segunda-feira, 21 de setembro de 2009

“Olha que eu não te vou lá tapar”

Falava com a minha filha. Da Mafalda, a minha neta de quatro anos. Concordámos que as suas respostas a cada passo nos deixam surpreendidos. E contou-me nova história.
É certo que tenho vivido mergulhada em êxtase de avó. Como mãe, descurei um tanto o acompanhamento dos filhos, a profissão pouco tempo me deixando para lhes contar as histórias do seu adormecer, cuidando que, tal como sucedera comigo, cada um era livre – dentro das regras que já trouxera de casa, e que contribuem para a formação do carácter - fechando um pouco os olhos, todavia, às fugas, acima de tudo desejando que fossem felizes na liberdade, que não descurava, contudo, o desejo de que se saíssem bem como estudantes. Mas a filha foi, de facto, a mais cumpridora, não precisando tanto de que lhe vigiasse os cadernos, ela própria sabendo das suas dúvidas que, assim que desfeitas, a levavam a singrar no seu próprio caminho, com o entusiasmo da boa estudante que sempre foi. E hoje corrige-me os erros das minhas dúvidas ortográficas, que a idade e os acordos (com o fechado) ortográficos vão semeando no meu espírito. Todavia, estou convencida de que é necessário mais autoridade, conheço filhos de pais agricultores e merceeiros, cujos filhos, bons estudantes, ajudam os pais na lavoura, em tempo de férias. A liberdade, segundo os princípios da Constituição dos Direitos Humanos, ao maximizar a fragilidade infantil sob o domínio paterno ou docente, e os seus direitos à própria personalidade – tudo o que seja repressão significativo de autoritarismo e crueldade - instituiu o excesso de mimo como prática, e as crianças, sob o apoio da lei, tornam-se muitas vezes déspotas na escola como na família.
Ciente das dificuldades do viver futuro das crianças mais novas, aos netos mais novinhos – as mais velhinhas já no seu percurso de adultas, tendo deixado em mim igualmente as suas marcas de encanto - vou assistindo e vibrando com o seu trajecto, o Bruno, na doçura da sua sensibilidade e marotice, a Beatriz, a mais novinha, espantando-me com a sua ciência sobre as marcas dos carros e outras saídas vocabulares que vai buscar creio que às histórias do Panda, aos CDs que todos eles gostam de ver, às lições dos Infantários, e, naturalmente, ao acompanhamento familiar.
Todavia, a Mafalda, de longa data a todos tem espantado na articulação rápida do pensamento, de uma firmeza já notória nas fotos da sua primeira infância.
Eis a história transmitida pela tia:
A tia e a mãe jogavam a um jogo de computador em casa daquela, o tio deu-lhe um beliscão por brincadeira, a que reagiu, não educada ainda no politicamente correcto, em imediata queixa à mãe. O pai pô-la em contacto telefónico com a avó, dizendo-me ela que estava aborrecidinha, estado de espírito que me levou a tentar aplanar, falando-lhe do Bruno e da Beatriz não presentes para brincarem. Ao que parece, o tio ia sair, quis saber para onde, foi-lhe explicado que ia dar de comer aos “Sem Abrigo”, na sua ronda nocturna, e concluindo, talvez na brincadeira com ela, que iria lá dormir, depois de lhe ter explicado quem eram os senhores que ia visitar.
E a Mafalda, muito séria e muito rápida, contestou, pesarosa: “Olha que não te vou lá tapar”.
Uma vez mais foi objecto de admiração a sua saída.
Sem o saber, a Mafalda estava a programar um caminho futuro, para uma sociedade já não dividida entre a miséria e o voluntariado, a actual miséria dos Sem Abrigo que as iniciativas de Solidariedade para a Reinserção Social, através dos seus Voluntários, tentam chamar à razão e trazer para um viver mais digno, intenção poucas vezes coroada de êxito, pois não raro são repelidos com violência, num clima a que a droga, nos nossos tempos, não é alheia.
Vem de longa data, entre nós, a atenção pelos pobrezinhos, a cada passo até recordados literariamente. Somos esmoleres por natureza, confrange a miséria, e com a nossa esmola julgamos contribuir para libertar um pouco da fome os esfomeados. E os Voluntários da Solidariedade Social são dignos de todo o apreço, sacrificando o seu bem-estar, por vezes sob os frios do inverno, para levar conforto e tentar salvar os sem agasalho.
Mas a luta é entre os que os querem salvar e os que preferem continuar, no embrutecimento de uma liberdade que os desresponsabiliza, sacrificando indiferentemente os outros, achando-se em seu pleno direito para tal, num egoísmo sem tréguas.
Quando a Mafalda diz ao tio: - “Olha que não te vou lá tapar” é todo um programa rígido de um futuro possível, se mais Mafaldas houvesse que continuassem o seu discurso para uma maior dignidade humana: - “Tens direito a um lar, mas deves trabalhar e não pedir, para satisfazeres as necessidades da tua condição humana. O teu agasalho deves ser tu a obtê-lo”.
E o tio deveria meditar nisso, não se sacrificar tanto – no dia seguinte ele vai trabalhar cedo - em prol daqueles que não querem nada, que se deixaram conduzir ao degrau ínfimo da sua condição humana.
Era necessário que os governos propusessem medidas eficazes para combater a mendicidade e a indignidade dos que preferem pedir a trabalhar. Creio que noutros países mais desenvolvidos do que o nosso, se tomam medidas a favor desses. O mal é que, no nosso, as medidas não são suficientes sequer para a maior parte dos que trabalham.
Depende também de hábitos cívicos e educacionais. Mas como diria o falso “Mendigo” do “Deus lhe pague”, a esmola é uma prática dos abastados para angariarem a ajuda celeste, pelo reconhecimento do bem que fizeram na Terra.
Eu sou das que a dou. Mas com raiva, não por bondade nem por interesse nos favores divinos. Por saber que nada obtenho com isso em termos de recuperação social. E que muitas vezes o mendigo ganha mais mendigando do que trabalhando decentemente.
Gostaria de dizer como a Mafalda: - "Olha que não te vou lá tapar". Mas limito-me a esperar que esse dia chegará, com mais critério.
Hoje ainda vivemos sob a meiga magia do "Menino do Bairro Negro" do nosso Zeca Afonso, "menino" a quem só soubemos transmitir os ideais não de responsabilidade mas de liberdade. E de insolência.

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