Também já tinha visto o
programa referido por Alberto Gonçalves na crónica da sua indignação
desta semana – “Um programa 100% reles” – e que logo abandonei, tal como
fizera a um outro que apresentava Miguel Esteves Cardoso, sentado num cadeirão,
a conversar com um jovem também sentado, debitando, ambos, puerilidades de
estarrecer, o do cadeirão a chamar inteligente ao jovem, por uma qualquer
futilidade pronunciada em conversa inconsequente e soporífera.
Tem razão, Alberto Gonçalves,
na sua iracúndia 100% “inteligente” e orientadora, embora ineficaz. Porque há
sempre quem aprecie, há sempre os patriotas e os brincalhões, até os dos nossos
carnavais, a imitar os outros carnavais mais a sério de outros países mais
criativos ou soalheiros.
Mas não devemos generalizar.
Afinal a RTP tem programas que agradam, o do Herman, os DDT, os das descobertas
de vozes e génios…
E poderemos sempre fazer
zapping. A menos que a nossa intenção seja mesmo a de satirizar, talvez para divertir,
talvez para educar… O ponto está em que quiséssemos aprender.
Um programa 100% reles
OBSERVADOR, 24/2/18
Além de um espectáculo
pelintra, e veículo promocional de um Estado muito desonesto e pouco
democrático, o “100% Português” da RTP é um manifesto reaccionário, com
cheirinho à superioridade da “raça”.
O presidente do Sporting,
que parece um indivíduo ponderado, instou os fiéis a: a) não lerem jornais
desportivos e o “Correio da Manhã”; b) não consumirem televisão nacional; c)
não deglutirem rissóis de marisco. A alínea c) é brincadeira (o dr. Costa é que
proíbe essas calamidades). Mas a) e b) são aparentemente exigências sérias e,
se me permitem, nada difíceis de cumprir. Mesmo não sendo “sportinguista”,
nunca comprei um jornal desportivo e só comprei o “Correio da Manhã” meia dúzia
de vezes e por discutível vaidade, quando há demasiados anos ali assinei umas
crónicas. Aliás, ao que me consta, há muito que quase ninguém paga por esse
anacronismo chamado imprensa. Pelo menos entre nós, as publicações em papel têm
hoje uma procura comparável à vacina contra a lepra – e, por regra, um
interesse semelhante à dita.
Quanto à televisão, a
obediência às directivas é ainda mais simples. Quem, com idade inferior a 70
anos e na era do cabo, do Netflix, do DVD, do youTube e do que calha, insiste
em ver canais portugueses? Falo por mim, que apenas espreito tais aberrações
para me inteirar dos comunicados do presidente do Sporting e das reacções dos
especialistas aos comunicados do presidente do Sporting. O resto, calculo, é a
tralha grosseira que celebrizou o “audiovisual” caseiro e, dado atravessarmos
um Tempo Novo, a descarada propaganda do governo e do país que convém ao
governo. O que eu não esperava é que a grosseria e o descaramento chegassem aos
níveis espectaculares a que chegaram.
Um destes dias, soube pelo
Telmo Azevedo Fernandes, ocasional
autor no “Observador” de textos lúcidos e logo
excêntricos sobre economia, que a RTP estreou um programa intitulado “Missão:
100% Português”. É extraordinário que, em pleno século XXI (é assim que diz,
não é?), a RTP continue a existir. Porém, achei literalmente inacreditável que
agora dedique a sua desgraçada existência à divulgação de um patriotismo caro a
1930. E isto a julgar pelo nome, que prometia coisa má. Movido pela curiosidade
dos pervertidos, fui ver: a coisa é pior.
O “conceito” de “100%
Português”, adaptado de uma empresa holandesa e de autóctones doentes, é
simples. E atroz: um moço, convenientemente pateta, aceita viver uns meses sem
produtos estrangeiros. As câmaras, os microfones e restante parafernália
fabricada em Aljezur registam o resultado para educação das massas.
O segundo episódio, que
testemunhei com previsível sofrimento, começa com o moço a preparar o
pequeno-almoço, confecionado com fruta guardada ao relento e comido no chão. O
moço, que dá saltos, faz caretas e diz “Eia, man!” e “Muita mal”, decide ir à
cata de bens patrióticos. A voz “off” (termo alentejano) dita as “regras”: “De
agora em diante, o Raminhos (?) vai consumir exclusivamente produtos “made in”
(expressão beirã) Portugal identificados através de etiquetas, rótulos e
símbolos que atestem a origem nacional”. Mais: “E ainda vai explorar as mais
criativas ideias nacionais, com sucesso por cá e além-fronteiras” (supõe-se que
em países sem consciência proteccionista).
De súbito acompanhado pelo cançonetista
Toy (alcunha minhota), pretexto para “piadas” susceptíveis de inspirar
suicídios colectivos, o moço parte em busca de um frigorífico indígena. A bordo
de um automóvel concebido em Arruda dos Vinhos, ambos berram: “Eu vou
cantar/sou português/e tenho orgulho no meu país”. Adquirido o frigorífico,
passa-se à pedagogia directa, onde o moço e Toy interpelam transeuntes com
mentiras piedosas (ou cruel estupidez): “É mais barato porque a assistência é
portuguesa”. Aos 14 minutos de emissão, e se não for maluquinha de todo, a
assistência portuguesa fugiu apavorada de tamanho nojo. Eu tomo um comprimido
para a enxaqueca e persisto. Em vão: Toy retoma a cantoria.
Na cena seguinte, o moço
senta-se para a “leitura 100% portuguesa”
e, investigo a capa, opta por Borges. Estranho, pelo desvio às regras e ao
péssimo gosto do programa. Depois percebo que não se trata do escritor
argentino (neto de transmontanos, imagine-se): o Borges em questão é um
“humorista” que se passeia de boina basca e que, sem querer, fornece a analogia
perfeita para o penoso exercício. Abdicar, em nome da irracionalidade tribal,
de produtos importados é, na vastíssima maioria das circunstâncias, ficar
reduzido à fancaria que sobra, se sobra. E é abdicar da capacidade de escolha.
E dos benefícios da concorrência. E das vantagens de habitarmos um mundo
imensamente maior que nós. E do progresso em geral.
Além de um espectáculo pelintra, e veículo promocional de um Estado
muito desonesto e pouco democrático, “100% Português” é um manifesto
reaccionário, com cheirinho à superioridade da “raça”, aos prazeres da
xenofobia e a feiras de fumeiro. Numa palavra, é reles. Em meia dúzia de
palavras, é um sintoma da miséria a que descemos ver a “economia de substituição”
– ou o atraso de vida – louvada no horário “nobre” do Inverno de 2018. Na
campa, Salazar deve contorcer-se de gozo. Como Jerónimo de Sousa no museu.
Em abono do rigor, esclareço que, no momento em que o moço pegou no
Borges da boina, a electricidade dele foi abaixo. E a minha paciência também.
Enquanto o moço presumivelmente pesquisava turbinas criadas em Gondomar num
telemóvel criado em Portimão, considerei-me satisfeito (salvo seja) e desliguei
o televisor (projectado na Buraca). Suportei perto de vinte minutos, a duração
média que o corpo humano resiste à fogueira, o único suplício comparável. Se
o nacionalismo é de facto o último refúgio dos canalhas, consola não ser uma
invenção portuguesa. Já a lobotomia é. E nota-se.
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