Se os Franceses não têm a bossa épica, segundo referência de Voltaire, que na sua “Henriade” tentou demonstrar o contrário, embora não desconhecesse a projecção da “Chanson de Roland”, bem podemos considerar quanto os Portugueses perdem em confronto dramático com os monstros consagrados da literatura europeia, Shakespeare, Molière, Racine, Corneille, Calderon, Goldoni, Marivaux, Beaumarchais, Óscar Wilde, Giraudoux, Pagnol, Anouilh, Sartre, Cocteau...
Com efeito, se Gil Vicente, como “pai” do teatro português, mantém ainda o lugar cimeiro na dramaturgia portuguesa, na graça da sua inspiração multifacetada, no sentido crítico e humanístico das mensagens dos seus autos e farsas, se Camões, no seu teatro, misto de popular e clássico, consegue maravilhar-nos ainda nas efusões líricas das suas personagens que imprimem aos seus textos dimensão psicológica, se a tragédia “A Castro” de António Ferreira nos causa igual admiração pela nobreza de um pensamento articulado com extrema elegância discursiva, cremos que Garrett constitui o fecho da pléiade dramatúrgica de maior protagonismo na literatura portuguesa. Com efeito, “O fidalgo aprendiz” de D. Francisco Manuel de Melo, o teatro de Régio, ou o de Torga, ou o de Pessoa pouco acrescentam ao valor literário dos respectivos autores.
Quanto a António José da Silva (1705-1739), bem se pode dizer que soube provocar o riso fácil, com o seu tipo de teatro de bonifrates ou fantoches, de humor apalhaçado e fantasia delirante, embora lhe não falte riqueza de linguagem e de conceito e conhecimento humanístico. Bernardo Santareno (1924-1980), ao contrário daquele, apresenta sombrios quadros de conflitos humanos, num teatro que, numa segunda fase, pretende ser de compromisso político e ataque ao sistema. Embora com expressiva arte na composição dramática, a ambos falta a leveza e a simplicidade da acção dramática que, para parafrasearmos Boileau, “manterá até ao fim o teatro cheio”.
Dois homens inscritos em épocas diferentes no tempo, ambos de pensamento livre, capazes de condenar a sociedade e o regime em que se integram, um pelo riso, outro pelo ataque enérgico, ambos condenados no mesmo tipo de sociedade anquilosada na sua estreiteza permanente – o primeiro a morrer queimado num auto-de-fé, o segundo a não ver representadas as peças da fase de denúncia, a que pertence “O JUDEU”.
Para compreendermos tal aberração do permanente atrofiamento cultural e social português, partiremos de um breve apontamento sobre as origens dele e sua evolução.
Assim, enquanto na Europa se dá, no século XVII, um movimento filosófico e científico que conduz à criação da ciência mecânica e do racionalismo moderno, com Descartes, Leibniz, Newton, Espinosa, em Portugal há um imobilismo cultural que sucede ao movimento renascentista de devassa dos novos mundos.
Artisticamente traduz-se pelo exagero, pelo fausto, pela imponência dos espectáculos de efeitos cénicos variados, tais como, recepções, touradas, autos-de-fé, procissões espaventosas, de origem nacional, ópera, música orquestral e vocal, coches monumentais, de influência estrangeira, igrejas de grande riqueza, com talha dourada, mármore, embutidos, mobiliário, relicários e tantas outras alfaias esplendorosas do culto católico...
A expressão artística e literária que se apelidou inicialmente de maneirismo seiscentista é, em Portugal, compatível com um sentimento de instabilidade e desequilíbrio, desencanto e decadência, resultante de condições sociais, políticas e culturais pouco favoráveis: a Inquisição (1540), como órgão de totalitarismo político, e de pressão social, cortando a tradição humanística do nosso Renascimento e a comunicação com a cultura europeia; a Contra-Reforma repressiva (iniciada na Europa com o Concílio de Trento em 1545-63, contra as heterodoxias reformistas), orientada, no Portugal católico, para a “questão judaica”, e dela resultando a intolerância e o obscurantismo da Igreja, uma fé rígida, fanática e formalista, manifesta nos autos-de-fé, no culto exterior, na censura inquisitorial; a Companhia de Jesus detendo o monopólio da educação, impondo o regresso a um estudo escolástico, reforçando a autoridade aristotélica, de pura habilidade conceptual, sem apoio nos valores da razão e do experimentalismo; a situação económica degradada, trazida pela deficiente manipulação das riquezas coloniais e pelo abandono da economia agrária; o domínio espanhol (1580-1640), com a extinção da corte portuguesa, resultante da derrota de Alcácer-Quibir, seguida da derrota do Prior do Crato em Alcântara. Tudo isso já sentido no século anterior, como “a austera, apagada e vil tristeza” da mensagem camoniana.
Na literatura, o artificialismo retórico, com esteriotipos específicos do formalismo barroco, traduz-se, em poesia, chamada gongórica na Península Ibérica, segundo uma atitude sensual, no rebuscamento formal, a que se chamou cultismo, pelo jogo de imagens, palavras e construções, e segundo uma atitude intelectual, no rebuscamento do conceito, como exercício de agudeza do engenho – o conceptismo - caracterizado pelo jogo de conceitos. Sendo essencialmento um exercício de actividade lúdica, que, no dizer de D. Francisco Manuel de Melo, “não exprime a vida mas distrai da vida”, excluindo dela, assim, a preocupação pessoal, a comoção religiosa ou as efusões da emoção pessoal, esta poesia conduz, todavia, a uma grande riqueza e perfeição no discurso em prosa, especialmente na oratória, com Vieira e Bernardes, no poligrafismo com D. Francisco Manuel de Melo.
Embora o século XVIII, seja o século do Iluminismo, do despotismo esclarecido, da crença no progresso da defesa dos direitos naturais – Liberdade, Igualdade – pelos Filósofos Enciclopedistas, a primeira parte do século rege-se, em Portugal, segundo os parâmetros do século anterior, sob o governo de um rei – D. João V – que beneficiando das riquezas obtidas com a colonização e exploração do Brasil, sobretudo, manteve o mesmo ritmo de governação absolutista, monopolista, aristocrática e esbanjadora, traduzida pelo fausto, a licenciosidade, o parasitismo, a repressão do povo, condenado desde sempre, em Portugal, à vileza de uma condição inferior - de servilismo em relação aos poderosos, fanatismo e bruteza em relação aos iguais, iliteracia permanente - por conveniência de uma governação assente na exploração do homem, como animal de carga, e no desrespeito pelo ser humano racional. Para além disso, a Inquisição tornar-se-á o instrumento do poder real para dominar a burguesia capitalista e intelectual, representada pelos cristãos-novos, à qual pertencia grande parte dos Estrangeirados, extorquindo-lhes os bens, e assim apoiar também os interesses económicos e culturais do clero, fechado ao progresso das “Luzes”, e os interesses económicos da aristocracia decadente.
Assim, tais características de uma sociedade de grandes desníveis económicos e sociais são bem traduzidas na narrativa dramática “O JUDEU” (1966) de Bernardo Santareno, cuja acção, situada temporalmente ao longo da primeira metade do século XVIII, se propõe destacar, em paralelo, a situação política e social do século XX salazarista.
Foi no século XVIII que viveu o Judeu António José da Silva, autor de peças teatrais cheias de humor e sátira – especialmente “Guerras do Alecrim e Manjerona” - é sobre esta época que se situa a acção da peça de Bernardo Santareno, “O JUDEU”, onde se ataca o regime de força, que condenou aquele à fogueira – e, dessa forma, em “metáfora temporal”, o regime de força salazarista, da vivência de Santareno.
Ambos, pois, repetimos, seres igualmente corajosos e livres, ao usarem a sua força criativa na denúncia dos erros e opressões sociais, um através da farsa provocadora do riso, outro pela funda ironia saliente nas figuras do cinismo, crueldade, despotismo e vileza que condenaram o primeiro, tão jovem, à fogueira, e se mantiveram, de certa forma, no tempo em que viveu Santareno, que na sua peça desejou demonstrar quanto as aberrações do despotismo podem cercear talentos ou impedir as criações do espírito, se não mesmo, perseguir e aniquilar os Rushdies de todos os tempos.
Com efeito, se Gil Vicente, como “pai” do teatro português, mantém ainda o lugar cimeiro na dramaturgia portuguesa, na graça da sua inspiração multifacetada, no sentido crítico e humanístico das mensagens dos seus autos e farsas, se Camões, no seu teatro, misto de popular e clássico, consegue maravilhar-nos ainda nas efusões líricas das suas personagens que imprimem aos seus textos dimensão psicológica, se a tragédia “A Castro” de António Ferreira nos causa igual admiração pela nobreza de um pensamento articulado com extrema elegância discursiva, cremos que Garrett constitui o fecho da pléiade dramatúrgica de maior protagonismo na literatura portuguesa. Com efeito, “O fidalgo aprendiz” de D. Francisco Manuel de Melo, o teatro de Régio, ou o de Torga, ou o de Pessoa pouco acrescentam ao valor literário dos respectivos autores.
Quanto a António José da Silva (1705-1739), bem se pode dizer que soube provocar o riso fácil, com o seu tipo de teatro de bonifrates ou fantoches, de humor apalhaçado e fantasia delirante, embora lhe não falte riqueza de linguagem e de conceito e conhecimento humanístico. Bernardo Santareno (1924-1980), ao contrário daquele, apresenta sombrios quadros de conflitos humanos, num teatro que, numa segunda fase, pretende ser de compromisso político e ataque ao sistema. Embora com expressiva arte na composição dramática, a ambos falta a leveza e a simplicidade da acção dramática que, para parafrasearmos Boileau, “manterá até ao fim o teatro cheio”.
Dois homens inscritos em épocas diferentes no tempo, ambos de pensamento livre, capazes de condenar a sociedade e o regime em que se integram, um pelo riso, outro pelo ataque enérgico, ambos condenados no mesmo tipo de sociedade anquilosada na sua estreiteza permanente – o primeiro a morrer queimado num auto-de-fé, o segundo a não ver representadas as peças da fase de denúncia, a que pertence “O JUDEU”.
Para compreendermos tal aberração do permanente atrofiamento cultural e social português, partiremos de um breve apontamento sobre as origens dele e sua evolução.
Assim, enquanto na Europa se dá, no século XVII, um movimento filosófico e científico que conduz à criação da ciência mecânica e do racionalismo moderno, com Descartes, Leibniz, Newton, Espinosa, em Portugal há um imobilismo cultural que sucede ao movimento renascentista de devassa dos novos mundos.
Artisticamente traduz-se pelo exagero, pelo fausto, pela imponência dos espectáculos de efeitos cénicos variados, tais como, recepções, touradas, autos-de-fé, procissões espaventosas, de origem nacional, ópera, música orquestral e vocal, coches monumentais, de influência estrangeira, igrejas de grande riqueza, com talha dourada, mármore, embutidos, mobiliário, relicários e tantas outras alfaias esplendorosas do culto católico...
A expressão artística e literária que se apelidou inicialmente de maneirismo seiscentista é, em Portugal, compatível com um sentimento de instabilidade e desequilíbrio, desencanto e decadência, resultante de condições sociais, políticas e culturais pouco favoráveis: a Inquisição (1540), como órgão de totalitarismo político, e de pressão social, cortando a tradição humanística do nosso Renascimento e a comunicação com a cultura europeia; a Contra-Reforma repressiva (iniciada na Europa com o Concílio de Trento em 1545-63, contra as heterodoxias reformistas), orientada, no Portugal católico, para a “questão judaica”, e dela resultando a intolerância e o obscurantismo da Igreja, uma fé rígida, fanática e formalista, manifesta nos autos-de-fé, no culto exterior, na censura inquisitorial; a Companhia de Jesus detendo o monopólio da educação, impondo o regresso a um estudo escolástico, reforçando a autoridade aristotélica, de pura habilidade conceptual, sem apoio nos valores da razão e do experimentalismo; a situação económica degradada, trazida pela deficiente manipulação das riquezas coloniais e pelo abandono da economia agrária; o domínio espanhol (1580-1640), com a extinção da corte portuguesa, resultante da derrota de Alcácer-Quibir, seguida da derrota do Prior do Crato em Alcântara. Tudo isso já sentido no século anterior, como “a austera, apagada e vil tristeza” da mensagem camoniana.
Na literatura, o artificialismo retórico, com esteriotipos específicos do formalismo barroco, traduz-se, em poesia, chamada gongórica na Península Ibérica, segundo uma atitude sensual, no rebuscamento formal, a que se chamou cultismo, pelo jogo de imagens, palavras e construções, e segundo uma atitude intelectual, no rebuscamento do conceito, como exercício de agudeza do engenho – o conceptismo - caracterizado pelo jogo de conceitos. Sendo essencialmento um exercício de actividade lúdica, que, no dizer de D. Francisco Manuel de Melo, “não exprime a vida mas distrai da vida”, excluindo dela, assim, a preocupação pessoal, a comoção religiosa ou as efusões da emoção pessoal, esta poesia conduz, todavia, a uma grande riqueza e perfeição no discurso em prosa, especialmente na oratória, com Vieira e Bernardes, no poligrafismo com D. Francisco Manuel de Melo.
Embora o século XVIII, seja o século do Iluminismo, do despotismo esclarecido, da crença no progresso da defesa dos direitos naturais – Liberdade, Igualdade – pelos Filósofos Enciclopedistas, a primeira parte do século rege-se, em Portugal, segundo os parâmetros do século anterior, sob o governo de um rei – D. João V – que beneficiando das riquezas obtidas com a colonização e exploração do Brasil, sobretudo, manteve o mesmo ritmo de governação absolutista, monopolista, aristocrática e esbanjadora, traduzida pelo fausto, a licenciosidade, o parasitismo, a repressão do povo, condenado desde sempre, em Portugal, à vileza de uma condição inferior - de servilismo em relação aos poderosos, fanatismo e bruteza em relação aos iguais, iliteracia permanente - por conveniência de uma governação assente na exploração do homem, como animal de carga, e no desrespeito pelo ser humano racional. Para além disso, a Inquisição tornar-se-á o instrumento do poder real para dominar a burguesia capitalista e intelectual, representada pelos cristãos-novos, à qual pertencia grande parte dos Estrangeirados, extorquindo-lhes os bens, e assim apoiar também os interesses económicos e culturais do clero, fechado ao progresso das “Luzes”, e os interesses económicos da aristocracia decadente.
Assim, tais características de uma sociedade de grandes desníveis económicos e sociais são bem traduzidas na narrativa dramática “O JUDEU” (1966) de Bernardo Santareno, cuja acção, situada temporalmente ao longo da primeira metade do século XVIII, se propõe destacar, em paralelo, a situação política e social do século XX salazarista.
Foi no século XVIII que viveu o Judeu António José da Silva, autor de peças teatrais cheias de humor e sátira – especialmente “Guerras do Alecrim e Manjerona” - é sobre esta época que se situa a acção da peça de Bernardo Santareno, “O JUDEU”, onde se ataca o regime de força, que condenou aquele à fogueira – e, dessa forma, em “metáfora temporal”, o regime de força salazarista, da vivência de Santareno.
Ambos, pois, repetimos, seres igualmente corajosos e livres, ao usarem a sua força criativa na denúncia dos erros e opressões sociais, um através da farsa provocadora do riso, outro pela funda ironia saliente nas figuras do cinismo, crueldade, despotismo e vileza que condenaram o primeiro, tão jovem, à fogueira, e se mantiveram, de certa forma, no tempo em que viveu Santareno, que na sua peça desejou demonstrar quanto as aberrações do despotismo podem cercear talentos ou impedir as criações do espírito, se não mesmo, perseguir e aniquilar os Rushdies de todos os tempos.
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