Notou Salles da Fonseca a pertinência de uma das partes do meu livro “Cravos Roxos”, contida no Prefácio de “Literatura da Resistência”, de 1975, sugerindo-me que o transcrevesse em blog, faseadamente, se possível com comentários de confronto com a actualidade.
Nesse sentido, pois, vou transcrever o texto longo, fruto de uma experiência de “retornada” de África, texto resultante da frequência de um Seminário de Literatura Portuguesa em Coimbra, num interesse de actualização do curso de Filologia Românica feito em Coimbra alguns anos antes. O Seminário, dirigido por Andrée Crabbé Rocha, era sobre os Escritores da Resistência que, paulatinamente, tinham contribuído para o alertar das consciências, sobre os condicionalismos sociais portugueses no tempo de Salazar.
Texto narrativo é ele, contendo comentários críticos sobre o que foi a odisseia de tantos milhares de Portugueses obrigados a abandonar os territórios das precipitações descolonizadoras dos políticos da altura.
Muito tempo depois, já integrada na nova vida, com os filhos crescendo e desenvencilhando-se dentro dos seus interesses e critérios, acalmado o sofrimento na luta pela sobrevivência, a que não foi alheio o apoio familiar, várias vezes pensei, como penso hoje ainda, que, dentro das nossas características de país pequeno e povo mísero mas astuto, merecedor da caricatura de Bordalo, não foi totalmente negativo o comportamento de uma Nação que acolheu e continua a acolher, de acordo com os consensos políticos, aqueles “portugueses de segunda” do complexo ultramarino.
Pode-se afirmar que esses portugueses de lá tinham os mesmos direitos dos de cá, mas uma nação pobre como a nossa conseguiu superar as barreiras económicas, estendendo, às avalanches retornadas, os braços, se não amigos, pelo menos acolhedores dentro de certos critérios de justiça que tinham a obrigação de seguir, mas que poderiam desprezar, em caso de impossibilidade material, mau grado as fontes de riqueza que tais territórios ultramarinos tinham significado antes, para a pátria-mãe. Não fora, todavia o “auxílio” europeu a que a pátria teve que “encostar-se”, e o desastre teria ocorrido mais cedo, dadas as convulsões que num país, aparentemente sem rumo, nos vão “chutando” para um qualquer precipício, sempre profetizado, sempre temido, e sempre adiado. Eis o texto referido:
«... Porque me parece que vivemos num certo clima de compadrio literário que reputo quimérico e fruto de estagnação mental, perceptível em todos os âmbitos da vida portuguesa, de que a rádio, a televisão e a imprensa se fazem porta-vozes através de programas perfeitamente risíveis, no seu processo de dinamização das massas e de defesa das causas justas, mas tornadas pueris pela forma como são apresentadas – dispus-me a erguer uma voz discordante, sabendo embora quão dificilmente ela terá aceitação, dado que as liberdades democráticas, ao que parece prometidas num 25 de Abril de 74, não são interpretadas de igual forma um ano após. (...)
Como pessoa ferida no mais íntimo dos sentimentos patrióticos e humanos, radicados, naturalmente, como acontece em todos os povos unidos por uma língua, história, literatura, arte e religião comuns, eu não aderi ao entusiasmo da maioria dos colegas pelos escritores neo-realistas, responsáveis, em parte, pelos movimentos de destruição pátria perpetrados com o 25 de Abril. De resto, tais entusiasmos pareciam-me essencialmente fruto de juvenilidade, e há muito já eu ultrapassara, “hélas!”, a juventude.
Se, em todo o caso, pus objecções à entronização de alguns autores, posso afirmar que o fiz sem “parti pris”, guiando-me por um ponto de vista puramente estético e literário, embora de cariz pessoal necessariamente limitado. Facciosas, sim, me pareceram as observações idolátricas em alguns trabalhos, só porque os autores em causa haviam berrado contra a miséria e a exploração de outros. Dificilmente tais berros literários poderiam comover a quem os ouvia ou lia diariamente, mesmo sem literatura, nos órgãos de informação, zelosos por mostrar uma bondade unilateral..
Eu conhecera muitos “bondosos” que se governavam muito bem, rosnando contra os caídos. Conhecera os que haviam tramado na sombra contra a pátria e agora, à luz solar e em alta grita, forcejavam por amparar-se nos bons empregos, irradiando os outros a quem, por sua própria incompetência, não haviam conseguido ultrapassar anteriormente. Conhecera os adeptos recentes e vigorosos de uma ideologia que no regime anterior haviam atacado, também vigorosamente, sempre aptos e maleáveis a todas as viragens. Conhecera aqueles cuja missão fora aparentemente a de defender a pátria, e que agora, em públicas mesas redondas, apregoavam com extremo orgulho a traição perpetrada no tempo das suas missões militares, em que se mancomunavam com os movimentos de libertação, recebendo embora chorudos ordenados da pátria-mãe apunhalada mas sempre generosa, aliás, com a infâmia subserviente.
Vivia-se numa irrespirável atmosfera de reivindicações, protestos e desmazelos. Todos queriam chegar depressa, atropelando sem lei – que a não havia – nem controlo – que também não – excepto para formar ridículas barricadas na via pública. O espectáculo tornava-se caricato e jamais Portugal teve, talvez, tanta ressonância como neste momento de extrema sonoridade interna.
(Continua)
Nesse sentido, pois, vou transcrever o texto longo, fruto de uma experiência de “retornada” de África, texto resultante da frequência de um Seminário de Literatura Portuguesa em Coimbra, num interesse de actualização do curso de Filologia Românica feito em Coimbra alguns anos antes. O Seminário, dirigido por Andrée Crabbé Rocha, era sobre os Escritores da Resistência que, paulatinamente, tinham contribuído para o alertar das consciências, sobre os condicionalismos sociais portugueses no tempo de Salazar.
Texto narrativo é ele, contendo comentários críticos sobre o que foi a odisseia de tantos milhares de Portugueses obrigados a abandonar os territórios das precipitações descolonizadoras dos políticos da altura.
Muito tempo depois, já integrada na nova vida, com os filhos crescendo e desenvencilhando-se dentro dos seus interesses e critérios, acalmado o sofrimento na luta pela sobrevivência, a que não foi alheio o apoio familiar, várias vezes pensei, como penso hoje ainda, que, dentro das nossas características de país pequeno e povo mísero mas astuto, merecedor da caricatura de Bordalo, não foi totalmente negativo o comportamento de uma Nação que acolheu e continua a acolher, de acordo com os consensos políticos, aqueles “portugueses de segunda” do complexo ultramarino.
Pode-se afirmar que esses portugueses de lá tinham os mesmos direitos dos de cá, mas uma nação pobre como a nossa conseguiu superar as barreiras económicas, estendendo, às avalanches retornadas, os braços, se não amigos, pelo menos acolhedores dentro de certos critérios de justiça que tinham a obrigação de seguir, mas que poderiam desprezar, em caso de impossibilidade material, mau grado as fontes de riqueza que tais territórios ultramarinos tinham significado antes, para a pátria-mãe. Não fora, todavia o “auxílio” europeu a que a pátria teve que “encostar-se”, e o desastre teria ocorrido mais cedo, dadas as convulsões que num país, aparentemente sem rumo, nos vão “chutando” para um qualquer precipício, sempre profetizado, sempre temido, e sempre adiado. Eis o texto referido:
«... Porque me parece que vivemos num certo clima de compadrio literário que reputo quimérico e fruto de estagnação mental, perceptível em todos os âmbitos da vida portuguesa, de que a rádio, a televisão e a imprensa se fazem porta-vozes através de programas perfeitamente risíveis, no seu processo de dinamização das massas e de defesa das causas justas, mas tornadas pueris pela forma como são apresentadas – dispus-me a erguer uma voz discordante, sabendo embora quão dificilmente ela terá aceitação, dado que as liberdades democráticas, ao que parece prometidas num 25 de Abril de 74, não são interpretadas de igual forma um ano após. (...)
Como pessoa ferida no mais íntimo dos sentimentos patrióticos e humanos, radicados, naturalmente, como acontece em todos os povos unidos por uma língua, história, literatura, arte e religião comuns, eu não aderi ao entusiasmo da maioria dos colegas pelos escritores neo-realistas, responsáveis, em parte, pelos movimentos de destruição pátria perpetrados com o 25 de Abril. De resto, tais entusiasmos pareciam-me essencialmente fruto de juvenilidade, e há muito já eu ultrapassara, “hélas!”, a juventude.
Se, em todo o caso, pus objecções à entronização de alguns autores, posso afirmar que o fiz sem “parti pris”, guiando-me por um ponto de vista puramente estético e literário, embora de cariz pessoal necessariamente limitado. Facciosas, sim, me pareceram as observações idolátricas em alguns trabalhos, só porque os autores em causa haviam berrado contra a miséria e a exploração de outros. Dificilmente tais berros literários poderiam comover a quem os ouvia ou lia diariamente, mesmo sem literatura, nos órgãos de informação, zelosos por mostrar uma bondade unilateral..
Eu conhecera muitos “bondosos” que se governavam muito bem, rosnando contra os caídos. Conhecera os que haviam tramado na sombra contra a pátria e agora, à luz solar e em alta grita, forcejavam por amparar-se nos bons empregos, irradiando os outros a quem, por sua própria incompetência, não haviam conseguido ultrapassar anteriormente. Conhecera os adeptos recentes e vigorosos de uma ideologia que no regime anterior haviam atacado, também vigorosamente, sempre aptos e maleáveis a todas as viragens. Conhecera aqueles cuja missão fora aparentemente a de defender a pátria, e que agora, em públicas mesas redondas, apregoavam com extremo orgulho a traição perpetrada no tempo das suas missões militares, em que se mancomunavam com os movimentos de libertação, recebendo embora chorudos ordenados da pátria-mãe apunhalada mas sempre generosa, aliás, com a infâmia subserviente.
Vivia-se numa irrespirável atmosfera de reivindicações, protestos e desmazelos. Todos queriam chegar depressa, atropelando sem lei – que a não havia – nem controlo – que também não – excepto para formar ridículas barricadas na via pública. O espectáculo tornava-se caricato e jamais Portugal teve, talvez, tanta ressonância como neste momento de extrema sonoridade interna.
(Continua)
Nenhum comentário:
Postar um comentário