Um texto dos inícios dos anos 70, em África. Extraído de Prosas Alegres e Não:
«Natal... às listas:
O enternecimento é geral. Só se vêem pessoas amáveis, felizes por espalhar o calor das suas dádivas. Algumas senhoras prestáveis e com o sentido das responsabilidades prontificam-se mesmo a fazer peditórios a favor dos outros. E todos colaboram, contentes de dar, ou envergonhados de dizer que não dão, especialmente se as senhoras prestáveis são conhecidas ou esposas de senhores conhecidos.
Afixam-se listas nas paredes. É para as crianças, para os soldados, para os leprosos, cancerosos, lastimosos...
Mas bem vai a coisa quando é nas paredes que as listas se afixam, e não são as senhoras bondosas que as apresentam. Nesse caso, a maioria abstém-se, tal como nas eleições, aonde só vai quem esteja mais directamente interessado. Tudo o mais se encolhe, num caso por preguiça ou indiferença, no outro porque acha um exagero que tanta gente dependa de si.
É certo que este ano vamos ter o 13º mês, mas também nem por esse motivo a vida se compõe: aquele arranjará a primeira prestação para o carrito em segunda mão – já que os novos, só a pronto, por especial deferência e sem desconto. Aquela outra comprará os beliches para os filhos, com que alargará os espaços da sua casa pequena, de renda antiga e por isso religiosamente conservada. A D. Isaura comprará o “abat-jour” (“quebra-luz” para os puristas) para o candeeiro de pau preto o qual há meses espera revestidura. Outro terá o rádio portátil com que sonha há muito. A minha comadre Micas comprará o seu fogão a gás, com 20% de desconto nesta quadra do Natal, outro ainda limitar-se-á a saldar as suas dívidas anteriores.
Mas há muito o 13º mês deixou de bastar e é por isso que as tais listas causam tremores coléricos nos mais egoístas.
Eu sou das que colaboram sempre. Dou para as crianças, os soldados, os leprosos, os cancerosos, os lastimosos. Pelo menos se as listas são apresentadas pelas senhoras responsáveis dos senhores conhecidos. Caso contrário, não gosto de me salientar, colocando o meu nome quase logo abaixo do do meu director. Se o fizesse, diriam que pretendo engraxar, e eu sou muito sensível a suposições. Fico, recatadamente, à espera que os outros dêem o primeiro passo.
Mas parece que todos esperam o mesmo, porque as listas lá estão, quase só com o nome do meu solitário director que, coitado, não pode eximir-se a estas praxes de generosidade forçada uma vez por ano, quando se comemora a data longínqua em que, numa cabana humilde, uma criança nascia que pregaria a fraternidade universal e constante, tão bem entendida pelos homens em geral e muito particularmente pelas nobres senhoras dos senhores conhecidos.»
Vivemos hoje numa sociedade democrática, as listas servem antes para formar partidos, não como meio esmoler, até porque a corrupção trouxe a dúvida sobre o destino dos dinheiros assim angariados. Cabe à primeira dama o papel simpático de distribuir sorrisos pelos sítios onde são frequentes as lágrimas. Os “media” encarregam-se de obter receitas apelando para os telefonemas a sessenta cêntimos mais IVA, em programas de festejos, com artistas dispostos a contribuir para a animação geral. Os próprios lugares que fornecem alimento aos que deles precisam, melhoram o menu da quadra. Nos supermercados, crianças entregam sacos às donas de casa para colherem proventos para os bancos da nossa fome...
Houve evolução, decerto. Evolução na fome, evolução nos meios de a debelar. Já sem listas. Mas pela caridade sempre. A nossa “caridadezinha”.
«Natal... às listas:
O enternecimento é geral. Só se vêem pessoas amáveis, felizes por espalhar o calor das suas dádivas. Algumas senhoras prestáveis e com o sentido das responsabilidades prontificam-se mesmo a fazer peditórios a favor dos outros. E todos colaboram, contentes de dar, ou envergonhados de dizer que não dão, especialmente se as senhoras prestáveis são conhecidas ou esposas de senhores conhecidos.
Afixam-se listas nas paredes. É para as crianças, para os soldados, para os leprosos, cancerosos, lastimosos...
Mas bem vai a coisa quando é nas paredes que as listas se afixam, e não são as senhoras bondosas que as apresentam. Nesse caso, a maioria abstém-se, tal como nas eleições, aonde só vai quem esteja mais directamente interessado. Tudo o mais se encolhe, num caso por preguiça ou indiferença, no outro porque acha um exagero que tanta gente dependa de si.
É certo que este ano vamos ter o 13º mês, mas também nem por esse motivo a vida se compõe: aquele arranjará a primeira prestação para o carrito em segunda mão – já que os novos, só a pronto, por especial deferência e sem desconto. Aquela outra comprará os beliches para os filhos, com que alargará os espaços da sua casa pequena, de renda antiga e por isso religiosamente conservada. A D. Isaura comprará o “abat-jour” (“quebra-luz” para os puristas) para o candeeiro de pau preto o qual há meses espera revestidura. Outro terá o rádio portátil com que sonha há muito. A minha comadre Micas comprará o seu fogão a gás, com 20% de desconto nesta quadra do Natal, outro ainda limitar-se-á a saldar as suas dívidas anteriores.
Mas há muito o 13º mês deixou de bastar e é por isso que as tais listas causam tremores coléricos nos mais egoístas.
Eu sou das que colaboram sempre. Dou para as crianças, os soldados, os leprosos, os cancerosos, os lastimosos. Pelo menos se as listas são apresentadas pelas senhoras responsáveis dos senhores conhecidos. Caso contrário, não gosto de me salientar, colocando o meu nome quase logo abaixo do do meu director. Se o fizesse, diriam que pretendo engraxar, e eu sou muito sensível a suposições. Fico, recatadamente, à espera que os outros dêem o primeiro passo.
Mas parece que todos esperam o mesmo, porque as listas lá estão, quase só com o nome do meu solitário director que, coitado, não pode eximir-se a estas praxes de generosidade forçada uma vez por ano, quando se comemora a data longínqua em que, numa cabana humilde, uma criança nascia que pregaria a fraternidade universal e constante, tão bem entendida pelos homens em geral e muito particularmente pelas nobres senhoras dos senhores conhecidos.»
Vivemos hoje numa sociedade democrática, as listas servem antes para formar partidos, não como meio esmoler, até porque a corrupção trouxe a dúvida sobre o destino dos dinheiros assim angariados. Cabe à primeira dama o papel simpático de distribuir sorrisos pelos sítios onde são frequentes as lágrimas. Os “media” encarregam-se de obter receitas apelando para os telefonemas a sessenta cêntimos mais IVA, em programas de festejos, com artistas dispostos a contribuir para a animação geral. Os próprios lugares que fornecem alimento aos que deles precisam, melhoram o menu da quadra. Nos supermercados, crianças entregam sacos às donas de casa para colherem proventos para os bancos da nossa fome...
Houve evolução, decerto. Evolução na fome, evolução nos meios de a debelar. Já sem listas. Mas pela caridade sempre. A nossa “caridadezinha”.
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