terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Uma página de livro

O ter lembrado ontem o livro de Irene Gil, associado ao papel da mulher no interior de África, fez-me reler um texto que escrevi sobre ela, em 1988, que transcrevo do livro “Anuário - Memórias Soltas”, publicado em 1999. Transcrevo-o aqui, em singela homenagem à sua memória:

«“UMA PÁGINA POR DIA”, UM LIVRO DE IRENE GIL»

Um passado. Um presente de confronto.Um espaço físico e social demarcado geograficamente nos limítrofes da colonização portuguesa. Uma vida que nele se inscreve. Uma pena que aborda espaço e tempo em viagem que a memória apurou, no suave encanto de um estilo arrumado e digressivo, um discreto humor que o conhecimento do mundo e as experiências sofridas tornaram frontal, uma sensibilidade aberta aos prazeres da vida como aos sofrimentos dos homens. “UMA PÁGINA POR DIA”, uma lição de mulher, uma canção de amor sem o erotismo da praxe.
Mulher viva e insatisfeita, reprimindo o seu entusiasmo, na educação convencional de “jeune fille rangée”, nos tabus inerentes a um viver socialmente superior, mas a quem favoreceu enérgica voz interior, suavemente modulada pelo estro poético, libertando-a finalmente na ambicionada projecção literária que o meio lourençomarquino proporcionou.
Foi assim que a conheci: elástica, viva, loquaz, abordando temas variados na sua “Página da Mulher” do “Notícias”, propondo concursos literários, organizando inquéritos, estendendo o espaço da sua Página a outras vozes e a outras mensagens, sempre discretamente espirituosa ou sentidamente humana, em cada passo do seu convívio acentuando o preceito terenciano da identificação solidária do homem com tudo o que é humano: “Homo sum; humani nihil a me alienum puto.”
Ela se retrata no seu livro – sejam as “Memórias”, os “Contos” ou os “Fragmentos de um Diário” que o compõem, guardando, naturalmente, a reserva íntima de quem não precisa de se despojar da roupa interior para se revelar inteira. A sua interioridade – aquela que a define nas suas angústias, fragilidades ou subtilezas de humor – essa nos basta para denunciar mais uma daquelas protagonistas da colonização portuguesa que, acompanhando os pais ou os maridos pelo interior do terreno ultramarino, nele projectaram algo da sua presença, quer ajudando os nativos, quer elevando socialmente o meio, quer forcejando por não soçobrar no tédio de um viver solitário, mantendo acesa a chama da cultura sofregamente apreendida.
Tudo isso sobressai na sua obra, de um descritivo impregnado de magia desses espaços tropicais, mas igualmente atento ao pormenor do comportamentop humano, na reacção ingénua dos nativos, na vaidade das distinções sociais que o excessivo número de criados domésticos possibilitava, nas astúcias de que se revestiu a gula ou a estultícia da colonização ultramarina, as mais das vezes mal orientada pelo governo central da Metrópole, desamoroso e apenas atento a uma sobrevivência multidimensional lisonjeira, sem respeito pelos homens que a isso contribuíam com o seu suor e o seu amor, enraizado por várias gerações.
Repondo a verdade, pontuando imparcialmente o erro e a virtude, “UMA PÁGINA POR DIA” constitui documento valioso da epopeia vivida pelos homens e mulheres nesse Ultramar desestimado e para sempre incompreendido.
Daí a variedade de discursos de primeira pessoa, o presente do comentário irónico ou conceituoso, alternando com os pretéritos de avanço no espaço – de Timor, de Angola, de Moçambique – em concomitância com o tempo, vago nos seus inícios – primeiro quartel do século XX – às alturas do retorno em avalanche à pátria-mãe, no seu último quartel. Conjuntamente com os perfeitos nucleares, os imperfeitos das amplas descrições retardadoras, no requinte do vocábulo esmerado e rigoroso. Pontilhando a arquitectura de uma prosa de ritmo poético e expressão clara, alguns poemas, melodias brotando da mesma fonte límpida que, sempre atenta ao mundo exterior, continuamente faz ressaltar as batidas de um coração comovido e crente.»

Irene Gil morreu em 1996.

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