Nos tempos ternurentos do meu primeiro ano de Coimbra
a sós, compravam-se gravatas aos ciganos, que pediam cem escudos e logo as
vendiam por dois - como eu vi fazer a um tio meu, na baixa coimbrã, e que logo
desdenhou da gravata, chamando ciganão ao cigano mesureiro como fizera Carlos
da Maia ao judeu Abraão na sua loja de bric-à-brac, em quadro transbordante de
graça descritiva, reveladora da idiossincrasia de um povo – neste caso, judeu:
«Nessa tarde, ás seis
horas, Carlos, ao descer a rua do Alecrim para o Hotel Central, avistou Craft
dentro da loja de bric-a-brac do tio Abraão. Entrou. O velho judeu, que estava
mostrando a Craft uma falsa faiança do Rato, arrancou logo da cabeça o sujo
barrete de borla, e ficou curvado em dois, diante de Carlos, com as duas mãos
sobre o coração. Depois, numa linguagem exótica, misturada de inglês, pediu ao
seu bom senhor D. Carlos da Maia, ao seu digno senhor, ao seu beautiful
gentleman, que se dignasse examinar uma maravilhazinha que lhe tinha reservada;
e o seu muito generous gentleman tinha só a voltar os olhos, a maravilhazinha
estava ali ao lado, numa cadeira. Era um retrato de espanhola, apanhado a
fortes brochadelas de primeira impressão, e pondo, sobre um fundo audaz de cor
de rosa murcha, uma face gasta de velha garça, picada das bexigas, caiada,
ressudando vício, com um sorriso bestial que prometia tudo. Carlos,
tranquilamente, ofereceu dez tostões. Craft pasmou duma tal prodigalidade; e o
bom Abraão, num riso mudo que lhe abria entre a barba grisalha uma grande boca
dum só dente, saboreou muito a «chalaça dos seus ricos senhores.» Dez tostõezinhos!
Se o quadrinho tivesse por baixo o nomezinho de Fortuny, valia dez continhos de
réis. Mas não tinha esse nomezinho bendito... Ainda assim valia dez notazinhas-de
vinte mil réis... - Dez cordas para te enforcar, hebreu sem alma! exclamou
Carlos. E saíram, deixando o velho intrujão à porta, curvado em dois, com as
mãos sobre o coração, desejando mil felicidades aos seus generosos fidalgos...»
Também por essa altura, ou
antes ainda da “encantada Coimbra”, Amália Rodrigues presenteara-nos com a sua “Carmencita”,
que não resisto, igualmente, a transcrever, para confronto de épocas,
fazendo-me reviver tempos de uma adolescência entusiasta em imitar, cantando,
as canções que a rádio difundia:
Carmencita
Chamava-se Carmencita
A cigana mais bonita
Do que um sonho, uma visão
A cigana mais bonita
Do que um sonho, uma visão
Diziam que era a cigana,
Mais linda da caravana,
Mas não tinha coração(2x)
Mais linda da caravana,
Mas não tinha coração(2x)
Os afagos, os carinhos
Perdeu- os pelos caminhos
Sem nunca os ter conhecido
Perdeu- os pelos caminhos
Sem nunca os ter conhecido
Anda buscando a aventura
Como quem anda a procura
De um grão de areia perdido
Como quem anda a procura
De um grão de areia perdido
Numa noite , de luar,
Ouviram o galopar
De dois cavalos fugindo
Ouviram o galopar
De dois cavalos fugindo
Carmencita, linda garça
Renegando a sua raça,
Foi atrás de um sonho lindo(2x)
Renegando a sua raça,
Foi atrás de um sonho lindo(2x)
Com esta canção magoada
Se envolve no pó da estrada
Quando passa a caravana
Se envolve no pó da estrada
Quando passa a caravana
Carmencita, Carmencita
Se não fosses tão bonita,
Serias sempre cigana(2x)
Se não fosses tão bonita,
Serias sempre cigana(2x)
Outros fados mais sensuais se
lhe seguiram, sobre ciganos ardentes, que a Internet facilmente nos faz
reviver, mas indiscutivelmente a democracia trouxe-nos jeitos de virtude que não
permitem que se utilizem esses nomes poderosamente evocativos de trapacice,
tais as designações injuriosas de cigano, ciganice, ciganagem, etc. etc.
Alberto Gonçalves, como
sempre, aponta o jeito – neste caso de cobardia, inclusa no “politicamente
correcto” da nossa actual postura anti-racista, mau grado a evolução sofrida
por esse povo dissidente que cada vez mais se marginaliza, em orgulho
fundamentalista, e hoje mais afoito em arrogância próxima do terrorismo, que a
nossa cobardia prefere considerar como vítima de uma sociedade prepotente e
cruel.
Como sempre, um Alberto Gonçalves incisivo e certeiro - no
retrato nosso e deles – sem tréguas na sua mordacidade.
Não havia sapos à porta do São João
OBSERVADOR, 17/2/18
Em teoria, eu deveria achar certa graça à fúria com que os ciganos
investem contra o Estado. Na prática, a graça perde-se no zelo com que reclamam
os respectivos benefícios.
Durante o Estado Novo, os jornais fintavam a censura mediante palavras
ou expressões que diziam mais do que o explícito: ainda que tosco, o “código”
permitia ler o que não estava escrito. Hoje, no Estado Novíssimo a que
chegámos, pouco mudou. A censura e os “códigos” mantêm-se, simplesmente a
primeira é obra dos próprios jornalistas e os segundos, sempre toscos,
pretendem ocultar em vez de revelar.
De acordo com o “Jornal de Notícias”, “pelo menos quatro
indivíduos agrediram dois enfermeiros, um auxiliar de enfermagem e um
segurança, na triagem do serviço de Urgência do Hospital de São João, no Porto,
terça-feira à noite”. Segundo a RTP, “profissionais de hospital do Porto
[foram] agredidos por grupo que tentou atropelar polícia”. O “Sol”
confirma que “grupo [tentou] atropelar polícia depois de agredir
enfermeiros no Hospital S. João”. O “Público” esclarece que “cerca de
dez pessoas estiveram envolvidas nos desacatos”. O “Expresso” volta
a esclarecer: “um grupo de aproximadamente dez pessoas – familiares
que acompanhavam um doente – agrediu com ‘socos e pontapés’ dois
enfermeiros, um auxiliar e um segurança da unidade de saúde”. O “Diário de
Notícias” avança com um motivo: “enfermeiros agredidos no Hospital
de São João devido a demora no atendimento”. Aqui o Observador fala num
“‘número indeterminado’ de pessoas” que “agrediram selvaticamente quatro
profissionais do serviço de urgência”.
Quem será essa violenta e indeterminada gente? Neoliberais em protesto
contra a função pública? Uma misteriosa associação de Lesados do Estado?
Claques da bola? Uma delegação de homeopatas? Alcoólicos anónimos? Alcoólicos
identificados? Cientologistas? Xintoístas? Os “media” não explicaram e, palpita-me, a
polícia anda igualmente à nora. A menos, claro, que os responsáveis pela
investigação olhem para as “caixas” de comentários nos sites dos “media” citados,
onde os participantes em rodapé perceberam num ápice que “o grupo”, “os indivíduos” ou as “pessoas”
eram uma festiva agremiação de ciganos.
Ciganos, vírgula, que essa é designação caída
em desuso e punida pela moral. É preferível falar de indivíduos de etnia
cigana. Porém, se
não queremos parecer brutos, é melhor falar de membros do povo rom (“roma” é
plural – isto é importantíssimo). Aliás, sobretudo se o assunto envolve delinquência ou crime, o ideal é
nem falar de nada e de todo. Dá-se a notícia de forma vaga, com o tipo de hesitação cautelosa que
por exemplo marca os atentados cometidos por camiões ou navalhas nas cidades
europeias. O
fundamental é evitar a discriminação.
Também não aprecio discriminações e, por princípio, não vejo grande
utilidade em mencionar a “raça” dos causadores de uma baderna. A questão
é que, excepto se se aceitar um conceito discutível, não interessa
definir os ciganos enquanto “raça”, e sim enquanto cultura. Uma cultura coesa e
ancestral, com valores tradicionais e uma série de comportamentos relativamente
padronizados e reconhecíveis. Um comportamento típico, que 99% dos
profissionais de saúde poderão certificar, consiste em invadir hospitais ao
berro e abandoná-los ao pontapé.
Os ciganos possuem inúmeros comportamentos típicos, muitos deles com o
curioso recurso ao berro e ao pontapé. Tudo decorre da peculiar maneira com que
essa comunidade olha o mundo “exterior”: um território de privilégios infinitos e zero
deveres. Em teoria,
eu deveria achar certa graça à fúria com que os ciganos investem contra o
Estado (por razões
que não vêm ao caso, apetecia-me invadir a Direcção Geral de Energia com uma
bazuca). Na prática,
a graça perde-se no zelo com que reclamam os respectivos benefícios. Outras
características fascinantes passam pela amabilidade que dispensam às mulheres,
o empenho que devotam à educação e, descontados os carros, os televisores e
demais pechisbeques, a abertura a qualquer avanço civilizacional posterior
ao século VII.
Um estudioso da temática, que conheci em tempos, garantia-me
que a cultura cigana é a do atraso de vida. Tamanha franqueza
limitava-se ao consumo privado. Em público, a vigilância da linguagem e do
pensamento obriga a que se repitam clichés gordurosos acerca da
“identidade” e da “integração” como se os conceitos não fossem frequentemente
incompatíveis. E como se a culpa pela evidente marginalidade dos ciganos
fosse nossa.
Admita-se que a culpa é um bocadinho nossa (embora não seja minha). Permitir, sob determinados e absurdos critérios, que
um conjunto de cidadãos saltite por aí à revelia da lei e dos hábitos não é
exibir tolerância: é conceder impunidade. E – estrebuche-se à vontade – notar
este desagradável facto não é “racismo”, “xenofobia”, “preconceito” ou
“discriminação”. Discriminação é tratar alguém
de modo diferente. E, através do cínico “respeito” pela “diferença”, condenar
milhares de criaturas a uma existência quase primitiva, além de condenar as
suas vítimas a tratamento médico.
Eu sei. Sei que generalizo. Sei que nem todos os ciganos gostam de
demolir propriedade e costelas alheias. Nem todos utilizam a escola dos filhos
para receber subsídios. Nem todos habitam a espécie de limbo em que o país os
largou. Acontece apenas que, à semelhança dos chineses e o arroz, ou dos
sindicalistas e o parasitismo, uma razoável quantidade de ciganos exerce, sem a
sanção dos pares, as actividades que os celebrizaram. Até que os ciganos decentes evitem os
restantes, evito-os eu – se puder. Os “media” podem.
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