Já lá vai o tempo das cartas
que nos chegavam para enviarmos umas tantas cópias a amigos ou conhecidos com
informações sobre rezas obrigatórias a um santo provavelmente da devoção do que
iniciou a cadeia, e sobre as consequências em alguns beneficiados, como
chamariz para a nossa participação, centrada em crença milagreira, que
acompanha a raça humana na sua andança terrena: mas era indispensável não
quebrar a cadeia. “Reze a S. Judas Tadeu” foi um texto que escrevi em “Pedras
de Sal” sobre a questão, nos idos dos anos setenta sobre a estratégia
servil, dirigida então aos devotos, por serem mais crédulos. Entretanto, de
outros processos ouvi falar como angariadores de fortuna sem esforço, que me
deixavam triste por não poder participar, por falta de verba. Foi o caso da
“banqueira do povo” do domínio público, pelos anos oitenta, e até tive um amigo
que arriscou cem contos e os perdeu e mais os muitos que renderiam e não chegou
a ganhar por já estar na fase repentina do desmascaramento da banqueira. Como o
próprio nome indica, dirigia-se virtuosamente ao povo a fraude da “banqueira do
povo”, como classe mais desprotegida, quer física quer intelectualmente, e a D.
Branca pôde beneficiar de epítetos carinhosos de santidade, enquanto resultou positivamente.
Mas esta de moedas virtuais que
se acrescentou ultimamente aos escândalos das moedas reais em que chafurdamos,
prova que a inteligência humana é infinita, e que o bom senso não. Diogo
Queiroz de Andrade explica o caso e contesta. Eu apenas me benzo, num desejo de
partilha, sempre adiada.
EDITORIAL
As moedas da ganância
DIOGO QUEIROZ DE ANDRADE
PÚBLICO, 3 de Fevereiro
de 2018
O investimento em
criptomoedas é altamente especulativo — a especulação não é feita com base em
factos nem em expectativas credíveis. Nesse sentido, nem é sequer um
investimento. É uma fé. E quando tomamos decisões baseadas em crenças ficamos à
mercê da sorte e do azar. Muitos milionários da bitcoin de que se fala
repetidamente só o serão se venderem — e se venderem acima do preço de compra,
o que só acontecerá enquanto novos utilizadores continuarem a entrar no
sistema.
É verdade que vivemos em
tempos de especulações financeiras — e poucas serão tão bem sucedidas como as
empresas tecnológicas baseadas em valorizações absolutamente irreais. Mas, para
cada startup que triunfa, há
centenas que morrem sem sequer merecerem um único tweet viral. O mesmo se passa com as
criptomoedas. Já fizeram alguns milionários? Certamente que sim. Mas, para
esses o serem, muitos mais ficaram sem qualquer retorno do dinheiro investido,
porque já compraram em alta e com medo venderam em baixa.
É importante perceber
porque é que tudo isto acontece. Uma das razões para a fama das criptomoedas
é a falência do sistema bancário no recebimento e manutenção de poupanças dos
cidadãos. Desde a crise financeira de 2008 que o modelo
tradicional da banca mudou e deixou de ser atraente para o cidadão comum e para
o pequeno investidor, tendo este movimento sido acompanhado por uma mudança da
economia em que se deixou largamente de valorizar a poupança e se preferiu dar
prioridade ao investimento e até a dívida. Muitos investidores migraram para o
mercado de acções e fundos, mas alguns estão agora a aproveitar a loucura
das bitcoins e outras criptomoedas para procurar retorno rápido com baixo esforço.
Claro que não há nada contra a especulação que permite a alguns obter lucros
rápidos — o modelo só se torna negativo porque muitos perdem o que não podiam
perder.
Estas “moedas” também
são sedutoras porque são algo misteriosas, baseando-se numa tecnologia ainda
pouco compreendida: é garantido que a vasta maioria dos utilizadores não tem
sequer a compreensão básica do mecanismo de funcionamento da blockchain ou de qualquer uma das mais de 1300
variedades de criptomoedas disponíveis.
O mais irónico de tudo
isto é que é bem provável que a tecnologia de base — a blockchain — triunfe, pois ela tem aplicação numa
enorme variedade de indústrias e possui princípios interessantes para a
economia digital. Mas nada garante — e quase tudo activamente desaconselha —
investimentos perigosos nestas criptomoedas, pelo menos para já.
E todo este mercado também
pode e deve ser olhado de um outro ponto de vista. Será ético aplicar todo este
dinheiro e consumir uma imensa dose de energia para produzir e angariar algo que
não tem qualquer valor social? Cada vez há mais vozes a recusar este caminho e
é importante que elas se oiçam por cima da ganância que está na moda.
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