domingo, 11 de fevereiro de 2018

Histórias “morais” e murais


Histórias sem brilho e mesmo deprimentes, que António Barreto se entretém a respigar, desta vez sem comentários moralistas e apenas constatando factos, petardos certeiros que aproveitaremos ou não. Uma história da Câmara de Lisboa exemplar no truque de extorquir dinheiro, segundo uma taxa inconstitucional, competente segundo se trate de extorsão, inepta na questão da devolução. Histórias que justificam espaços cénicos de sabor definitivamente arcaico e um tanto sórdido, como essa da participação de Aquilino Ribeiro no assassinato do Rei D. Carlos, a provar que os grandes escritores que estuam de vida e de ataques aos sistemas que não sejam os seus, não passam, afinal, de moralistas de meia tigela. Mas a foto do antigo Largo do Pelourinho é mais um mural perfeito para a resenha histórica que lhe fica apensa.


A lei e a taxa
ANTÓNIO BARRETO
DN, 11/2/18
Perante um governo de esquerda ou de direita, é frequente a complacência e elevado o grau de impunidade à esquerda ou à direita. Câmara ou governo de esquerda: a esquerda perdoa-lhes tudo. Câmara ou governo de direita: a direita perdoa.
No entanto, parece que a impunidade da esquerda é maior. Parece e é. Na verdade, a esquerda tem mais o hábito de protestar do que a direita. A direita acha que o poder, o nome e a fortuna tudo resolvem, enquanto a esquerda acha que é o protesto, a manifestação e a greve que decidem. Por isso se sente mais o silêncio da esquerda do que o da direita. Também ajuda o ambiente na comunicação social que é predominantemente de esquerda, o que confirma o aparente grau de impunidade de que esta goza.
A taxa de protecção civil decretada pela Câmara de Lisboa é um belo exemplo. Poucos protestaram quando foi criada. À esquerda, quase ninguém. A câmara era de esquerda. Era um imposto. Aumentam as receitas do Estado (da câmara). Ainda por cima, tem uma aparente utilidade social.
A taxa, aprovada pela Câmara de Lisboa em 2015, foi cobrada durante três anos. Rendeu milhões de euros. O acórdão do Tribunal Constitucional (848-2017 de 13 de Dezembro de 2017) considerou-a inconstitucional. A pequena história desta taxa e deste acórdão merece atenção e é uma boa história moral.
A câmara recebeu dezenas de milhões de euros. Algumas pessoas exprimiram dúvidas sobre a legalidade da taxa. Poucas deram importância ao facto. Cerca de 200 mil famílias residentes em Lisboa pagaram perto de 60 milhões de euros! Ao fim de três anos, após queixa do Provedor de Justiça (repare-se bem: nenhum partido ou deputado apresentou queixa!), o Tribunal Constitucional declarou a taxa inconstitucional. A câmara viu-se obrigada a devolver o indevidamente cobrado. Praticamente, ninguém lhe caiu em cima, por ter feito mais uma taxa, nem por ter tomado uma medida ilegal, ainda menos por ter mostrado incompetência jurídica.
As coisas são assim e são o que são. A ilegalidade da câmara é considerada benigna. A câmara vai incomodar mais uma vez os cidadãos, obrigá-los a ir aos Correios e ao banco, a ir levantar o cheque ou a carta registada, a ir depositar o mesmo. Uma ou várias vezes. Não vai pagar juros por três anos do empréstimo forçado. Já prometeu que vai inventar qualquer coisa que não pareça um imposto, mas que dê receitas, quem sabe se ainda mais do que com a taxa ilegal. O presidente da câmara já acusa o Parlamento de não ter legislado como deve ser. Na assembleia municipal, o PSD e o CDS propõem agora que a câmara pague juros.
Só falta contar a história da família CB, residente em Lisboa. Não pagou a taxa em 2015 porque não reparou. Mas pagou 2016 e 2017. Em 23 de Dezembro de 2017, recebeu uma ameaçadora admoestação da câmara e dos serviços de contencioso: têm um mês para pagar os 58 euros de taxa relativos a 2015, assim como uma taxa de justiça, encargos e juros de mora, sim, juros de mora, num total de 28 euros a acrescentar aos 58. Por ironia do destino, a família CB recebeu o aviso de pagamento e a ameaça judicial 15 dias depois de a taxa ter sido considerada ilegal e inconstitucional.
A família CB foi aos competentes serviços da câmara esclarecer o caso. Foi-lhe dito que tinha de pagar. O facto de ser ilegal não tinha qualquer espécie de importância. Tinha de pagar já e depois logo se via. Perguntou também se a câmara ia devolver as taxas cobradas e quando. Foi dito que sim, mas não sabiam quando, nem em quantas prestações. Perguntou ainda se iriam receber o que agora eram obrigados a pagar. Foi-lhes dito que em princípio sim, receberiam de volta, só que não sabiam quando. Perguntou finalmente se a câmara iria pagar juros, tal como, aliás, a família CB se preparava para pagar relativamente ao atraso de 2015. Foi-lhes dito que não, a câmara não pagava juros. O que aliás, no telejornal dessa noite, o presidente da câmara confirmou: não, não se pagam juros!

As minhas fotografias
Praça do Município e Rua do Arsenal, em Lisboa O antigo Largo do Pelourinho é um local rico de história. Ali, na varanda da câmara municipal, a 5 de Outubro de 1910, o senhor José Relvas proclamou a República. À direita, fica a Rua do Arsenal, em cuja esquina com o Terreiro do Paço, poucos metros à frente, Costa e Buíça assassinaram o rei D. Carlos e seu filho D. Luís Filipe. Ali, a 25 de Abril de 1974, Salgueiro Maia aceitou a rendição das forças fiéis ao regime. Ali, na câmara, foi presidente Aquilino Ribeiro Machado, o primeiro eleito da democracia, filho de Aquilino Ribeiro que, setenta anos antes, tinha conspirado para matar o rei D Carlos. Ali, foram presidentes de câmara Jorge Sampaio, futuro presidente da República, Pedro Santana Lopes e António Costa, mais tarde primeiros-ministros. Ali, o presidente Cavaco Silva, em manhã inesquecível, içou a bandeira de Portugal ao contrário, com os castelos virados de pernas para o ar. Ali em frente, do outro lado da rua, fica o Tribunal da Relação de Lisboa, tão falado actualmente. Ali, Eduardo Nery desenhou esta calçada tão bem conservada.


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