quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

“Não se deve entrar em stress: a hora do julgamento foi protelada”

A minha amiga trouxe-me o recorte do “editorial-destak”, contendo um texto de Isabel Stilwell, intitulado “O aeroporto da Justiça enevoado”, que começo por transcrever, embora sem a autorização da autora:

Na semana passada, aterrei no Campus da Justiça, no Parque das Nações. A localização é fabulosa, mesmo sobre o rio. Os prédios de vidro, lindos. A sinalização fantástica. A decoração de interiores do Tribunal Criminal, o único que visitei, moderna e funcional. Ou seja, a fachada da Justiça melhorou.
O resto continua igual. As testemunhas todas convocadas para a mesma hora, sejam elas duas ou 20. Resultado: a fila para a identificação sai para a rua. Passo seguinte: o acesso através de um detector de metais. Ninguém contesta o princípio, mas o resultado: uma única via (a segunda não funcionava), que sem RX para as malas, obriga a esmiuçar as carteiras das senhoras, o que ninguém consegue em menos de dez minutos. Réus, advogados e testemunhas olham o relógio aflitos. Chegaram a horas à recepção, mas para a chamada já estão atrasados, e promete demorar.
Alguém diz: “Descansem. A hora do julgamento foi adiantada.” Levanta-se a cabeça e repara-se num placard electrónico, como o do aeroporto, que dá indicações dos julgamentos, e fabuloso, fantástico, nalguns pisca a amarelo a palavra “adiado”, e noutras vai mudando a hora conforme o atraso. Rio-me: será que o nevoeiro impede a descolagem de julgamentos ou a aterragem de um juiz? Decididamente estamos no Aeroporto da Justiça.
Os convocados amontoam-se. Conto cabeças: estão ali mais de trinta pessoas, de ambas as partes, tudo ao monte. São para três julgamentos marcados em simultâneo para o mesmo juiz. Fazem a chamada. Só para o julgamento em que testemunho há dezassete pessoas. São já 10h30 da manhã, não é preciso saber fazer contas de cabeça, para perceber que a maioria de nós não vai ser ouvida. Mas o tribunal só chega a esta conclusão às 11h40. Adiam o julgamento. Nem a justiça espera que a justiça funcione. Vou voltar a ser convocada e, se me atrasar ou não comparecer, pago, no mínimo, mais de 200 euros de multa. Mesmo que o julgamento venha de novo a ser adiado. Ineficácia à parte, enquanto a justiça não mostrar respeito pelas pessoas, não pode pedir que a respeitem. E não mostra.”
Eis o texto de Isabel Stilwell.

Eis o discurso atropelado da minha indignada amiga, que não deu azo a interrupções:
- Porque é que vão todos ao mesmo tempo? São todos atrasados mentais? É a única maneira de a gente os desculpar. É incrível! As horas que as pessoas ficam a olhar para o quadro eléctrico! “É um espanto!” - costuma-se dizer. Mas para cá não é! Como é possível que se trabalhe assim? É porque já não há gente capaz para dirigir serviços? São tantas horas perdidas! A quantidade que falta nos serviços! E não pode faltar! Ai que engraçado! Tudo bem, desde que as pessoas recebessem 200 euros por terem lá estado. Aí, tudo bem! Felizmente que os jornalistas também têm que ir ao tribunal! Para poderem contar! O que ela conta aí! Depois dizem às pessoas que não fiquem nervosas! Alguém diz: “Descansem! A hora do julgamento foi adiantada!” Mesmo que passem lá o dia. Não faz mal. Podem dormir a sesta. Até parece o aeroporto. Eu faço ideia os nervos de muita gente! Aqueles que têm mesmo as horas contadas! Os nervos... Não interessa. Até nisto a Justiça foi ao ar. Porque olhe lá, se é tudo adiado, o que é que funciona? É certo que o edifício não fez mudar nada! Mas é pior do que antigamente!”
-
Ora essa! - pude enfim falar. O edifício tem bonitas vistas sobre o Tejo. Do Tejo parte-se para o mundo! Pelo menos é o que diz Alberto Caeiro:
“Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram”.
Por isso, um Palácio da Justiça bem situado e de boa fachada, que a fachada conta sempre muito, se não faz trabalhar melhor, faz sonhar melhor. E as pessoas convocadas não se importam de perder o seu tempo sonhando com a América enquanto fitam o Tejo com passividade. Mesmo que seja como “o menino de sua mãe”, fitando “com o olhar langue e cego os céus perdidos.”
É por isso que não dou razão à minha amiga nem à Isabel Stilwell. Não se deve entrar em stress. Há sempre um Tejo para a desesperança .

Um comentário:

Unknown disse...

Lindo, o teu texto. Pena que o assunto não condiga...