sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Evolução (conclusão)


Transcrição de um texto escrito nos anos 70 (antes do Golpe), em África, contido em “Pedras de Sal” e em “Cravos Roxos”, em 2ª edição daquele:

«Natal Português

Disseram-me – tenho viajado pouco por falta da gasolina – que lá pelas Alemanhas e países nórdicos não há pedintes. Talvez existam pessoas menos ricas, mas todos se vão ajeitando na dura lei de gerir a sua própria vida, e para isso trabalhando, é bom de ver. Claro que são ajudados por organismos que lhes concedem naturais regalias – e naturais porque têm direito a elas, como seres humanos encarados como tal, e não como coisas desprezíveis a quem a sociedade potente esmagou nas suas rodas.
Evidentemente que o facto de não existirem pedintes traz desvantagens, e a que se me afigura mais séria é a impossibilidade de os nórdicos poderem manifestar, tal como nós, os sulistas, o terno sentimento da solidariedade.
Porque é uma quadra tão amável, tão fraterna esta do Natal que a todos sabe bem, de mistura com os pinhões e as rabanadas, confortar os pobrezinhos com as nossas esmolas, para eles terem também amendoins à sua mesa. Convém, evidentemente, não exagerarmos nem pretendermos uma perfeita analogia de mesas! Mas o peru recheado saber-nos-á melhor se conhecermos que aos pobrezinhos não faltarão os amendoins e que para isso nós contribuímos preenchendo listas, acudindo às rifas ou simplesmente dando os nossos escudos das sobras àqueles mendigos muito sujos e muito tristes, nesta quadra ainda mais sujos e mais tristes, pois eles são mestres na arte de explorar o sentimentalismo alheio.
Para quê, pois, uma real assistência médica e de remédios a preços módicos a quem trabalha, o auxílio efectivo às viúvas e às mães solteiras, e aos acidentados do trabalho, para quê fomentar no indivíduo a dignidade como ser humano, que se traduzirá em não explorar, nem pedinchar, nem ardilosamente enganar os outros?
Torna-se, evidentemente, mais fácil para muitos, explorar e pedinchar e ardilosamente enganar os outros.
Por isso, o espectáculo folclórico dos pedintes deve ser amparado com carinho, para podermos compensá-los, por alturas do Natal, de lhes termos tirado tudo, mesmo a própria dignidade.»

Acabo de ver, num dos nossos canais televisivos, numa reportagem de rua, um exemplo das nossas indignidades, não mais em solo africano mas bem português, dos nossos tempos, que confirma o assunto do texto trancrito, em acréscimo de amplitude: indignidade não só da pessoa que é entrevistada pelo repórter, na altura em que telefonava ao filho em Angola a contar que era um triste “sem-abrigo”, e a perguntar, de forma humildemente astuta e idiota, se não, de facto, apenas miserável, se o filho sabia o que isso era. Indignidade do próprio repórter que o interrompe para o questionar sobre essa situação de exclusão humana. Indignidade do “canal” que erige tal estatuto obsceno de anulamento social, para a escarrar aos nossos olhos, sem pudor, com malignidade e sadismo. Indignidade, aliás, há muito instituída na nossa televisão, com a busca de casos de escândalo e faits-divers de efeito sensacionalista, que exploram o sentimento ou a indignação, ao invés de alargarem os horizontes culturais do povo, com objectividade, rigor, sensatez, e o auxílio de mapas esclarecedores da geografia dos factos políticos descritos.
Mas é dia de Natal, devemos ter esperança. É o que dizem os cartões de Boas Festas: Feliz Natal, Joyeux Noel, Merry Christmas... E Próspero Ano Novo, Bonne Année, Happy New Year!... Para todos nós.

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