domingo, 27 de setembro de 2009

Pausa

Fizemos figas durante a bica, depois de termos ido votar. Figas, em serviço da República, desejando para ela o melhor, mas comentando o texto lapidar de Salles da Fonseca no “A Bem da Nação” – “Serviço da República” - de que falámos com entusiasmo. Ao salientar o discurso oral ou escrito de Adriano Moreira, não como ambíguo mas de uma riqueza e disciplina que exige releitura, ao comentar um excerto do Professor sobre a actual República despida de Ética, e ostracizando, assim, os “bons”, os “patrícios”, pela incompatibilidade moral de acesso a ela, na sequência da libertinagem generalizada. Texto de um pessimismo sem ilusão, desejando a reposição da Ética, para reposição dos “patrícios”, mas consciente da “inconstitucionalidade” da proposta.
Falta de ética, concordámos, mas de competência e profissionalismo também. Neste caso, a propósito de um caso pouco importante, mas demonstrativo do nosso desleixo. Uma neta minha, em consulta de urgência no Hospital Egas Moniz. Parecia gripe, embora se queixasse dos ouvidos, que o médico, que a viu em um minuto, não observou. Receitou comprimidos vulgares para gripe. Tinha esperado uma hora para ser atendida, pagou os 10 euros exigidos. Foi vista em um minuto, levou a sua receita inútil, de comprimidos vulgares. Marcou consulta para a sua médica, pagou 40 euros, teve direito ao antibiótico.
Outra neta minha fora operada no mesmo hospital. O osso de um braço com um tumor antigo, numa operação que os médicos tinham aconselhado a protelar até estar completo o crescimento. Operada duas vezes, com proposta de uma terceira, visto que o úmero não criava a massa óssea necessária para recuperação. Felizmente, como boa aluna, teve direito ao seu estágio em Paris e lá, pessoas de família a conduziram aos médicos que a curaram, abanando a cabeça, no espanto de um tratamento feito aqui.
O mesmo hospital onde morrera meu pai, que descrevi num livro meu e que transcrevo aqui, relembrando-o.
Muitos mais casos conhecemos, alguns com êxito, certamente, mas outros de estarrecer e indignar e entristecer.
E porque hoje é domingo, dia de eleições, repito a minha homenagem ao meu Pai, um Homem autêntico que foi, numa oração de súplica pela salvação deste País, se o puder fazer nos “Campos Elíseos” onde a sua alma talvez se encontre em bem-aventurança.
Transcrevo o texto contido em “Anuário – Memórias Soltas”, 1999

Requiem por um Homem”

Na véspera da tua morte tinhas apresentado uma disposição feliz que nos encheu
de esperança.
Estavas rodeado pela família – a tua família mais chegada que vivera com aflição
toda a tua doença, e a família distante que viera e admirava em ti o homem probo que
sempre foras.
Contaste uma anedota pouco convencional, para minimizares assim o teu passamento
e nos fazeres rir, e rimos para te mostrarmos a nossa alegria porque continuavas
vivo e aparentemente a melhorar.
Mas quando disseste a canção do festival de então - “Sobe, sobe, balão sobe, vai
dizer àquela estrela que me deixe cá ficar” – eu voltei as costas à cama e solucei
silenciosamente e desamparadamente o irreparável que pressentia.
Não ignoravas a gravidade do teu mal, mas nunca o confessaste, porque sabias
do nosso terror de te perdermos e porque quiseste deixar-nos a imagem de uma aceitação
serena desse inevitável absurdo que preside à vida humana.
Mesmo quando te levámos directamente do Hospital ao Instituto de Oncologia e te
trouxemos para casa para o teu último almoço connosco – almoço de lágrimas disfarçadas
em arremedos de ânimo a que a nossa Mãe ajudou, cantando para nos fazer
sorrir, a canção açoreana
Eu fui de Lisboa a Sintra
A casa da ti’Jacinta
Para fazer uns calções
A pobre da criatura
Esqueceu-se da abertura
Para as minhas precisões” -
tu, cheio de dores e fraquinho, deras-nos a bênção da tua presença delicada de
reserva e pudor na expansão do teu sofrer e do receio do fim.
Todos os dias te íamos ver ao Hospital, e admirávamos a forma como reagias ao
tratamento aí concedido, vibrando contigo na indignação impotente contra a desumanidade
velhaca e lorpa das empregadas da limpeza.
Para elas eras o “avozinho”, o que me causava um asco intolerável contra a despersonalização
grosseira a que a doença te prostrara, dentro de um meio feito, tantas
vezes, de prepotência alvar, ou de uma familiaridade pouco esclarecida.
Como não te levavam a comida à cama, tinhas que te deslocar à sala de jantar,
onde as criadas, pressurosas de se libertar do esfregão, iniciavam a arrumação da
sala, sem atenderem à lentidão com que comias. E no dia em que colocaram as
cadeiras em cima da mesa em que almoçavas, levantaste-te indignado, e saíste sem
comer, provavelmente seguido da hilaridade astuta das matronas.
E nós, revoltadas, nada podíamos contra a carência total de respeito humano,
numa instituição hospitalar manipulada por uma escória ignara que, ante a indiferença
de médicos, enfermeiras e dirigentes, zelava pelo seu prestígio, superlativando o
brilho espelhante dos corredores, em detrimento de um proceder mais atento para
com os seres diminuídos pelo sofrimento ou pela velhice inerte e que dessa instituição
dependiam.
Mas tu, velho e doente, meu pai, não te calaste. E um dia em que a empregada te
fez erguer da cama para maior eficácia e comodidade de limpeza, depois de um protesto
inútil, ergueste, no corredor, um alarido que chamou outros doentes para junto
de ti: eram inadmissíveis tão toscos processos de manejo, inaceitável a total ausência
de atenção e respeito perante a doença.
Um dos doentes, que receava pelo teu coração gasto, acudiu apaziguador, lembrando-
te de que essas operárias não teriam, provavelmente, outra alternativa de
colocação.
Mas a tua resposta lúcida e ainda vibrante pela revolta, de um homem que fora
sempre atencioso e competente no seu trabalho e toda a vida se orientara pelos princípios
da rectidão sem conivência, ressoou pelos corredores do Hospital, até junto
das enfermeiras, cobardemente encolhidas no seu canto, sem ousar interferir, cientes
da justeza da tua indignação:
“- Não têm outra colocação? Que vão para o Alentejo, para a reforma agrária, tratar
dos porcos!...”

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