de
Rua da Câmara Municipal de Lisboa, que supervisionamos, de acordo com um
protocolo, mas fui com o mesmo entusiasmo que tinha nos anos 80, sempre a descobrir
coisas novas no ser humano e a sentir-me útil como médico e psiquiatra, sem
sentir qualquer cansaço por fazê-lo depois de um dia de trabalho intenso.
(Sorri) Sabe que o que geralmente nos cansa não é o trabalho propriamente, mas
o que gira à volta do trabalho… O mesmo se continua a passar com os doentes
psiquiátricos, que necessitam cada vez mais quem os ouça, compreenda, trate e
cuide! No mês passado abriu em Roma uma “filial” deste grupo, vocacionada para
sem-abrigo e refugiados. A minha equipa coordena um grupo de 8 países europeus,
num projeto ERASMUS+.”
Fico ainda a saber que
há uma “Consulta Aberta” às 5ªs feiras, onde Bento e os seus colaboradores
recebem “todos os doentes”, e tanto faz que apareçam espontaneamente, sem
marcação, que sejam sem-abrigo ou não… São bem vindos. E atendidos.
“Posso dizer que vivo no
meio dos sem-abrigo há 63 anos e trabalho com eles, como médico, há mais de 30
anos.”
O seu trabalho pioneiro,
os resultados da excelência profissional — reconhecida internacionalmente – aliado
a um humanismo “praticante”, levaram recentemente a autarquia de Lisboa a
conceder-lhe a medalha de Mérito Municipal.
“É uma das pessoas que sabe
mais sobre sem-abrigo em Portugal”, dizia-me José Tolentino Mendonça. “O
serviço de psiquiatria de proximidade que criou, em que os médicos vão à rua
ter com os doentes, é um projeto extraordinário e de referência em termos
internacionais. Ele associa uma prática clínica inovadora a uma inquietude por
mais e melhor conhecimento, oferecendo um raro exemplo de cientista
verdadeiramente empenhado em construir uma visão transdisciplinar sobre o seu
objeto de estudo. Contrariando a guetização para onde o estigma social empurra
a saúde mental, António Bento é um fazedor de pontes.”
Mas há mais: pela
assinatura que deixam na comunidade científica, os seminários e cursos que ele
produz no antigo Júlio Matos continuam a fazer história. Abertos a diversos
setores da sociedade, propõem um cruzamento de saberes que, como pude já
observar, recolhem o aplauso reconhecido de centenas de pessoas, nacionais e
estrangeiras.
Haverá medalhas que cubram
semelhante mérito? interrogo-me eu inutilmente, mas António Bento segue
adiante: “Tenho a sorte e o privilégio de exercer medicina e sobretudo
psiquiatria, que me permitem não só ajudar os doentes, mas ir-me formando e
desenvolvendo como pessoa, numa aprendizagem contínua e fascinante!”
Sim, ele impressiona. Mas
sobretudo confunde: este homem de alta excelência profissional será também um
apóstolo?
4. E a Rádio
Aurora? É dali? É. E emite a sério? Tão a sério que já a partir desta
semana terá assento semanal na Antena Um, em horário nocturno (1h e 30 da
madrugada). Uma grande estreia após outra, bem sucedida, há um ano, na Rádio
Amália, onde ainda permanecem.
A “Radio-Aurora — a Outra
Voz” nasceu em Março de 2003 fruto do trabalho conjunto de três psicólogos e um
grupo de pacientes do então Miguel Bombarda (o CHPL resulta justamente da fusão
daquele hospital com o Júlio de Matos). Vale a pena “ouvir” Nuno Faleiro,
43 anos, Psicólogo Clínico com especialização em Psicoterapia Psicanalíca e
trabalhando no CHPL desde 2003, a falar dessa “outra voz”: ele foi um dos seus
“inventores”.
“É o primeiro programa
da rádio português criado por pessoas com um diagnóstico psiquiátrico que
procura colaborar na redução dos processos de estigmatização e descriminação
social vividos por estes nossos concidadãos.” Que o mesmo é dizer que esta
“devolução” da legitimidade à palavra de pessoas afectadas é “um imperativo
ético”.
Nuno Faleiro, alterna o
exercício da sua actividade profissional, com os microfones da Rádio, onde é
simultaneamente, com paciência terna e atenta, o motor e o mentor.
“Este projecto de
comunicação social de radiofusão e da Web surge como um discurso alternativo a
uma repetitiva imagem social: os loucos, os perigosos, os incapazes que se
encontra na origem dos processos de descriminação social. Basta dizer que o
nível de desemprego neste grupo é de 96%, a sobrevivência é tremenda, a falta
de respostas habitacionais, generalizada…”
É verdade. Por isso nos
surge tão naturalmente determinante o trabalho de inserção na comunidade que a
Rádio Aurora pressupõe. Gerador de confiança e fomentador de auto estima.
Poder testemunhar a imaginação e o empenho posto na produção desta rádio –
entrevistas, notas, apontamentos, debates — é um intervalo de luz na sombra das
coisas como elas são. Sei do que falo, participei ou assisti a alguns desses
programas. E lembro-me do que ouvi dos convidados/entrevistados:
“Ah se as pessoas soubessem…
“Infelizmente não há muitas que saibam.
5. Se os meios
humanos e financeiros estão por vezes no limite, nada naquele imenso perímetro
verde da Avenida do Brasil parece no limite, tal a aliança das boas vontades e
da competência. Aulas de ginástica (generosa oferta do Holmes Place),
idas ao futebol, visitas a museus, passeios fora de Lisboa. E arte. Que no
caso é falar em Sandro Resende, 42 anos, formado em pintura que pôs muitos
doentes a pintar, a esculpir, a desenhar. Descobrindo-lhes o rasgo ou a
vocação. Tudo começou há 18 anos quando ele, ainda finalistas de Belas Artes,
foi para o CHPL.
Contratado para ensinar
Artes Plásticas, “depressa se apercebeu do potencial estético que ali havia”.
De tal forma que em
2002, numa iniciativa com a sua assinatura, ousou mais: artistas residentes
lado a lado com profissionais convidados, o “dentro” em diálogo estético com o
“fora”. Instalada num pavilhão devoluto, a exposição, um caso, teve
aplauso geral.
O colega José Azevedo
(com quem Sandro criou o Projecto Contentores, já em 8ªedição) juntou-se a esta
história ensinando fotografia e vídeo. Resultado: outros pavilhões
devolutos abrigam hoje mais arte contemporânea e as exposições têm trazido
a legitimidade de artistas e o reconhecimento entre pares: Cabrita Reis, Souto
Moura, Jorge Molder, Julião Sarmento, Miguel Palma, Jeff Koons (sim, esse),
Jason Martin, Albert Watson, são alguns desses pares.
Um persistente,
permanente, trabalho de direcção artística que inclui curadoria, design,
montagem da “iniciativa e responsabilidade” desta dupla: “não está no contrato,
está no nosso gosto…” Sorriso entusiasmado (o caso não é para
menos).
“Balanço? Positivo! Na
vida dos artistas residentes e em nós. Há uma aprendizagem comum, muito
recompensadora a nível pessoal. A procura de artistas consagrados para
trabalharam com os nossos é grande, há vontade de partilha. É de saudar que
marcas procurem a arte que se produz no nosso atelier e que até já haja
colecionadores a quererem investir. “
Se as pessoas soubessem.
Comentário de Mário Vicente
Não me comove esta peça de propaganda.
Todos temos boas intenções, até o Hitler disse que tinha.
Entretanto, o facto é que ninguém sabe o que lá se passa.
Os psiquiatras não passam de embustes, toda a história dessa pseudo-ciência
está cheia de crimes contra a auto-determinação e outros.
Basta folhear o DSM para ver o que lá está - um catálogo frenológico de
pseudo-perturbações e check-lists para rótulos de pseudo-doenças, à moda do bom
nacional-socialismo dos idos de '40.
Nos EUA o deboche promovido por esses curandeiros e pelas farmacêuticas
está de tal ordem que já se fala em "salvar o normal", tal é o
excesso de diagnósticos, a que nem as crianças escapam.
Recomendo que pesquisem vídeos da Dra Paula Kaplan sobre o que estes
curandeiros chamam "diagnósticos".
Saúde: HIPERACTIVIDADE E DÉFICE DE ATENÇÃO
PEDRO STRECH
Sinopse
As nossas crianças estão a crescer num perigoso paradigma: a reacção a
estímulos constantes substituiu o tempo para parar e pensar. Pais e professores
são confrontados com diagnósticos de Perturbação de Hiperactividade e Défice
de Atenção (PHDA). Mas quantos são reais? Num país em que, em 2016, foram
prescritos 5 milhões de embalagens de psicofármacos para jovens abaixo dos 15
anos, é tempo de parar e pensar sobre a abordagem clínica da PHDA. Como lidar
com ela de forma integrada e travar o ciclo de resposta única da medicação?
Num ensaio que vai às origens do problema, Pedro Strecht aponta caminhos
aos milhares de portugueses que diariamente convivem com a PHDA.
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