São já repetidos os temas,
tratados por várias pessoas, e estas duas – Francisco Assis e
João Miguel Tavares – são das que apetece ler, o primeiro, pela sua lisura
e seriedade de comentário, além de uma delicadeza que encanta pelo que contém
de inesperada nobreza, num país onde todos nos encrespamos facilmente; o
segundo, pela juvenilidade exigente de bom senso, numa frontalidade que obriga
a ponderar. O primeiro, uma vez mais sobre a “garridice” governativa do PR, e
sobre a necessidade do PM se definir nas suas políticas de alianças. O segundo,
sobre o desastre vergonhoso de um país sujeito a tanto lodaçal, que é
indispensável lavar. Textos educativos, num país onde a deseducação está tão
assustadoramente visível, textos que se agradecem, como o pão para a boca.
OPINIÃO
I TEXTO: Tempos de
clarificação
A partir de agora já não
basta justificar o entendimento à esquerda por razões negativas. É preciso ir
mais longe.
PÚBLICO, 25 de Janeiro de 2018
1. A propósito da
actuação prosseguida por Marcelo Rebelo de Sousa como Presidente da República
têm-se dito e escrito coisas mirabolantes. Filósofos e cientistas chamados a
opinar acerca da presidência dos afectos ofereceram-nos curiosas digressões
intelectuais providas de múltiplos méritos, mas um pouco desatentas a um dado
que me parece essencial — a excessiva valorização da dimensão afectiva no
discurso e no debate políticos pode abrir as portas à prevalência da
irracionalidade.
Faço uma leitura
positiva do comportamento político adoptado pelo actual Presidente nos dois
anos que leva de mandato. Agiu sempre com independência em relação aos demais
agentes políticos, assegurou a devida cooperação com os outros órgãos de
soberania e esteve presente nos momentos mais críticos do nosso percurso
nacional. Por tudo isso mereceu e merece o reconhecimento da esmagadora maioria
da população portuguesa, que se revê de tal modo na sua figura que esta se
coloca mesmo já para além do limite da representação e entra no espaço
simbólico da corporização do próprio sujeito político nacional. Como já aqui
escrevi, tal facto seria perigoso se Marcelo não fosse o homem culto, o jurista
eminente e o político probo que ele é. Tudo isso, contudo, não afasta o risco a
que aludi anteriormente e que excede em muito a personalidade e o comportamento
do Presidente da República. A transformação da afectividade numa
categoria política central perturba a qualidade do debate democrático,
prejudica o conteúdo da decisão política e permeabiliza o regime a discursos de
natureza demagógica. Proporciona, desde logo, uma perniciosa amálgama entre
dimensões de natureza completamente diversa: associam-se e confundem-se
sucessos desportivos, êxitos em certames do tipo Euro-festival da canção e
folclóricos reconhecimentos internacionais de supostas virtudes indígenas, com
reais e sérias vitórias obtidas noutros campos da actividade nacional. Ora,
esta situação pode revelar-se a prazo muito nefasta.
É certo que o ambiente
de permanente celebração festiva com que a maioria parlamentar de esquerda agiu
desde início concorreu fortemente para esta relativa dissolução da dimensão
política no grande magma de uma afectividade neutral. Essa dissolução serviu
durante algum tempo os propósitos de um governo empenhado em superar as
suspeitas de uma ilegitimidade genética e apostado em projectar uma imagem
salvífica por contraponto a uma anterior governação devidamente anatematizada
como a encarnação do mal, da insensibilidade social e da incompetência na
condução das políticas económica e orçamental. Não há como a efervescência dos
afectos para adornar a ideia de instauração de um tempo radicalmente novo. O que
é curioso é que haja filósofos e cientistas que caiam em tal esparrela.
Dois anos depois da
eleição de Marcelo, por muito contra a corrente que a minha posição seja, e é-o
sem dúvida alguma, considero que a hipervalorização do discurso da afectividade
contém perigos sérios e pode concorrer para o desprestígio da dimensão política
no que ela necessariamente encerra de racionalidade, distanciamento crítico,
lentidão temporal e recato espacial. De resto, a forma como alguns agentes
políticos estão apressadamente a tratar assuntos de transparência institucional
e política constitui já um significativo sintoma de tudo aquilo a que atrás
aludi. Marcelo nunca se deve esquecer que nem todos têm a sua inteligência, a
sua cultura e a sua formação intelectual.
2. Até esta
semana, a chamada “geringonça” era o produto de uma necessidade. Desde
há uns dias passou a ser um acto de vontade. Isso muda muita coisa. Desde
logo obriga a uma aclaração programática. Se a actual direcção do PS proclama
que quer continuar a governar com o apoio dos partidos da extrema-esquerda
parlamentar, recusando qualquer possibilidade de aproximação ao PSD, passa a
ter o dever de explicitar com todo o rigor a natureza do programa que preconiza
e que obviamente se não pode resumir ao minúsculo perímetro do entendimento
alcançado há dois anos com o assumido objectivo de afastar o PSD e o CDS do
poder. A partir de agora já não basta justificar o entendimento à
esquerda por razões negativas. É preciso ir mais longe, apresentar um projecto
de médio e longo prazo para o país associado a este acordo politico-partidário.
Isso implica uma definição rigorosa de opções programáticas em áreas tão
importantes como o modelo de desenvolvimento económico, o tipo de organização
do Estado Social, a natureza da integração do país no processo europeu e as
características essenciais de toda a política a prosseguir no âmbito da acção
externa. Até agora, porque se enfatizavam as razões negativas,
convivia-se com relativa facilidade com a ilusão de que é possível governar com
o apoio de partidos de quem aparentemente se discorda em tudo o que a prazo é
estrutural e decisivo. O tempo dessa ilusão está a chegar ao fim. Das
duas, uma: ou o PS altera substancialmente aspectos fundamentais daquilo que
foi até hoje a sua própria identidade, ou os partidos à sua esquerda renunciam
a elementos determinantes das suas características doutrinárias presentes. A
alternativa a esta clarificação é vivermos num estado pantanoso e
permanentemente ilusório que pode suscitar epidérmicos aplausos momentâneos,
mas nos afasta das questões essenciais do nosso futuro.
II TEXTO: Sim, vivemos num país
profundamente corrupto
Já é hora de deixar de acreditar no Pai Natal e enfrentar a triste
realidade: a cunha, o arranjinho e o amiguismo são a regra em Portugal.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 1 de Fevereiro de 2018
No momento em que as suspeitas de corrupção atingem o Tribunal da
Relação de Lisboa, depois de terem chegado a um ex-primeiro-ministro de
Portugal e a figuras de topo da banca e das grandes empresas, se calhar já vai
sendo hora de admitir que o país tem um gravíssimo problema com a corrupção,
e que combatê-la deveria ser uma prioridade absoluta do Estado e da sociedade
no seu todo.
Aquilo que acabo de escrever pode parecer uma banalidade, mas
infelizmente não é — e não é porque a crítica à corrupção portuguesa vem
sempre acompanhada de uma série de ressalvas piedosas, que me parecem cada vez
mais insuportáveis. Ressalvas como: “cuidado com o populismo; não sejamos
sensacionalistas; convém não generalizar”. Ora, o meu ponto é precisamente
este: convém generalizar. Mais: é fundamental generalizar. E é essencial não
confundir a denúncia violenta da corrupção com uma qualquer cedência ao
populismo.
O país tem de ser cada vez mais rigoroso nos seus códigos de ética
exactamente porque o tráfico de influências é o pão nosso de cada dia. Quando o Ministério das Finanças é
vasculhado pelo Ministério Público à procura de favores praticados por Mário
Centeno em troca de dois bilhetes para a bola, tudo indica haver uma
desproporção enorme entre a gravidade da busca e o ridículo do crime em causa.
Eu junto-me àqueles que esperam que as autoridades judiciais tenham andado a
explorar algo mais do que um par de assentos no camarote presidencial do Estádio
da Luz. Mas isso não significa que Centeno tenha procedido bem. Na verdade,
procedeu muito mal, e é crucial que todos tenhamos consciência — a começar pelo
ministro das Finanças — de que o país necessita de estabelecer rapidamente
um ring-fencing absoluto entre a política e o futebol.
A razão é óbvia: existe uma altíssima probabilidade de os negócios da
bola envolverem dinheiro sujo e operações ilegais. Qualquer pessoa que
acompanhe o futebol português com um módico de atenção sabe que nem Luís Filipe
Vieira, nem Bruno de Carvalho, nem Pinto de Costa são personagens
recomendáveis. As instituições a que presidem merecem todo o respeito
institucional, mas as suspeitas que recaem, ou recaíram, sobre eles deveriam
obrigar todos os políticos eleitos a manterem-se à distância.
Ainda esta semana, Paulo Macedo, presidente da Caixa, recordava uma
declaração de 2016 de Subir Lall, antigo chefe de missão do FMI: “Os bancos,
de forma geral, não se focam no lucro. Parecem estar muito mais concentrados
numa actividade bancária assente nas relações.” Esta prioridade
dada às relações deve ser extrapolada para quase tudo em Portugal, e certamente
para as amizades entre presidentes de clubes, políticos, banqueiros e juízes.
Luís Filipe Vieira recebe zero euros de ordenado do Benfica, cargo que
ocupa há 14 anos. A sua justificação: “O lugar de presidente do Benfica não é
um cargo, mas sim uma missão que deve ser desempenhada em regime de
voluntariado.” Explicação linda — mas que não convence nem a águia Vitória. Um
empresário só pode estar há década e meia a trabalhar de manhã à noite por zero
euros se as vantagens indirectas forem milionárias: influência, poder, crédito,
ou, para citar Subir Lall, “relações”. Toda a gente sabe isto. Toda a gente vê
isto. Já é hora de deixar de acreditar no Pai Natal, acabar de uma vez por
todos com a conversa do populismo, e enfrentar a triste realidade: a cunha, o
arranjinho e o amiguismo são a regra em Portugal. Não são a excepção.
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