sábado, 17 de fevereiro de 2018

Evolução


Nos tempos ternurentos do meu primeiro ano de Coimbra a sós, compravam-se gravatas aos ciganos, que pediam cem escudos e logo as vendiam por dois - como eu vi fazer a um tio meu, na baixa coimbrã, e que logo desdenhou da gravata, chamando ciganão ao cigano mesureiro como fizera Carlos da Maia ao judeu Abraão na sua loja de bric-à-brac, em quadro transbordante de graça descritiva, reveladora da idiossincrasia de um povo – neste caso, judeu:
«Nessa tarde, ás seis horas, Carlos, ao descer a rua do Alecrim para o Hotel Central, avistou Craft dentro da loja de bric-a-brac do tio Abraão. Entrou. O velho judeu, que estava mostrando a Craft uma falsa faiança do Rato, arrancou logo da cabeça o sujo barrete de borla, e ficou curvado em dois, diante de Carlos, com as duas mãos sobre o coração. Depois, numa linguagem exótica, misturada de inglês, pediu ao seu bom senhor D. Carlos da Maia, ao seu digno senhor, ao seu beautiful gentleman, que se dignasse examinar uma maravilhazinha que lhe tinha reservada; e o seu muito generous gentleman tinha só a voltar os olhos, a maravilhazinha estava ali ao lado, numa cadeira. Era um retrato de espanhola, apanhado a fortes brochadelas de primeira impressão, e pondo, sobre um fundo audaz de cor de rosa murcha, uma face gasta de velha garça, picada das bexigas, caiada, ressudando vício, com um sorriso bestial que prometia tudo. Carlos, tranquilamente, ofereceu dez tostões. Craft pasmou duma tal prodigalidade; e o bom Abraão, num riso mudo que lhe abria entre a barba grisalha uma grande boca dum só dente, saboreou muito a «chalaça dos seus ricos senhores.» Dez tostõezinhos! Se o quadrinho tivesse por baixo o nomezinho de Fortuny, valia dez continhos de réis. Mas não tinha esse nomezinho bendito... Ainda assim valia dez notazinhas-de vinte mil réis... - Dez cordas para te enforcar, hebreu sem alma! exclamou Carlos. E saíram, deixando o velho intrujão à porta, curvado em dois, com as mãos sobre o coração, desejando mil felicidades aos seus generosos fidalgos...»

Também por essa altura, ou antes ainda da “encantada Coimbra”, Amália Rodrigues presenteara-nos com a sua “Carmencita”, que não resisto, igualmente, a transcrever, para confronto de épocas, fazendo-me reviver tempos de uma adolescência entusiasta em imitar, cantando, as canções que a rádio difundia:
Carmencita
 Chamava-se Carmencita
A cigana mais bonita
Do que um sonho, uma visão
Diziam que era a cigana,
Mais linda da caravana,
Mas não tinha coração(2x)
Os afagos, os carinhos
Perdeu- os pelos caminhos
Sem nunca os ter conhecido
Anda buscando a aventura
Como quem anda a procura
De um grão de areia perdido
Numa noite , de luar,
Ouviram o galopar
De dois cavalos fugindo
Carmencita, linda garça
Renegando a sua raça,
Foi atrás de um sonho lindo(2x)
Com esta canção magoada
Se envolve no pó da estrada
Quando passa a caravana
Carmencita, Carmencita
Se não fosses tão bonita,
Serias sempre cigana(2x)
Outros fados mais sensuais se lhe seguiram, sobre ciganos ardentes, que a Internet facilmente nos faz reviver, mas indiscutivelmente a democracia trouxe-nos jeitos de virtude que não permitem que se utilizem esses nomes poderosamente evocativos de trapacice, tais as designações injuriosas de cigano, ciganice, ciganagem, etc. etc.
Alberto Gonçalves, como sempre, aponta o jeito – neste caso de cobardia, inclusa no “politicamente correcto” da nossa actual postura anti-racista, mau grado a evolução sofrida por esse povo dissidente que cada vez mais se marginaliza, em orgulho fundamentalista, e hoje mais afoito em arrogância próxima do terrorismo, que a nossa cobardia prefere considerar como vítima de uma sociedade prepotente e cruel.
Como sempre, um Alberto Gonçalves incisivo e certeiro - no retrato nosso e deles – sem tréguas na sua mordacidade.

Não havia sapos à porta do São João
OBSERVADOR, 17/2/18
Em teoria, eu deveria achar certa graça à fúria com que os ciganos investem contra o Estado. Na prática, a graça perde-se no zelo com que reclamam os respectivos benefícios.
Durante o Estado Novo, os jornais fintavam a censura mediante palavras ou expressões que diziam mais do que o explícito: ainda que tosco, o “código” permitia ler o que não estava escrito. Hoje, no Estado Novíssimo a que chegámos, pouco mudou. A censura e os “códigos” mantêm-se, simplesmente a primeira é obra dos próprios jornalistas e os segundos, sempre toscos, pretendem ocultar em vez de revelar.
De acordo com o “Jornal de Notícias”, “pelo menos quatro indivíduos agrediram dois enfermeiros, um auxiliar de enfermagem e um segurança, na triagem do serviço de Urgência do Hospital de São João, no Porto, terça-feira à noite”. Segundo a RTP, “profissionais de hospital do Porto [foram] agredidos por grupo que tentou atropelar polícia”. O “Sol” confirma que “grupo [tentou] atropelar polícia depois de agredir enfermeiros no Hospital S. João”. O “Público” esclarece que “cerca de dez pessoas estiveram envolvidas nos desacatos”. O “Expresso” volta a esclarecer: “um grupo de aproximadamente dez pessoasfamiliares que acompanhavam um doente – agrediu com ‘socos e pontapés’ dois enfermeiros, um auxiliar e um segurança da unidade de saúde”. O “Diário de Notíciasavança com um motivo: “enfermeiros agredidos no Hospital de São João devido a demora no atendimento”. Aqui o Observador fala num “‘número indeterminado’ de pessoas” que “agrediram selvaticamente quatro profissionais do serviço de urgência”.
Quem será essa violenta e indeterminada gente? Neoliberais em protesto contra a função pública? Uma misteriosa associação de Lesados do Estado? Claques da bola? Uma delegação de homeopatas? Alcoólicos anónimos? Alcoólicos identificados? Cientologistas? Xintoístas? Os “media” não explicaram e, palpita-me, a polícia anda igualmente à nora. A menos, claro, que os responsáveis pela investigação olhem para as “caixas” de comentários nos sites dos “media” citados, onde os participantes em rodapé perceberam num ápice que “o grupo”, “os indivíduos” ou as “pessoas” eram uma festiva agremiação de ciganos.
Ciganos, vírgula, que essa é designação caída em desuso e punida pela moral. É preferível falar de indivíduos de etnia cigana. Porém, se não queremos parecer brutos, é melhor falar de membros do povo rom (“roma” é plural – isto é importantíssimo). Aliás, sobretudo se o assunto envolve delinquência ou crime, o ideal é nem falar de nada e de todo. Dá-se a notícia de forma vaga, com o tipo de hesitação cautelosa que por exemplo marca os atentados cometidos por camiões ou navalhas nas cidades europeias. O fundamental é evitar a discriminação.
Também não aprecio discriminações e, por princípio, não vejo grande utilidade em mencionar a “raça” dos causadores de uma baderna. A questão é que, excepto se se aceitar um conceito discutível, não interessa definir os ciganos enquanto “raça”, e sim enquanto cultura. Uma cultura coesa e ancestral, com valores tradicionais e uma série de comportamentos relativamente padronizados e reconhecíveis. Um comportamento típico, que 99% dos profissionais de saúde poderão certificar, consiste em invadir hospitais ao berro e abandoná-los ao pontapé.
Os ciganos possuem inúmeros comportamentos típicos, muitos deles com o curioso recurso ao berro e ao pontapé. Tudo decorre da peculiar maneira com que essa comunidade olha o mundo “exterior”: um território de privilégios infinitos e zero deveres. Em teoria, eu deveria achar certa graça à fúria com que os ciganos investem contra o Estado (por razões que não vêm ao caso, apetecia-me invadir a Direcção Geral de Energia com uma bazuca). Na prática, a graça perde-se no zelo com que reclamam os respectivos benefícios. Outras características fascinantes passam pela amabilidade que dispensam às mulheres, o empenho que devotam à educação e, descontados os carros, os televisores e demais pechisbeques, a abertura a qualquer avanço civilizacional posterior ao século VII.
Um estudioso da temática, que conheci em tempos, garantia-me que a cultura cigana é a do atraso de vida. Tamanha franqueza limitava-se ao consumo privado. Em público, a vigilância da linguagem e do pensamento obriga a que se repitam clichés gordurosos acerca da “identidade” e da “integração” como se os conceitos não fossem frequentemente incompatíveis. E como se a culpa pela evidente marginalidade dos ciganos fosse nossa.
Admita-se que a culpa é um bocadinho nossa (embora não seja minha). Permitir, sob determinados e absurdos critérios, que um conjunto de cidadãos saltite por aí à revelia da lei e dos hábitos não é exibir tolerância: é conceder impunidade. E – estrebuche-se à vontade – notar este desagradável facto não é “racismo”, “xenofobia”, “preconceito” ou “discriminação”. Discriminação é tratar alguém de modo diferente. E, através do cínico “respeito” pela “diferença”, condenar milhares de criaturas a uma existência quase primitiva, além de condenar as suas vítimas a tratamento médico.
Eu sei. Sei que generalizo. Sei que nem todos os ciganos gostam de demolir propriedade e costelas alheias. Nem todos utilizam a escola dos filhos para receber subsídios. Nem todos habitam a espécie de limbo em que o país os largou. Acontece apenas que, à semelhança dos chineses e o arroz, ou dos sindicalistas e o parasitismo, uma razoável quantidade de ciganos exerce, sem a sanção dos pares, as actividades que os celebrizaram. Até que os ciganos decentes evitem os restantes, evito-os eu – se puder. Os “media” podem.



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