Hoje não me apetece dedicar pensamentos aos nossos eventos político-sociais, como o foi este em torno do “Tratado de Lisboa” antecedido do da Cimeira Ibero-Americana, que congregou gente distinta e se traduziu, com certeza, no avolumar da despesa nacional, por causa dos repastos e da brigada policial, mas também no confirmar da nossa sociabilidade relativamente ao estrangeiro. Porque hoje já não se trata disso, voltámos ao Vara e às escutas, aos ataques e contra-ataques no Parlamento, à discussão do défice. À preocupação, temporariamente silenciada. Como convém, embora a minha amiga ache que o nosso PM deveria ter-se refugiado antes numa qualquer urgência de compromisso inadiável, como fez Lula. Para não mostrar a cara. Mas a minha amiga é muito dura com as nossas caras. Sabe-se lá o que vai nas caras dos outros!
Prefiro dedicar os meus pensamentos positivos, e de apreço pela excelente memória, à minha mãe, que ontem se lembrou de despejar versos em redondilha dos seus tempos de rapariga. Como vive reproduzindo cenas da sua infância e mocidade, de trabalho na terra escravizante, de vez em quando sai-se também com lenga-lengas, cantigas ou, como ontem, versos de enfiada, que nos apressámos a anotar.
Aqui vai o conjunto de redondilhas, em quadras ou quintilhas, sobre as temáticas – já medievais - da relação mãe e filha, ou de saudade da terra, ou de religiosidade, e até sobre a guerra.
Quanto a este último tema – da guerra – referiu que era o Salgado que cantava, homem que “não prestava”, não sei se debruçada na memória da sua mocidade, em que os rapazes se comportavam, para com as raparigas, com a grosseria de uma animalidade ancestral, ou se se referia ao facto de ele ter estado preso – era eu criança e isso me impressionou em fobias do papão – por ter dado umas sacholadas nos Rebelos, numa questão de águas, muito comum na altura, quando ainda se trabalhava a terra. Mas a quadra cantada pelo Salgado parece ter mais a ver com o desejo de atrair o sentimento e a piedade das raparigas para quem cantava:
Minha mãe que me criou
Ao peito com tanto mimo!
Agora vou para a guerra
Morrer como um passarinho.
O facto é que a minha mãe chora sempre que recorda a Primeira Guerra, onde morreram tantos soldados portugueses, na batalha de La Lys, tinha ela os seus onze anos, lembrando os rapazes da terra, que soluçavam abraçados ao seu pai, meu avô, antes de serem expedidos para França.
Poderia pertencer ainda à rapaziada atiradiça do seu tempo a quadra seguinte, reveladora do espírito vivo e atrevido do nosso povo:
Se eu morrer à tua porta
Enterra-me na lareira.
Deixa-me o braço ao de cima
P’r’ajudar a cozinheira .
A seguinte quadra mostra as saudades da terra e da mãe, e a voz da minha mãe esmorece em choro ao dizê-la:
Quem me dera dar um ai
Que se ouvisse na minha terra !
Minha mãe logo dizia:
- Minha filha, quem te cá dera!
Mistura dos cantares trovadorescos e dos da poesia palaciana do Cancioneiro Geral, não resisto à tentação de transcrever, como comprovativo da sua inspiração antiga, o vilancete de Francisco de Sousa “Trovas a este vilancete:
“Abaixo esta serra
Verei minha terra”.
Ó montes erguidos
Deixai-vos cair,
Deixai-vos sumir
E ser destruídos,
Pois males sentidos
Me dão tanta guerra
Por ver minha terra.
Ribeiras do mar
Que tendes mudanças,
As minhas lembranças
Deixai-as passar.
Deixai-mas tornar
Dar novas da terra
Que dá tanta guerra.
Cabo:
O sol escurece
A noite se vem;
Meus olhos, meu bem,
Já não aparece.
Mais cedo anoitece
Aquém desta serra
Que na minha terra.
Não são, é certo, as saudades da donzela pela mãe, como na quadra da minha mãe, mas antes do namorado pela namorada que ficou na terra, e lhe dá luz – a luz que falta ao enamorado na terra distante, e onde, por isso, anoitece mais cedo, em expressão sugestiva, de madrigal.
Quadras da ternura filial e da reciprocidade de afectos, para além da condição humilde, de miséria, as seguintes:
Ó minha mãe, minha mãe,
Ó minha mãe coitadinha,
Tanto carinho me fez
Quando eu era pequenina.
Minha mãe é pobrezinha,
Não tem nada que me dar.
Dá-me abraços e beijinhos
E depois põe-se a chorar
E da rebeldia no trabalho, a lembrar a refilona “Inês Pereira” da farsa de Gil Vicente:
Ó minha mãe dos trabalhos
Para quem trabalho eu?
Trabalho, mato o meu corpo
Não vejo nada de meu.
Vejamos Inês Pereira no seu monólogo inicial:
“Renego deste lavrar (= bordar)
e do primeiro que o usou!
Ó diabo que o eu dou
Que tão mau é de aturar!
....
Coitada, assi hei-de estar
Encerrada nesta casa
Como panela sem asa
Que sempre está num lugar?”
..........
A religiosidade aparece associada, naturalmente à nossa tradição popular. Duvido, todavia, que as três últimas quintilhas sejam do tempo da juventude da minha mãe, na lavoura ou a guardar rebanhos, com as suas companheiras. O nível do discurso parece ser antes dos tempos em que frequentava a missa dominical, a que há poucos anos deixou de assistir:
Ó minha mãe quem me dera
O que a minha alma deseja:
As portas do céu abertas
Como estão as da igreja.
Ó minha mãe quem é aquele
Pregado naquela cruz?
Aquele, filho, é Jesus,
É a santa imagem dele.
Ó minha mãe quem é aquele?
Ó minha mãe quem é aquele?
Aquele é Jesus, é Deus
Quem fez a Terra e os Céus.
Noite, noite de Natal
Noite toda sobressanta
Isenta de todo o mal
Feita de puro cristal
Noite augusta, sacrossanta.
Quantas luzes nos altares
Das ermidas mais modestas
Há sons alegres nos ares
Festas em todos os lares
Boas Festas, Boas Festas.
Noite, noite, em que Maria
Cheia de graça e de luz
Entregou à luz do dia
O cachopinho Jesus
Nossa paz, nossa alegria.
A seguinte quadra pertence antes ao tempo em que vivemos em Oliveira de Frades, durante a Segunda Guerra, o meu pai em Moçambique:
Comboio da Beira Alta
Que vai p’r’à linha do Norte,
Em chegando a Oliveira
Dou vivas à minha sorte.
Finalmente, as duas últimas quadras são expressivas do jeito sentencioso popular, ao modo de António Aleixo:
À minha porta está lama,
Na tua fica um lameiro.
Quando falares dos outros
Olha para ti primeiro.
Ó alto, serra da neve,
Onde o penedo caiu,
Ninguém diga o que não sabe
Nem afirme o que não viu.
Amor submisso da donzela pela mãe, amor pelo amigo, religiosidade, alguns dos temas dos versos recitados, bem patentes já nos nossos Cancioneiros primitivos:
Minha madre velida, e non me guardedes
D’ir a San Servando, ca (=porque) se o fazedes
Morrerei d’amores.
Tornou-se um texto longo, mas o espanto pela memória da minha mãe, além da força e sequência com que disse os seus versos, me levaram a prestar-lhe esta pequena homenagem.
Por outro lado, os versos de tradição popular, mergulhando as suas raízes num passado literário que remonta aos princípios da nossa nacionalidade, são motivos suficientes para amar o solo onde nos fixámos, a nação que uns criaram e que, momentaneamente perdida, outros reconquistaram, a pátria que temos razões de peso para amar e defender com o nosso trabalho. Com o nosso respeito.
Prefiro dedicar os meus pensamentos positivos, e de apreço pela excelente memória, à minha mãe, que ontem se lembrou de despejar versos em redondilha dos seus tempos de rapariga. Como vive reproduzindo cenas da sua infância e mocidade, de trabalho na terra escravizante, de vez em quando sai-se também com lenga-lengas, cantigas ou, como ontem, versos de enfiada, que nos apressámos a anotar.
Aqui vai o conjunto de redondilhas, em quadras ou quintilhas, sobre as temáticas – já medievais - da relação mãe e filha, ou de saudade da terra, ou de religiosidade, e até sobre a guerra.
Quanto a este último tema – da guerra – referiu que era o Salgado que cantava, homem que “não prestava”, não sei se debruçada na memória da sua mocidade, em que os rapazes se comportavam, para com as raparigas, com a grosseria de uma animalidade ancestral, ou se se referia ao facto de ele ter estado preso – era eu criança e isso me impressionou em fobias do papão – por ter dado umas sacholadas nos Rebelos, numa questão de águas, muito comum na altura, quando ainda se trabalhava a terra. Mas a quadra cantada pelo Salgado parece ter mais a ver com o desejo de atrair o sentimento e a piedade das raparigas para quem cantava:
Minha mãe que me criou
Ao peito com tanto mimo!
Agora vou para a guerra
Morrer como um passarinho.
O facto é que a minha mãe chora sempre que recorda a Primeira Guerra, onde morreram tantos soldados portugueses, na batalha de La Lys, tinha ela os seus onze anos, lembrando os rapazes da terra, que soluçavam abraçados ao seu pai, meu avô, antes de serem expedidos para França.
Poderia pertencer ainda à rapaziada atiradiça do seu tempo a quadra seguinte, reveladora do espírito vivo e atrevido do nosso povo:
Se eu morrer à tua porta
Enterra-me na lareira.
Deixa-me o braço ao de cima
P’r’ajudar a cozinheira .
A seguinte quadra mostra as saudades da terra e da mãe, e a voz da minha mãe esmorece em choro ao dizê-la:
Quem me dera dar um ai
Que se ouvisse na minha terra !
Minha mãe logo dizia:
- Minha filha, quem te cá dera!
Mistura dos cantares trovadorescos e dos da poesia palaciana do Cancioneiro Geral, não resisto à tentação de transcrever, como comprovativo da sua inspiração antiga, o vilancete de Francisco de Sousa “Trovas a este vilancete:
“Abaixo esta serra
Verei minha terra”.
Ó montes erguidos
Deixai-vos cair,
Deixai-vos sumir
E ser destruídos,
Pois males sentidos
Me dão tanta guerra
Por ver minha terra.
Ribeiras do mar
Que tendes mudanças,
As minhas lembranças
Deixai-as passar.
Deixai-mas tornar
Dar novas da terra
Que dá tanta guerra.
Cabo:
O sol escurece
A noite se vem;
Meus olhos, meu bem,
Já não aparece.
Mais cedo anoitece
Aquém desta serra
Que na minha terra.
Não são, é certo, as saudades da donzela pela mãe, como na quadra da minha mãe, mas antes do namorado pela namorada que ficou na terra, e lhe dá luz – a luz que falta ao enamorado na terra distante, e onde, por isso, anoitece mais cedo, em expressão sugestiva, de madrigal.
Quadras da ternura filial e da reciprocidade de afectos, para além da condição humilde, de miséria, as seguintes:
Ó minha mãe, minha mãe,
Ó minha mãe coitadinha,
Tanto carinho me fez
Quando eu era pequenina.
Minha mãe é pobrezinha,
Não tem nada que me dar.
Dá-me abraços e beijinhos
E depois põe-se a chorar
E da rebeldia no trabalho, a lembrar a refilona “Inês Pereira” da farsa de Gil Vicente:
Ó minha mãe dos trabalhos
Para quem trabalho eu?
Trabalho, mato o meu corpo
Não vejo nada de meu.
Vejamos Inês Pereira no seu monólogo inicial:
“Renego deste lavrar (= bordar)
e do primeiro que o usou!
Ó diabo que o eu dou
Que tão mau é de aturar!
....
Coitada, assi hei-de estar
Encerrada nesta casa
Como panela sem asa
Que sempre está num lugar?”
..........
A religiosidade aparece associada, naturalmente à nossa tradição popular. Duvido, todavia, que as três últimas quintilhas sejam do tempo da juventude da minha mãe, na lavoura ou a guardar rebanhos, com as suas companheiras. O nível do discurso parece ser antes dos tempos em que frequentava a missa dominical, a que há poucos anos deixou de assistir:
Ó minha mãe quem me dera
O que a minha alma deseja:
As portas do céu abertas
Como estão as da igreja.
Ó minha mãe quem é aquele
Pregado naquela cruz?
Aquele, filho, é Jesus,
É a santa imagem dele.
Ó minha mãe quem é aquele?
Ó minha mãe quem é aquele?
Aquele é Jesus, é Deus
Quem fez a Terra e os Céus.
Noite, noite de Natal
Noite toda sobressanta
Isenta de todo o mal
Feita de puro cristal
Noite augusta, sacrossanta.
Quantas luzes nos altares
Das ermidas mais modestas
Há sons alegres nos ares
Festas em todos os lares
Boas Festas, Boas Festas.
Noite, noite, em que Maria
Cheia de graça e de luz
Entregou à luz do dia
O cachopinho Jesus
Nossa paz, nossa alegria.
A seguinte quadra pertence antes ao tempo em que vivemos em Oliveira de Frades, durante a Segunda Guerra, o meu pai em Moçambique:
Comboio da Beira Alta
Que vai p’r’à linha do Norte,
Em chegando a Oliveira
Dou vivas à minha sorte.
Finalmente, as duas últimas quadras são expressivas do jeito sentencioso popular, ao modo de António Aleixo:
À minha porta está lama,
Na tua fica um lameiro.
Quando falares dos outros
Olha para ti primeiro.
Ó alto, serra da neve,
Onde o penedo caiu,
Ninguém diga o que não sabe
Nem afirme o que não viu.
Amor submisso da donzela pela mãe, amor pelo amigo, religiosidade, alguns dos temas dos versos recitados, bem patentes já nos nossos Cancioneiros primitivos:
Minha madre velida, e non me guardedes
D’ir a San Servando, ca (=porque) se o fazedes
Morrerei d’amores.
Tornou-se um texto longo, mas o espanto pela memória da minha mãe, além da força e sequência com que disse os seus versos, me levaram a prestar-lhe esta pequena homenagem.
Por outro lado, os versos de tradição popular, mergulhando as suas raízes num passado literário que remonta aos princípios da nossa nacionalidade, são motivos suficientes para amar o solo onde nos fixámos, a nação que uns criaram e que, momentaneamente perdida, outros reconquistaram, a pátria que temos razões de peso para amar e defender com o nosso trabalho. Com o nosso respeito.
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